"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

ANO-NOVO DE NOVO


Por mais que se tente secretar otimismo para 2014, celebraremos apenas um novo ano-novo. Sai ano entra ano e tudo resta como dantes no mesmo quartel de Abrantes. O espírito natalino abandonou o presépio para promover o ícone do consumismo, Papai Noel, na versão concebida pela Coca-Cola. Pessoas se abraçam e trocam jargões abstratos, sem qualquer relação com a realidade. "Feliz Natal e um ano-novo cheio de alegrias, saúde e paz!" As frases se repetem como refrões de uma antiga canção. Nada diferente de infindas décadas anteriores.

Ano é unidade cronológica convencionalmente adotada para medir a história. Será sempre a mesma. Para que seja novo, não depende de duração temporal. Requer atitude revolucionária que mobilize energias humanistas para romper com os interesses que comandam a sociedade preservando privilégios. Não basta desejar. Muito menos esperar um ano diferente como se fosse milagre para encantar fiéis. Sem mudanças de fato, nada haverá de novo. Mero blá-blá-blá de cunho farofeiro.

São chocantes as evidências de precariedade imutável em que o povo brasileiro vive há séculos sem o perceber. Deitado eternamente em discutível berço esplêndido, nutre-se de ingênuo autoengano.

Em cada fim de ano dito velho, e início do dito novo, as imagens que movimentam as telas televisivas do país não são inéditas. Documentam tragédias repetitivas produzidas por chuvas sazonais. Não passam de catástrofes anunciadas.

Governantes sobrevoam áreas destruídas, simulando comoção. Se autênticos, deveriam se instalar nas regiões atingidas a fim de que pudessem experimentar o sofrimento das comunidades, as mortes numerosas e as sequelas indescritíveis. Preferem mistificar. Chamam de desastre natural o descalabro que só revela desrespeito do humano para com a natureza. Chuva não é desastre, é fenômeno inteiramente previsível.

Quem origina as tragédias é a sociedade. As camadas pobres têm moradia em recantos de risco, onde padecem abandonadas pelo Estado, sem direito a condições mínimas de vida ambientalmente segura e qualificada. Os governos atêm-se a enfrentar os desastres que são produtos de sua omissão. Nada fazem para evitá-los ao longo dos anos em que exercem o poder.

Reforma agrária ainda não ocorreu no país. Apesar da luta de várias gerações, entrou na prolongada calmaria que perpetua o latifúndio dominado por condomínios empresariais. As populações das pequenas propriedades são expulsas. Passam a viver na periferia dos centros urbanos, condenadas a pobreza, privações e desigualdades terríveis.

Índices de violência só fazem aumentar a cada ano. Revelam criativa crueldade. Geram insegurança que torna frágil a vida das pessoas. Única novidade registrada anualmente é o progresso incontrolável da criminalidade. Governantes falam do combate à violência. Jamais de medidas preventivas, com caráter eminentemente educacional, para reverter tão tenebrosa fotografia brasileira. Só trocar a folhinha não abre perspectiva de uma sociedade menos violenta.

No céu da pátria, neste instante, brilha o esgoto a céu aberto. Ainda que contido em fossas, resta distante das redes de higiene em que deveria desaguar. Fezes fluem como componentes do cotidiano de populações que sobrevivem na miséria. Mais da metade do povo está em áreas desprovidas de esgoto, exposta a contaminações que geram doenças evitáveis. A iniciativa do governo é buscar mais médicos para ocultar o panorama da falta de saúde. O povo que se dane.

 Em 1886, Rui Barbosa elaborou o primeiro projeto de educação infantil de que se tem notícia. Prenunciou que, sem investimento nessa faixa etária, a sociedade não teria futuro. Não foi ouvido. Em 2013, mais de um século depois, cerca de 200 ações por dia reivindicam vagas em creches públicas, enchendo a agenda doPoder Judiciário. Sem solução. Infância desprotegida é fermento da desgraça social.

No âmbito do transporte público, incorpora-se a lógica absurda da saúde. A política de mobilidade urbana assume a estratégia simplista do projeto "mais carros para o Brasil". Quanto mais, menos trânsito. Maior o caos. Menor a qualidade de vida. Ilusória a cidadania que se arrasta sem direitos, fantasiada pelos marqueteiros encarregados de enganar.

O valor da educação permanece nenhum. Professores desmerecidos, escolas degradadas, alunos desrespeitados. Somente 24% dos cidadãos que sabem ler entendem o que leem. Os demais fazem de conta.

Carnaval, Copa do Mundo e eleições sintetizam o que será 2014. Tudo igual. Outros 365 dias sem mudança. Só farofa. De novo.
07 de janeiro de 2014
Dioclésio Campos Junior, Correio Braziliense

NOVA MANOBRA CRIATIVA

Na undécima hora, quando faltavam menos de duas semanas para o fim do ano, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) resolveu adiar para 2015 a aplicação de bandeiras tarifárias nas contas de luz, medida que deveria entrar em vigor em 1.º de janeiro de 2014. Pelo sistema previsto, as contas passariam a exibir uma bandeira impressa em cor verde se os custos das distribuidoras de eletricidade fossem os normais (abaixo de R$ 200 por MWh), sem recurso à energia gerada por termoelétricas. A bandeira passaria a ser amarela toda vez que o custo de operação ficasse entre R$ 200 por MWh e R$ 350 por MWh e seria vermelha se superasse essa última marca. A explicação da agência reguladora é de que os consumidores não foram suficientemente informados e algumas distribuidoras não se prepararam no prazo previsto para implantação do sinal de alerta de aumento da conta de luz. O mercado não se deixou enganar por essa balela e interpretou a decisão como mais uma daquelas manobras que o governo tem utilizado para represar a inflação.

Na realidade, o governo teme que, se o sistema de bandeiras tarifárias fosse implantado já em janeiro, poderia contribuir para um repique inflacionário no início do ano, o que transmitiria uma imagem negativa para ele, com repercussões nos meses seguintes - quando as eleições estarão ainda próximas. Com os reservatórios de hidrelétricas em baixa neste verão em algumas regiões, notadamente no Nordeste, dá-se como certo que haverá um custo adicional para as distribuidoras. Se o sistema entrasse em vigor, levaria à impressão de bandeiras amarela ou vermelha nas contas, uma vez que um número maior de termoelétricas teria de ser ligado para suplementar a geração hidrelétrica, e as contas subiriam.

Há mesmo quem calcule que o governo fará tudo o que puder - e a suspensão das bandeiras é parte desse esforço - para evitar que a taxa de inflação medida pelo IPCA em janeiro de 2014 não supere 0,86%, taxa registrada no mesmo mês de 2013. O adiamento do uso de bandeiras possibilitaria um "alívio" calculado em 0,13%, o que seria de grande utilidade para evitar que a inflação de janeiro atinja 1%, o que seria considerado um desastre.

Como em toda medida relativa a preços administrados, há quem ganhe e quem perca. A Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) considerou a medida positiva. Em nota, afirmou que "o prazo estava muito apertado para as indústrias se adaptarem ao novo mecanismo de cobrança". A entidade lembrou que, em setembro, já havia alertado de que o sistema elevaria o custo de energia a "patamares preocupantes".

De outra parte, perdem as distribuidoras de eletricidade, que só conseguem repassar sua elevação de custos nas datas anuais de reajuste de tarifas. O sistema de bandeiras permitiria que repassassem imediatamente o eventual ônus com o uso maior de termoeletricidade. Com o novo mecanismo preconizado pela Aneel, e agora adiado, poderiam equilibrar mensalmente suas receitas com os custos mais pesados que teriam de arcar, como assinala a Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee).

Isso, naturalmente, geraria uma nova disputa no campo energético, que caberia ao governo arbitrar, em meio a tantas desavenças que têm caracterizado a relação entre o setor elétrico e o Planalto. Não se pode deixar de lembrar, porém, que, sendo 2014 um ano eleitoral, não convêm aos interesses do PT e de partidos aliados que as contas de luz pagas pelos consumidores - não só os industriais e comerciais, mas principalmente os residenciais - subam demais, especialmente em regiões em que o recurso à energia termoelétrica é mais frequente, como o Nordeste - justamente onde o PT é mais forte.

A solução pode ser a concessão de subsídios às distribuidoras, à custa do Tesouro Nacional. Isso significa mais um elemento de pressão sobre a política fiscal. Ou seja, os custos adicionais das distribuidoras nesta época do ano acabarão sendo pagos por todos os contribuintes e não deixarão de influir a médio prazo sobre a inflação, que tem no desequilíbrio fiscal uma de suas causas básicas.

 
07 de janeiro de 2014
Editorial do Estadão
 

CARTA, CAPITAL PANAMENHO

“Existem, são conhecidos, quase ninguém tem coragem de defendê-los, mas eles sobrevivem e se expandem, porque são como os prostíbulos – ilegais, mas indispensáveis para a sobrevivência de instituições falidas, que tem nesses espaços os complementos indispensáveis à sua existência.”

Foi com essas palavras que Emir Sader concluiu o artigo “Paraísos fiscais, os prostíbulos do capitalismo“, reproduzido na edição online da revista Carta Capital. O que o professor Emir e a revista Carta Capital diriam se contássemos que uma grande revista brasileira tem como sócia uma empresa com sede em paraíso fiscal? Acompanhem então o levantamento feito com acesso a dados públicos e divulgado com exclusividade aqui no Reaçonaria.
 
A Revista Carta Capital é editada pela Confiança. A informação é pública e está disponível no site da revista em http://www.cartacapital.com.br/editora/sobre-a-editora. Destaque para o trecho “a Editora Confiança publica também as revistas Carta na Escola e Carta Fundamental. Dirigidas a professores, oferecem aos docentes do Ensino Médio e Fundamental conteúdos sobre temas atuais com o propósito de enriquecer as aulas com atividades pedagógicas mais criativas e interessantes.“.
 
Estas revistas são, basicamente, vendidas a governos e sindicatos que repassam a professores. Nenhum problema.
 
Em breve consulta ao site da Junta Comercial de São Paulo é possível saber a composição societária da Editora Confiança. O sócio majoritário é o próprio Mino Carta, editor e fundador da revista e editora. E há ali também uma empresa “C.N.K.S.P.E. Empreendimentos e Participações LTDA.”, representada pelo advogado Francisco Prisco Paraíso Neto. O outro sócio é o empresário e ex-Presidente do Palmeiras Luiz Gonzaga Belluzzo.
 
EDITORACONFIANCA
 
Quando se consulta, ainda na JUCESP, a composição societária da C.N.K.S.P.E., descobre-se que ela é controlada por uma empresa de nome “Newsburg Investments LLP”. No próprio registro está informado que a Newsburg tem sede na Inglaterra:
 
C.N.K.S.P.E
 
 Fomos conferir a composição societária da Newsburg Investments LLP no site da Companies House, agência do  do governo britânico que mantém e disponibiliza os dados de todas as companhias. O endereço da Newsburg foi alterado:
 
Captura de Tela 2014-01-04 às 10.27.17
 
Ainda no site da Companies House, é possível acessar o último “Appointments Report” e descobrir quem são os sócios controladores da Newsburg: duas empresas com sede no Panamá – a Cape Labuan Investments INC e a Mawson Peak Investments Corp.
 
Captura de Tela 2014-01-04 às 10.31.56
 
O Panamá também possui um site de registro público de companhias, uma das muitas medidas recentes adotadas para tentar excluir o país da lista de “paraísos fiscais” do mundo. Acessando o site, é possível verificar que as duas empresas não apenas possuem o mesmo endereço como também têm o mesmo agente residente, TT & Associados; foram registradas no mesmo dia, 05/07/2007; e a mesma composição societária e diretoria. Vejam os dados completos abaixo:
 
Captura de Tela 2014-01-04 às 10.38.54
Captura de Tela 2014-01-04 às 10.39.09
 
A Editora Confiança, que edita a Carta Capital, tem como sócia uma empresa com sede na Inglaterra e esta empresa é composta pela associação de duas empresas com sede no Panamá que têm o mesmo endereço, foram criadas no mesmo dia e têm exatamente a mesma composição.
Uma coisa que pôde ser notada recentemente na Carta Capital foi a total falta de menção ao caso do hotel companheiro, que queria empregar José Dirceu com salário altíssimo e que, depois, descobriu-se estar em nome de um bocado de laranjas que atuam no Panamá. Soubemos que Dirceu também tinha sua empresa no Panamá, com mesmo endereço que o grupo controlador do hotel.  Uma busca dos termos “Panamá” e “paraíso fiscal” no site da revista Carta Capital não traz resultado nenhum. Comparem com o site da Folha (aqui) e da Veja.com (aqui).
Em uma reportagem antiga a revista tratou do envio de dinheiro do Brasil a paraísos fiscais e citou uma lista da Receita Federal contendo países classificados como tais.
Vejam o trecho:
“Em 2010, a Receita Federal divulgou uma lista de países considerados paraísos fiscais, entre outros motivos, por não tributarem a renda ou bloquearem o acesso a informações relativas à composição societária de pessoas jurídicas. Entre eles aparecem Andorra, Barbados, Ilhas bermudas, Chipre e Mônaco.”
A lista da Receita incluía o Panamá, mas este país não foi citado na reportagem da Carta Capital.
 
Não compartlhamos da opinião de Emir Sader sobre os prostíbulos serem “indispensáveis para a sobrevivência de instituições falidas, que tem (SIC) nesses espaços os complementos indispensáveis à sua existência.“. Porém, é de se pensar o quanto o capital no paraíso fiscal panamenho é fundamental para a sobrevivência da Carta Capital, mesmo sabendo que ela jamais irá à falência enquanto houver governos, especialmente petistas, bancando-a.
 
07 de janeiro de 2014
in reaçonaria

DIÁRIO DA DILMA - DIANTE DE NAPOLEÃO DE HOSPÍCIO É MELHOR SER JOSEFINA

 


1º DE DEZEMBRO_Ainda duas semanas de inferno astral... Este ano foi pra leão! Engordei uns 4 quilos de nervoso. E ainda não comprei nada de Natal. Só para as secretárias vou gastar um dinheirão. Saudade dos tempos em que um vidro de Alfazema era presente. Quem sabe ainda consigo uma viagenzinha para dar uma passada no free shop, mas com esse dólar pela hora da morte, sei não.
Para desanuviar, pedi à Gleisi que organizasse a festa de confraternização aqui da firma.
 
2 DE DEZEMBRO_Tirei um tal de Luiz Alberto Figueiredo Machado no amigo-oculto. Quis trocar, mas a Gleisi disse que ia melar a brincadeira. Quem é esse homem? Ela ficou de investigar.
 
3 DE DEZEMBRO_As ações da Petrobras despencaram. Está na hora de pedir ao Lobão que intervenha para acalmar os investidores. O homem é um varão de Plutarco. Parece que a Goldman Sachs está querendo contratá-lo, o que seria uma perda não só para mim, mas para todo o país. O jeito é ver com o Guido se é possível caprichar no bônus de fim de ano.
Primeiro você me azucrina/ Me entorta a cabeça/ Me bota na boca um gosto amargo de fel/ Depois vem chorando desculpas/ Assim meio pedindo/ Querendo ganhar um bocado de mel. Adoro cantar no banho e de olho no espelho. Não canso de me espantar como fico encantadora de cabelos molhados.
 
4 DE DEZEMBRO_“Já estou pensando no Brasil de 2022”, me disse o Lula. Dei força. Diante de Napoleão de hospício é melhor ser Josefina.
Temer veio me dizer que estava incomodado de o PMDB não ter maioria na Papuda. Também dei força.
 
5 DE DEZEMBRO_Oba, vou viajar para a África do Sul! Coitado do Mandela, mas aos 95 já estava na hora de o homem ter um pouco de sossego.
Gilbertinho veio dizer que o tal Luiz Alberto Figueiredo Machado é ministro e entrou no lugar do Patriota. O que eu compro para esse homem? Vou passar os olhos no site da Cleusa Presentes para ver o que está em promoção.
 
6 DE DEZEMBRO_Quem escalou a Fernanda Lima?! Quem?! Quero cabeças! Então mando fazer um conjuntinho bem esportivo para o sorteio da Copa do Mundo e o cerimonial me faz dividir o palco com aquele decote? Por que não com a Joana Fomm? A Ana Maria Braga? Vá lá, com a Fernanda Montenegro!
Como se não bastasse, quase desidratei de tanto calor. O bonitão do Jérôme Valcke também estava derretendo, não sei se por causa da temperatura senegalesca ou da proximidade com FL. O cabelo dele estava um nojo de tão suado. Menos mal que descobri o colírio do Zidane. Que espetáculo! Fiquei imaginando o que seria uma cabeçada daquele tipão...
Revi meu discurso na tevê. Péssimo. “Nós sabemos que a Copa será uma grande Copa.” Ninguém espera que eu seja um Cícero, mas não podiam ter se esforçado mais? Vou te contar, isso aqui está indo de mal a pior. Que são Clemente de Ácrida nos proteja em 2014.
 
7 DE DEZEMBRO_Erenice passou aqui e a gente baixou o Lulu no iPhone dela. Não achei nada de mais. Só comentários fofis. Mas cada revelação... Todos os meus queridos estão muito bem avaliados. Eu tenho olho para escolher a papa-fina. Ficamos horas consultando.
 
8 DE DEZEMBRO_Foi só vazar essa história de Lulu que lá vem a Eleonora me atormentar de novo. Quer que eu coloque no Marco Civil da Internet a proibição do Tubby, o Lulu dos homens. Ainda nem saiu e ela já está dizendo que é coisa de machistas, predadores sexuais, homofóbicos, fascistas, e sei lá mais o quê. Minha paciência anda curta com tanta militância. Já me bastam os mensaleiros.
 
9 DE DEZEMBRO_Não tem mesmo almoço grátis. Fui obrigada a carregar Lula, Collor e Sarney para a África do Sul. FHC é exceção: homem gentil, cheiroso, conhecevinhos. Trouxe uma garrafa de Pouilly-Fuissé, falou de Habermas. Hipnotizante.
 
10 DE DEZEMBRO_Um ti-ti-ti danado no velório do Mandela. Estava todo mundo! Mesmo. O Obama ficou na maior saliência com aquela loira da Dinamarca. Ele nunca fez selfie comigo nem com a Angela Merkel...
 
11 DE DEZEMBRO_Na volta, FHC veio me falando da uva Chenin Blanc, típica da África do Sul, “de bouquet entre os aromas minerais dos franceses da Bourgogne e os de estilo marcante da Austrália e Califórnia”. Que diferença do Lula.
 
12 DE DEZEMBRO_O pessoal soltava faís-ca no encontro do PT. É tanta tendência, é tanta corrente que a gente nem entende quem é contra o quê ou contra quem. Que gente mais louca! Fiz a fina, dei uma passada tipo estreia, sucesso e adeus. Já foi demais...
De manhã, estive com o presidente da França, não o Sarkozy, o novo. Ele lembra o maître do Piantella.
 
13 DE DEZEMBRO_Sancionei a minirreforma eleitoral. Michel Temer me informou que ela favorece o Fluminense. Fiquei sem entender.
Aldo Rebelo, a quem Gleisi pediu que cuidasse dos comes e bebes da festinha de fim de ano, veio dizer que os salgadinhos não ficarão prontos a tempo. Perguntou se não podíamos adiar para fevereiro. Fiz cara de paisagem.
 
14 DE DEZEMBRO_Hoje é o novo dia/ de um novo tempo que começou. Completo 66 primaveras. Vai ter um jantarzinho privê para comemorar. Vou tomar um vinhozinho e lagartear na rede com meu conjuntinho de viscose. FHC me disse que, quandonão passa por barrica, o Sauvignon Blanc mostra toda sua tipicidade de aromas frutados com acento tropical. Ueba!
Ganhei um vaporizador da mamãe. Titia me veio com uma caixa de sais de banho do Boticário.
 
15 DE DEZEMBRO_Meu Deus do céu, titia pirou! Ela leu que o gordinho da Coreia do Norte mandou matar o tio e ficou preocupadíssima. Expliquei mil vezes que não tem nada a ver, que a gente é diferente da Coreia do Norte e que ela é uma mãe para mim. Não adiantou muito. Titia continua ressabiada. Mandei esconder os óculos dela e tirar os jornais da casa.
 
16 DE DEZEMBRO_A festinha de final de ano da firma foi supimpa. Acabei repassando os sais de banho para o tal Luiz Alberto. E quem me tirou? Quem? Gleisi, essa pândega! Ia reclamar de marmelada, mas ela me deu umas bijuterias lindésimas. Fiquei quieta.
Lobão estava grave e solene como um personagem de Mad Men. Ideli roubou a cena! Dançou funk ostentação até o chão e cantou Como uma Onda no videokê junto com o Luiz Fux.
 
17 DE DEZEMBRO_O que eu queria mesmo era me cadastrar no Tinder. Pena que não fique bem. Oh, que saudades que eu tenho/ da aurora da minha vida/ da minha infância querida/ que os anos não trazem mais. Sábio Casimiro de Abreu! Ou seria Olavo Bilac?
 
18 DE DEZEMBRO_O namorado novo da Ana Maria Braga tem a maior cara de goiaba! Não que o último marido fosse uma beleza...
Ando tão futebolística, menina. Até aprendi a fazer embaixadinha. Fiz cinco, mamãe viu. Estou ansiosa para o jogo do meu Galo mineiro no mundial.
 
19 DE DEZEMBRO_Que João Santana, que nada! Quero a Olivia Pope para fazer minha campanha no ano que vem. Deixei de lado o Mad Men para me concentrar em Scandal. Junte João com o Duda e não dá um décimo da Olivia. Vá gerenciar crise assim lá na Papuda! Vou assistindo e tomando nota, tim-tim por tim-tim.
 
20 DE DEZEMBRO_Vou colocar o Aloizio na Casa Civil. Aquele bigode sabido vai ficar ótimo no cargo.
 
21 DE DEZEMBRO_Minhas férias estão aí. Não quero nem levar celular. Aliás, se pudesse, nem falava português.

07 de janeiro de 2014
in Piauí, 88

A GRANDE INTERROGAÇÃO QUE NOS FAZEMOS...

O Top Five da presidente conduz à pergunta inevitável: como é que o Brasil sobrevive?


tarja-an-melhores-do-ano-2013

PUBLICADO EM 4 DE OUTUBRO

http://www.youtube.com/watch?v=0OiHevvK84Y&feature=player_embedded

Como Dilma Rousseff se supera a cada palavrório, qualquer lista de trapalhadas espetaculares protagonizadas pela presidente exige atualizações constantes: os piores momentos serão sempre os próximos. Feita a ressalva, a coluna está convencida de que o vídeo de 5:25 exibe um Top Five de altíssima baixa qualidade.

Os cinco momentos selecionados pelo timaço de comentaristas ocorreram depois da chegada de Dilma à Presidência da República. Somados, ajudam a entender que o governo brasileiro é chefiado por um neurônio solitário que fala dilmês. E conduzem a uma pergunta sem resposta: como é que um país dirigido por alguém assim consegue sobreviver?

Veja também: DOCUMENTO HISTÓRICO: Celso Arnaldo, único doutor em dilmês do mundo, reúne num vídeo de 2:36 cinco dos melhores-piores momentos do neurônio solitário

07 de janeiro de 2014
in Augusto Nunes

O COLAPSO NAS CADEIAS REFLETE DÉCADAS DE GESTÃO SARNEY

Maranhão

Grupo político de José Sarney se aproxima de cinco décadas no poder. E os maranhenses, já acostumados aos péssimos serviços públicos, agora estão à mercê de facções criminosas

 
José Sarney, Roseana Sarney, Edison Lobão e Lobão Filho

CLÃ – José Sarney, Roseana Sarney, Edison Lobão e Lobão Filho (Fotoarena e Divulgação Governo do Estado do Maranhão e ABr e Agência Câmara)

A sequência de horror registrada nos últimos vinte dias no Maranhão chocou até mesmo uma sociedade já acostumada ao noticiário de crimes brutais. O banho de sangue, com imagens de presos decapitados e esquartejados na penitenciária de Pedrinhas, na Grande São Luís, já deixou 62 detentos mortos no período de um ano.

O retrato da barbárie nas cadeias maranhenses inclui ainda estupros de familiares de presidiários nos dias de visitas íntimas. Na última sexta-feira, a selvageria ultrapassou os muros do presídio: ataques a ônibus e delegacias espalharam terror nas ruas de São Luís. Uma criança de 6 anos morreu queimada. O criminoso obedecia a uma ordem de dentro do presídio de Pedrinhas.

Políticos costumam culpar os antecessores pelos problemas crônicos enfrentados por suas gestões. Mas a governadora Roseana Sarney (PMDB), no quarto mandato no Maranhão, não poderá fazê-lo: com exceção de um período de dois anos, o Estado é governado desde 1966 pelos integrantes do clã político de José Sarney.

O único revés do grupo ocorreu em 2006, quando Jackson Lago (PDT) derrotou Roseana nas urnas. Mas ele só resistiu até o começo de 2009, dois anos depois da posse: a Justiça Eleitoral tirou o cargo do pedetista sob a acusação de compra de votos. Roseana herdou o mandato, e venceu também as eleições de 2010.

Sarney nunca fez oposição a um presidente da República: apoiou a ditadura militar enquanto lhe interessou e foi pulando de barco até firmar a improvável aliança com o PT de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Dos dois, recebe deferências – e o poder de nomear afilhados em órgãos importantes da administração federal.
Leia também: 

Presos filmam e celebram decapitações em presídio no MA
Pedrinhas: a barbárie em um presídio fora de controle


Enquanto isso, os maranhenses convivem com um cenário desolador: segundo dados do Atlas do Desenvolvimento, o Estado tem o penúltimo lugar no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), à frente apenas de Alagoas. A renda per capita, de 348 reais, é a menor do país. Apenas 4,5% dos municípios do estado têm rede de esgoto.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 20,8% dos maranhenses eram analfabetos em 2012. Pior: o número significa um aumento em relação a 2009, quando 19,1% da população não sabiam ler e escrever. Ou seja, durante o governo de Roseana, a situação se agravou – o Maranhão foi o único Estado do Nordeste que regrediu no período.

Um dos poucos índices nos quais o Maranhão não se destacava negativamente no plano nacional era a violência. Mas, como mostra o episódio de Pedrinhas, isto também é passado: entre 2000 e 2010, a taxa de mortes por armas de fogo no Estado subiu 282%. O surgimento de facções criminosas tornou mais evidente o fracasso do governo nessa questão. O governo do Estado falhou ao evitar o conflito sangrento entre criminosos encarcerados e novamente depois, ao tentar debelá-lo. Por fim, receberá ajuda do governo federal para resolver a situação, com a transferência de detentos para outras unidades prisionais do país.

O Maranhão já era pobre quando Sarney assumiu o poder. E sabe-se que não é fácil resolver o problema do subdesenvolvimento crônico. Mas, em 2014, isso já não pode ser usado como desculpa.

 

Barbárie no presídio de Pedrinhas (MA)     

Estupros

Relatório do CNJ denunciou a prática de abuso sexual contra esposas, irmãs e filhas de presos pelos chefes das organizações criminosas. Segundo o juiz do CNJ Douglas de Melo Martins, encarcerados por crimes menores prostituem familiares para não serem mortos pelos líderes das facções, que ditam as regras no presídio. As visitas íntimas acontecem com as celas abertas e em ambientes coletivos.

07 de janeiro de 2014
Gabriel Castro, de Brasília

O ANTROPÓLOGO CONTRA O ESTADO



As ideias e as brigas de Eduardo Viveiros de Castro, o intelectual brasileiro que virou a filosofia ocidental pelo avesso
 
 
Marcio Ferreira da Silva, um sujeito grandalhão e bem-humorado, professor de antropologia na Universidade de São Paulo, tentava encontrar um volume nas estantes de seu apartamento. Depois de perscrutar as prateleiras da sala, sumiu por um instante no corredor que levava aos quartos. “Achei”, exclamou. Trouxe lá de dentro uma edição especial da revista L’Homme, publicada no ano 2000, em que o antropólogo Claude Lévi-Strauss, aos 91 anos, comentava os avanços recentes de sua disciplina.

“Olha o que o bruxo escreveu!”, disse o antropólogo da USP. Passou então a ler em voz alta os parágrafos finais de um artigo em que o etnólogo francês exalta o trabalho dos “colegas brasileiros”, atribuindo a eles a descoberta de uma metafísica própria aos índios sul-americanos.
“A filosofia ocupa novamente o proscênio da antropologia”, escreveu Lévi-Strauss. “Não mais a nossa filosofia”, acrescentou, mas a filosofia dos “povos exóticos”. O texto que Marcio Silva tinha nas mãos indicava que algo havia mudado na relação da academia brasileira com a metrópole – uma relação que poderia ser descrita como uma via de mão única, ou quase isso, ao longo da maior parte do século XX.

Num artigo que causou certa discussão, escrito em 1968 para a aut aut, prestigiosa revista italiana de filosofia, o filósofo Bento Prado Jr. registrou que resenhar, naquela publicação, as obras de seus pares produzidas no Brasil “não implicaria nenhuma informação para o leitor europeu”. E argumentava: “Aqui também se faz marxismo, fenomenologia, existencialismo, positivismo.” Mas não havia novidade ou contribuição maior: “Quase sempre, o que se faz é divulgação.” Três décadas depois, Lévi-Strauss identificava um conjunto de ideias na fronteira da antropologia e da filosofia que, a seu ver, o leitor europeu precisava conhecer.

Marcio Silva havia retirado outro volume da estante. Leu o título: Transformations of Kinship [Transformações do Parentesco]. “É a última grande compilação de estudos da área. O último grande livro do século XX. Tem um artigo do Eduardo”, disse, referindo-se ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, seu orientador no doutorado, nos anos 80. Abriu o livro nas páginas finais e procurou referências bibliográficas. Encontrou os nomes de ex-alunos de Viveiros de Castro.
“Olha aqui o Carlos Fausto. Citado em português! A Aparecida Vilaça também.” O próprio Silva também constava da lista. “Foi por causa do Eduardo que os ‘colegas brasileiros’ passaram a existir”, disse. “É muito fácil aferir isso. Basta folhear as principais revistas da disciplina. Isso mudou. E mudou por causa dele.”
 
Eduardo Viveiros de Castro mora com a mulher, Déborah Danowski, e a única filha deles, Irene, de 18 anos, num prédio antigo, estilo art déco, na praia de Botafogo, no Rio de Janeiro. No apartamento de pé-direito alto, estantes de livros cobrem as paredes já no pequeno corredor que serve como hall de entrada. Na prateleira de uma delas, na sala, vê-se uma foto antiga do antropólogo, na casa dos 20 anos, com o cabelo comprido. Ao lado, um retrato de Bob Dylan.

Numa noite de outubro do ano passado, Viveiros de Castro criticava o avanço do governo de Dilma Rousseff sobre a Amazônia, seus projetos de estradas e usinas hidrelétricas, benefícios ao agronegócio – e descaso com os direitos dos povos indígenas. Sentado no sofá, o antropólogo comparou as ambições desenvolvimentistas da atual presidente à megalomania da ditadura, com seu ideário de “Brasil Grande”.

“Hegel deve estar dando pulinhos de alegria no túmulo, vendo como a dialética funciona”, ele disse. “Foi preciso a esquerda, uma ex-guerrilheira, para realizar o projeto da direita. Na verdade, eles sempre quiseram a mesma coisa, que é mandar no povo. Direita e esquerda achavam que sabiam o que era melhor para o povo e, o que é pior, o que eles pensavam que fosse o melhor é muito parecido. Os militares talvez fossem mais violentos, mais fascistas, mas o fato é que é muito parecido.”

Apesar da contundência, falava com calma, o tom de voz baixo. “O PT, a esquerda em geral, tem uma incapacidade congênita para pensar todo tipo de gente que não seja o bom operário que vai se transformar em consumidor. Uma incapacidade enorme para entender as populações que se recusaram a entrar no jogo do capitalismo. Quem não entrou no jogo – o índio, o seringueiro, o camponês, o quilombola –, gente que quer viver em paz, que quer ficar na dela, eles não entendem.
O Lula e o PT pensam o Brasil a partir de São Bernardo. Ou de Barretos. Eles têm essa concepção de produção, de que viver é produzir – ‘O trabalho é a essência do homem’. O trabalho é a essência do homem porra nenhuma. A atividade talvez seja, mas trabalhar, não.”

Viveiros de Castro não é um homem alto. “Oficialmente”, mede 1,68 metro, mas diz que a idade já deve lhe ter roubado 1 ou 2 centímetros. Tem 62 anos, o cabelo e a barba grisalhos. O que se destaca em sua fisionomia é o nariz grande, reto, quase um triângulo retângulo aplicado ao rosto. Seus gestos são contidos e ele fala numa versão mais atenuada, mais diluída, do sotaque carioca. Em contraste com o discurso combativo, faz lembrar, na prosódia e nos modos, um diplomata. Afável, o antropólogo recusa a imagem: a comparação com a elite burocrática do país – espécie de símbolo da vida burguesa bem-comportada – não lhe agrada.

Num texto memorialístico recente, Viveiros de Castro contabilizou dezesseis anos de estudo, do primário à faculdade, em duas tradicionais instituições cariocas: o Colégio Santo Inácio e a Pontifícia Universidade Católica do Rio. “Dois estabelecimentos privados de classe média e alta – ninguém é perfeito – de minha cidade natal, ambos dirigidos pelos padres jesuítas”, escreveu. Seu pai pertencia a uma família de “políticos e juristas”.
Augusto Olympio Viveiros de Castro, bisavô de Eduardo, foi ministro do Supremo Tribunal Federal e hoje é nome de rua em Copacabana. Outro bisavô, Lauro Sodré, nome de avenida em Botafogo, foi militar, senador e governador do Pará. Participou da Revolta da Vacina, em 1904 – segundo o antropólogo, por ser positivista e acreditar que o Estado “só podia chegar até a pele” dos cidadãos. “Um argumento curioso”, comentou. “Equivocado, no caso da vacina. Mas tem seu interesse retórico. Tendo a simpatizar com ele. Acho que o Estado devia parar muito antes, bem longe da pele.”
 
Do ponto de vista intelectual, Viveiros de Castro é herdeiro de cientistas sociais que ajudaram a derrubar o senso comum de que os povos indígenas são marcados pelo atraso em relação ao mundo ocidental. Essas sociedades sempre foram descritas como “primitivas” por carecerem de instituições modernas – como o Estado e a ciência.

Foi Claude Lévi-Strauss quem aposentou definitivamente a ideia de que os povos sem escrita seriam menos racionais do que os europeus. Os índios ocupavam um lugar próximo, nessa visão de mundo que ele ajudou a desfazer, ao das crianças, ou dos loucos. O pesquisador francês argumentou que havia método e ordem nas aparentemente caóticas associações que esses povos faziam – entre tipos de animais, acidentes geográficos, corpos celestes e instituições sociais. Eram o resultado não da falta de razão, mas, em certo sentido, de seu excesso.
O que nenhuma sociedade humana tolera, dizia Lévi-Strauss, é a falta de sentido. O “pensamento selvagem”, assim, é totalizante, e procura, por meio de analogias, uma compreensão completa de todo o universo, estabelecendo relações entre os diferentes tipos de fenômenos. Um determinado rio se distingue de outro de maneira análoga ao modo como uma espécie animal é diferente de outra, ou um grupo social, de seus vizinhos. Nada pode escapar à sua malha de significados.

Nos anos 70, o antropólogo francês Pierre Clastres argumentou que a falta de Estado nos povos das terras baixas sul-americanas – em contraste com a forte centralização política de seus vizinhos andinos – não seria uma carência, mas uma escolha deliberada, coletiva. Há entre eles, com frequência, alguma forma de chefia. Em troca de prestígio, o chefe ocupa um lugar privilegiado, e apartado, em relação aos demais integrantes da sociedade. Pode falar à vontade. Mas ninguém lhe dá ouvidos.
“O chefe por vezes prega no deserto”, escreveu Clastres. Do chefe é exigida uma generosidade maior, que o obriga a distribuir bens para o restante da sociedade. Lévi-Strauss, ao falar dos Nambikwara, dizia que “a generosidade desempenha um papel fundamental para determinar o grau de popularidade de que gozará o novo chefe”.

Por mais populares que sejam, contudo, tais líderes não dispõem de nenhuma capacidade coercitiva. O chefe não manda. Tudo se passa como se essas sociedades criassem uma posição privilegiada, o lugar exato onde o Estado poderia nascer, para então esvaziá-la de poder, numa espécie de ação preventiva. Foi o que Clastres chamou de “sociedades contra o Estado”. Defendeu a ideia, em um de seus artigos, argumentando que “só os tolos podem acreditar que, para recusar a alienação, é preciso primeiro tê-la experimentado”.

Naquela mesma década de 70, o norte-americano Marshall Sahlins se ocupou da dimensão econômica dessas sociedades. Procurou analisar as mais “pobres” dentre elas, os grupos nômades de caçadores-coletores. Segundo a visão então consagrada, tais sociedades mal conseguiriam assegurar a própria subsistência. Com técnicas pouco desenvolvidas e baixa produtividade, por certo não havia nelas produção excedente, poupança, investimento. Viviam da mão para a boca.

Ocorre que o tempo dedicado ao trabalho também era pequeno. Esses estranhos “primitivos” pareciam ser ao mesmo tempo miseráveis e ociosos. Oque Sahlins argumentou é que não fazia sentido, para grupos nômades, acumular bens – quanto menos tivessem que carregar, tanto melhor. Tampouco era lógico produzir estoques, quando esses estão ao redor, “na própria natureza”. Do ponto de vista dos caçadores-coletores, não lhes faltava nada. Trabalhar pouco era uma escolha, e aqueles grupos constituiriam o que o antropólogo chamou de primeira “sociedade de afluência”.

Em alguns de seus textos, Viveiros de Castro cita Lévi-Strauss e Pierre Clastres como paixões intelectuais. Não chega a fazer o mesmo com Sahlins, mas o ex-aluno dos padres jesuítas retomou o autor norte-americano, num ensaio recente, para argumentar que, junto aos outros dois, ele contribuiu para colocar em questão “a santíssima trindade do homem moderno: o Estado, o Mercado e a Razão, que são como o Pai, o Filho e o Espírito Santo da teologia capitalista”.
Em vez de símbolo de atraso, a “sociedade primitiva”, escreveu o antropólogo carioca, “é uma das muitas encarnações conceituais da perene tese da esquerda de que um outro mundo é possível: de que há vida fora do capitalismo, como há socialidade fora do Estado. Sempre houve, e – é para isso que lutamos – continuará havendo”.
 
O antropólogo e sua mulher mantêm uma casa simples num condomínio de classe média alta, em Petrópolis, na serra fluminense. Costumam passar os finais de semana lá. No centro do terreno se ergue uma espécie de pequeno Pão de Açúcar, uma pedra grande, com cerca de 5 metros de diâmetro, que se mostrou providencial para baratear o preço do lote. “O pessoal por aqui quer casa com cinco salas, cinco suítes”, disse Viveiros de Castro. “Esse pedregulho atrapalha.” Nos fundos, fica uma obra a que ele se dedica com afinco e que parece lhe dar grande orgulho: um jardim-pomar.

Num domingo de céu sem nuvens, ele caminhava por entre os arbustos distribuídos no terreno gramado. Levava um cajado de madeira quase do seu tamanho. Usava-o sobretudo para apontar as frutas de nomes estranhos, que eram sempre aparentadas de outras, mais conhecidas.
 “Essa é da família da pitanga”; aquela outra, “parente da lichia”; uma terceira, “deliciosa, com o gosto entre a goiaba e o abacaxi”. Déborah acompanhava o percurso. Ela é professora de filosofia na PUC do Rio. Os dois são casados há quase três décadas. Quando voltamos para a sala da casa, pedi que Viveiros de Castro falasse sobre a ideia que o projetou. A síntese da metafísica dos povos “exóticos”, a que se referia Lévi-Strauss, surgiu em 1996. Ganhou o nome de “perspectivismo ameríndio”.

Fazia já alguns anos, então, que o antropólogo se ocupava de um traço específico do pensamento indígena nas Américas. Em contraste com a ênfase dada pelas sociedades industriais à produção de objetos, vigora entre esses povos a lógica da predação.
O pensamento ameríndio dá muita importância às relações entre caça e caçador – que têm, para eles, um valor comparável ao que conferimos ao trabalho e à fabricação de bens de consumo. Diferentes espécies animais são pensadas a partir da posição que ocupam nessa relação. Gente, por exemplo, é ao mesmo tempo presa de onça e predadora de porcos.

Duas alunas suas, Aparecida Vilaça e Tânia Stolze Lima, preparavam, naquela ocasião, teses de doutorado que chamavam a atenção para outra característica curiosa do pensamento de diferentes grupos indígenas. Tânia pesquisava os Juruna, do Xingu; Aparecida, os Wari, em Rondônia. Pois bem: de acordo com os interlocutores de ambas, os animais podiam assumir a perspectiva humana. Tânia e Viveiros de Castro fizeram um levantamento que indicava a existência de ideias semelhantes em outros grupos espalhados pelas Américas, do Alasca à Patagônia.
Segundo diferentes etnias, os porcos, por exemplo, se viam uns aos outros como gente. E enxergavam os humanos, seus predadores, como onça. As onças, por sua vez, viam a si mesmas e às outras onças como gente. Para elas, contudo, os índios eram tapires ou pecaris – eram presa. Essa lógica não se restringia aos animais. Aplicava-se aos espíritos, que veem os homens como caça, e também aos deuses e aos mortos.

Ser gente parecia uma questão de ponto de vista. Gente é quem ocupa a posição de sujeito. No mundo amazônico, escreveu o antropólogo, “há mais pessoas no céu e na terra do que sonham nossas antropologias”.

Ao se verem como gente, os animais adotam também todas as características culturais humanas. Da perspectiva de um urubu, os vermes da carne podre que ele come são peixes grelhados, comida de gente. O sangue que a onça bebe é, para ela, cauim, porque é cauim o que se bebe com tanto gosto. Urubus entre urubus também têm relações sociais humanas, com ritos, festas e regras de casamento. O mesmo vale para peixes entre peixes, ou porcos-do-mato entre porcos-do-mato.

Tudo se passa, conforme Viveiros de Castro, como se os índios pensassem o mundo de maneira inversa à nossa, se consideradas as noções de “natureza” e de “cultura”. Para nós, o que é dado, o universal, é a natureza, igual para todos os povos do planeta. O que é construído é a cultura, que varia de uma sociedade para outra. Para os povos ameríndios, ao contrário, o dado universal é a cultura, uma única cultura, que é sempre a mesma para todo sujeito. Ser gente, para seres humanos, animais e espíritos, é viver segundo as regras de casamento do grupo, comer peixe, beber cauim, temer onça, caçar porco.

Mas se a cultura é igual para todos, algo precisa mudar. E o que muda, o que é construído, dependendo do observador, é a natureza. Para o urubu, os vermes no corpo em decomposição são peixe assado. Para nós, são vermes. Não há uma terceira posição, superior e fundadora das outras duas. Ao passarmos de um observador a outro, para que a cultura permaneça a mesma, toda a natureza em volta precisa mudar.

Já fazia alguns minutos que Déborah tinha se enfurnado dentro da casa, enquanto o antropólogo falava de peixes, antas e urubus. Viveiros de Castro disse se lembrar de que estava lendo um ensaio de Lévi-Strauss quando teve o “estalo” que deu origem ao perspectivismo. Fez uma pausa e, sem se levantar da poltrona, chamou pela mulher. “Débi!” Ela apareceu no mezanino, sobre nossas cabeças. O antropólogo voltou a contar a história. “Eu lembro que saí do escritório, onde estava lendo esse texto, e disse à Débi que tinha acabado de ter uma ideia; uma ideia que iria me ocupar por uns dez anos, se eu quisesse tirar todas as consequências dela.” Virou-se para cima e perguntou: “Lembra, Débi?” Do alto do mezanino, ela riu, simpática, e respondeu balançando a cabeça: “Não.”

A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora da Universidade de Chicago, avalia que as ideias desenvolvidas por Viveiros de Castro a partir do perspectivismo ameríndio dialogam diretamente com boa parte da tradição filosófica ocidental. Ao mesmo tempo, a síntese que ele propôs do pensamento indígena é uma crítica a essa tradição, ao colocar em questão as noções de “natureza” e “cultura” da “vulgata metafísica ocidental”.

Essa capacidade crítica foi logo notada. Durante um debate na Inglaterra, mal a ideia havia sido apresentada, um interlocutor do antropólogo carioca lhe disse que os índios de que ele falava “pareciam ter estudado em Paris”. Reagindo à provocação, Viveiros de Castro comentou que “na realidade havia ocorrido exatamente o contrário: que alguns parisienses”, e ele se referia certamente a Lévi-Strauss, que viveu no Brasil entre 1935 e 1939, “haviam estudado na Amazônia”. E argumentou que sua análise “devia tanto ao estruturalismo francês”, de Lévi-Strauss, quanto este estava em débito com o conhecimento que travara com povos indígenas do Brasil. “Não fora o Pará que estivera em Paris”, disse o antropólogo, “mas sim Paris no Pará”.

Viveiros de Castro promoveu, em relação à filosofia, algo análogo ao que Pierre Clastres e Marshall Sahlins haviam feito em relação ao Estado e à economia de mercado: mostrou que um outro mundo é possível. A ideia recebeu enorme atenção, dentro e fora do país, quase imediatamente após sua formulação. “Na França e na Inglaterra, o Eduardo é altamente respeitado”, declarou a professora da Universidade de Chicago; “basta dizer que na livraria Gibert, em Paris, há uma seção de prateleira com o nome dele.”

Nos Estados Unidos, a resistência ao perspectivismo foi maior, observou Manuela. No final de novembro passado, contudo, após uma conferência de Viveiros de Castro para a Associação Americana de Antropologia, ela me enviou uma mensagem informando que a recepção às ideias dele estava “melhorando bastante”.
Mesmo antes disso, de toda forma, o professor brasileiro já contava com defensores importantes. Marshall Sahlins, colega de Manuela em Chicago, considera Viveiros de Castro “o antropólogo mais erudito e original do planeta” da atualidade, tendo inaugurado “uma nova era para a antropologia, com profundas implicações para o resto das ciências humanas e das humanidades”.
 
Eduardo Batalha Viveiros de Castro nasceu no dia 19 de abril de 1951, no Rio de Janeiro. Passou toda a adolescência na Gávea, Zona Sul da cidade. Nos anos 60, o bairro era uma larga ilha de classe média contida entre a Rocinha, no alto do morro, e o Parque Proletário, uma favela que não existe mais. Eduardo morava numa casa grande de dois andares, movimentada, aberta à vizinhança, com os pais e os cinco irmãos mais novos. A mãe “era dona de casa, formada em letras, como convinha a uma moça de boa família”. O pai, um advogado trabalhista, não dirigia.
Nos finais de semana, contratava os serviços de um vizinho taxista para levar a família à praia em Ipanema.
Tampouco tinham tevê – levaram certo tempo até adquirir uma, “meio que obrigando a gente a estudar”. Por outro lado, a biblioteca era boa. “Os livros que não eram brasileiros eram franceses. Aprendi a ler em francês folheando os livros do meu pai. Minha mãe, também, tinha estudado numa escola de freiras francesas. Havia um ruído de fundo em francês na casa.”

Viveiros de Castro não deu muita atenção quando chegou ao bairro a notícia do golpe militar, em 64: “Eu tinha 13 anos, estava jogando bola.” Seu interesse, além do futebol, eram os livros de divulgação científica. Começou a gostar de música na época em que os discos dos Beatles e dos Rolling Stones desembarcaram no país, e decidiu aprender inglês quando conheceu as canções de Bob Dylan, que ele reputa, ainda hoje, personagem fundamental em sua formação intelectual. “Os discos dele em geral tinham as letras na contracapa. Era só abrir o dicionário.”
Foi por meio do cantor norte-americano que o antropólogo descobriu a geração beat, com seus valores libertários, e a contracultura.
Em contraposição à vida alegre da Gávea, o Colégio Santo Inácio, onde estudou até chegar à faculdade, foi um longo “serviço militar”, do qual disse não guardar boas lembranças – nem más. Uma escola exclusivamente masculina, em que a ênfase não estava no ensino religioso, mas na disciplina.

Os anos decisivos foram 1967 e 1968. Interessou-se pelas discussões intelectuais publicadas nos suplementos dominicais da imprensa, tomando o partido da poesia concreta, das revoluções formais e do tropicalismo, contra o que se refere como vertente nacional-populista, “tipo samba de raiz, Tinhorão, CPC – o marxismo cultural, chamemos assim”.
Passou a ler obras de linguística, filosofia, poesia brasileira e literatura francesa. Ainda gostava de matemática, carreira que considerou seguir. Desistiu ao se confrontar com um colega que “nadava de costas” na disciplina. “Ele era muito melhor do que eu. Vi que não tinha condições de ser matemático.”

Foi nessa época, disse o antropólogo, que ele descobriu o mundo intelectual “pra valer”. “Comecei também a desenvolver sentimentos antiburgueses. Deixei o cabelo crescer, por assim dizer. Passei a experimentar as drogas, a frequentar ambientes pouco recomendáveis e a ter amigos fora do colégio. Sobretudo um, que foi muito importante para me situar nos debates da época, amigo meu até hoje, que é o Ivan Cardoso, cineasta.”
 
Quando se referem um ao outro, Viveiros de Castro e o amigo do tempo da adolescência, dois senhores de mais de 60 anos, parecem garotos. Assim que encontrei Ivan Cardoso pela primeira vez, em sua casa, em Copacabana, ele foi logo dizendo: “O Viveiros? Eu comia ele.”

Com uma calva pronunciada, o cineasta trazia o cabelo desarrumado nas têmporas e na nuca. Numa sala atulhada de móveis e objetos criados por ele, quadros com esmaecidas bandeirolas de Festa Junina se destacavam. “São Volpis?”, perguntei. “São Ivolpis”, ele respondeu, satisfeito, “Ivolpis!”
Mais conhecido por seu longa O Segredo da Múmia, de 1982, Cardoso foi um inovador formal, rodando filmes de vanguarda em super-8 a partir do final dos anos 60. Viveiros de Castro conta que a preocupação do amigo com a plasticidade das cenas, aliada à paródia das fitas de terror que fazia, levou o poeta e crítico Haroldo de Campos a sintetizar sua obra como “Mondrian no açougue”. “Tenho uma admiração imensa pelo Ivan”, me disse o antropólogo. “Ele, sim, é um artista. Nunca se afastou disso, e tem uma puta imaginação plástica. Eu sou um anão. O Ivan é um gigante.”

Os pais de Ivan Cardoso e de Viveiros de Castro eram amigos. Os dois garotos estudavam em escolas diferentes, mas próximas. O Colégio São Fernando, que Ivan frequentava, ficava em Botafogo, como o Santo Inácio. Cardoso editava um jornal estudantil e convidava artistas plásticos para dar palestras aos alunos. “O Ivan era muito cara de pau”, explicou o antropólogo. “Batia na porta das pessoas. Eu ia um pouco no vácuo dele.” Os dois ficaram amigos de Hélio Oiticica. “Ele gostou da gente”, contou o antropólogo. “Ensinava coisas. Foi um pouco nosso guia no mundo artístico.”

Esticado na cama de seu quarto, Ivan Cardoso lembrou a primeira vez em que encontrou Oiticica. Cardoso havia ligado para o artista, pedindo que falasse a seus colegas, na escola. Recebeu, como resposta, um convite para que fosse a sua casa, no Jardim Botânico – um lugar que mais tarde ele e Viveiros de Castro passariam a frequentar. “A casa do Hélio era estranhíssima. Misturavam-se críticos de arte e malandros do morro. Era um desfile. Na sala, tinha uma tenda. Ele morava com a mãe. Todo mundo queimando fumo, e a mãe dele descia a escada e reclamava: ‘Vocês vão ser todos presos! Eu já chamei a polícia, seus maconheiros!’ A velha sofreu.”

Viveiros de Castro e Hélio Oiticica gostavam de conversar sobre literatura e filosofia. “Os dois já tinham lido tudo. Cheguei à conclusão de que não adiantava mais eu ler. Qualquer coisa, perguntava para eles.” Segundo o cineasta, seu amigo tomava o café da manhã com um livro aberto na mesa. “Ele lia até trepando”, disse, rindo. “Mas não era apenas um intelectual. Ele andava com um canivete de mola. Era transviado também.
Uma vez ele arrumou uma confusão desgraçada no baixo Leblon. Arranjou briga, tacou o carro em cima de um desgraçado lá, um elemento nocivo, tipo um ‘bad boyzinho’ desses. Ele sempre foi uma pessoa carismática, e fazia o marketing dele. Fumava Continental sem filtro, que é um destronca peito desgraçado, e era um bom pé de cana. Tomava traçado.”

No meio da conversa, o cineasta quis saber o que eu achava do amigo intelectual. Em silêncio, sério, prestou atenção à resposta. “Então é isso”, concluiu. “O Caetano está perdendo tempo com esse Mangabeira Unger. É um merda.”
 
Em 1969, Viveiros de Castro começou a estudar na PUC. Cursou jornalismo por um ano. No ciclo básico, se interessou por ciências sociais e pediu transferência. Parte considerável do que era lecionado no novo curso, no entanto, não o agradava. “O que o pessoal estava ensinando era teoria da dependência, Fernando Henrique Cardoso, burguesia nacional, teoria da revolução – quem seria o guia da mudança, se o operariado ou o campesinato”, contou.

“Eu, na verdade, tinha horror àquela coisa. Não tinha saco para a teoria da dependência e não gostava da teoria do Brasil. Achava de uma arrogância absurda enunciar a verdade sobre o que o povo deve ser, o que o povo deve fazer. Isso de teorizar o Brasil é uma coisa que a classe dominante sempre fez. Quem fala ‘Brasil’ é sempre alguém que está mandando. Seja para fazer revolução de esquerda, seja para soltar os gorilas da ditadura na rua. E aqueles caras... Eu ficava pensando: eles querem as mesmas coisas que os militares. Só que querem ser eles a mandar. Vai ser um quartel, isso aqui.”

O tema mobiliza Viveiros de Castro: esquerda tradicional, “careta”, de um lado; esquerda existencial, “libertária”, de outro. A divisão, ele observa, não era apenas intelectual. Definiu trajetórias pessoais, “como ir para a clandestinidade e para a luta armada; ou ir para a praia, fumar maconha, tocar violão”. Num texto de memórias, disse admirar seus “companheiros mais corajosos” que se arriscaram na clandestinidade. Viveiros resolveu ir à praia.

Em 1970, um píer foi construído em Ipanema, por ocasião das obras para lançar o esgoto longe da costa. Moveram a areia e surgiram morrotes altos, que mais tarde ganhariam o apelido de “dunas do barato”. Mudanças no fundo do mar melhoraram as ondas, atraindo os surfistas. Com eles vieram os hippies e o que havia de contracultura no Rio de Janeiro de então. O jovem estudante da PUC também fazia ponto por lá.

“Como diz o Ivan Cardoso, esse era o tempo em que a gente era feliz e sabia. Eu ia nos finais de semana. Tinha muita droga. Muita maconha, muito ácido. Foi um momento importante porque houve uma interpenetração cultural entre o morro e a baixada, por causa do pessoal que vendia pó, vendia fumo.” Ele próprio, segundo disse, não gostava particularmente das substâncias em voga naquele momento. “Eu sou uma pessoa medrosa. Experimentei uma ou duas vezes LSD. Não gostei, fiquei paranoico. Maconha eu usei muito, mas mais porque era coisa da época. O efeito em si... Me dava sono.”

Seu perfil de usuário era mais clássico: álcool, tabaco e cocaína. “Não era maconha, comida vegetariana, ácido. Eu era mais década de 50 do que década de 70. Fui quase viciado em cocaína. Parei porque achei que não ia aguentar fisicamente. É uma droga horrível. Ela te transforma num monstro narcísico. Dá uma sensação de onipotência, que na verdade é uma ‘oni-impotência’. Quando você está mais onipotente é na verdade quando você está completamente impotente: você fica só falando merda, fazendo besteira, e também não é um estimulante sexual. É uma droga idiota, fascista. Mas eu gostava. Eu usava.”
 
Entre o píer e a PUC, Viveiros de Castro conheceu a obra de Lévi-Strauss, que começava a ser lida no Brasil. O crítico literário Luiz Costa Lima, professor na mesma PUC, disse ter tomado contato com as ideias do antropólogo francês em meados dos anos 60, “quando começou a moda do estruturalismo”. Atraído pelo rigor formal das análises lévi-straussianas, passou a estudá-las a sério. O que aprendia, ensinava na faculdade.
Viveiros de Castro seguiu seu curso. “O estruturalismo fazia parte daquilo que a esquerda tradicional considerava anátema”, disse o ex-aluno. “Falavam que era burguês, formalista, que negava a história. Tinha uma série de palavras de ordem que você ouvia.”

Costa Lima e o aluno se tornaram amigos. Formaram um grupo de estudos e se dedicaram por alguns anos, duas vezes por semana, à leitura sistemática das Mitológicas, a obra em que Lévi-Strauss analisa a lógica de mitos ameríndios, reunindo rigor formal e atenção aos detalhes concretos, significativos nas narrativas: cores, cheiros, comportamentos dos animais, detalhes escatológicos, sexo. “Fiquei fascinado com os mitos”, disse Viveiros de Castro. “Eram rabelaisianos, mas tinham uma lógica formal, por causa das combinações, das permutações. Eram ‘Mondrian no açougue’, como os filmes do Ivan. Aquilo tinha uma relação com as coisas que eu lia nos suplementos e de que gostava. Em particular a linguística. E os concretistas. Havia uma afinidade, não direta, mas havia, entre concretistas, tropicalismo e estruturalismo.”

Essa não foi a única influência que Costa Lima exerceria na vida do aluno. Terminada a faculdade, Viveiros de Castro não sabia que rumo tomar. Pensou em fazer pós-graduação em letras. O professor, crítico literário, o desestimulou. Fez isso, explicaria mais tarde, porque “o estudo de literatura sempre foi muito ruim no Brasil”. “Hoje é péssimo”, frisou. Recomendou ao aluno, entusiasmado pelas Mitológicas, que cursasse antropologia no Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Roberto DaMatta, à época professor do Museu, participou da banca de seleção para o mestrado. “Eu era besta pra cacete”, comentou Viveiros de Castro, ao falar sobre o exame. “O Matta me perguntou: ‘Estou vendo aqui no seu currículo que você leu Lévi-Strauss. O que você leu?’ E eu respondi: ‘Tudo!’”
 
Na sala de sua casa, em São Paulo, Marcio Silva acendeu um cigarro. O antropólogo pegou uma prancheta na qual havia anotado pontos importantes da trajetória intelectual de seu antigo orientador. Viveiros de Castro se tornou professor assistente do Museu em 1978, pouco depois de concluir o mestrado. Naquele mesmo ano, escreveu um artigo com seus professores Anthony Seeger e Roberto DaMatta sobre a noção de pessoa entre os grupos indígenas da América do Sul, texto que se tornaria referência para o estudo desses povos.

Marcio ressaltou a audácia dos primeiros parágrafos do artigo. Ali os três autores afirmam que diferentes regiões do planeta haviam contribuído, no passado, com algum aspecto importante da teoria antropológica. A Melanésia, diziam, descobriu a reciprocidade – a obrigação social de dar, receber e retribuir “dádivas”, cuja circulação seria como a linha de costura da sociedade, mantendo-a coesa. O Sudeste Asiático, por sua vez, alargou a compreensão dos sistemas de parentesco e das alianças feitas por regras de casamento. Da África, lembravam, veio um entendimento melhor das linhagens, da bruxaria e da política.

Davam então o passo ousado. Os povos da América do Sul, menos pesquisados e conhecidos, deveriam também fazer sua contribuição, resultado de uma característica específica dessas sociedades: o privilégio que conferiam, em suas cosmologias, ao corpo. “Ele, o corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado, resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as sociedades indígenas têm da natureza do ser humano.”

Perguntei a Marcio Silva se seu ex-orientador, à época desse artigo um jovem de 27 anos, não lhe parecia “atrevido, pretensioso”. “Essa palavra, ‘atrevido’, é boa”, respondeu Silva. “Às vezes ele parece gostar de correr riscos.”

Deu um exemplo. Nos anos 80, Viveiros de Castro retomou um tema, antes central, que estava fora de moda na antropologia: o parentesco. A partir do final do século XIX, pesquisadores passaram a identificar os laços forjados pela consanguinidade – aqueles que criam grupos de descendência – e pela aliança por casamento – laços que “costuram” as relações sociais entre grupos diferentes – como a coluna vertebral das “sociedades primitivas”. Era assim que elas se mantinham coesas, e era por meio do estudo desses laços que os antropólogos poderiam conhecê-las melhor.

Viveiros de Castro fez uma pergunta distinta. Ele não queria saber apenas o que o parentesco dizia sobre os povos indígenas, mas também o que as culturas ameríndias teriam a dizer sobre o parentesco. Será que os índios explicavam o parentesco do mesmo modo que nós, ocidentais? A ideia que lhe ocorreu é em tudo semelhante à lógica do perspectivismo. Pode ser considerada um passo prévio, mais fácil de compreender quando já se conhece a metafísica dos povos indígenas das Américas.

No Ocidente, ele disse, o que é dado são as relações de filiação, de “consanguinidade”. A ligação entre pais, irmãos e filhos é “natural”, logicamente anterior às relações com esposa, sogros e cunhados – relações de “afinidade” que não são dadas, mas construídas pelas escolhas dos indivíduos.

Para os povos ameríndios, contudo, o valor fundamental não está nos laços biológicos, “de sangue”, mas nas relações de aliança, com sogros e cunhados. Aquilo que para nós faz parte da cultura, do que precisa ser construído, para eles já é dado, é a referência que dá sentido e organiza as relações sociais. A lógica da afinidade, das normas que proíbem ou prescrevem casamentos entre pessoas e grupos distintos, é usada mesmo nas relações sociais relativamente distantes, com outros povos, inimigos e espíritos; relações que não têm a ver, necessariamente, com a troca de cônjuges.

O que precisa ser construído por eles, por outro lado, é aquilo que para nós já é dado: o corpo. A “consanguinidade”, a relação de semelhança corporal entre parentes e, até, entre pais e filhos, precisa ser fabricada mesmo depois do nascimento – por meio da partilha dos mesmos alimentos, por exemplo. Daí a importância do corpo, notada no artigo de 1978.

O atrevimento de seu ex-orientador, segundo Marcio Silva, foi tirar todas as consequências desse fato. Os dois modos de compreensão do parentesco têm implicações políticas distintas. “Numa sociedade como a nossa, a consanguinidade, a relação entre irmãos, é pensada como um modelo da relação social”, disse Silva. “Por exemplo, como Viveiros de Castro lembrava, na Revolução Francesa você tem liberdade, igualdade e fraternidade. Fiquemos com a fraternidade. A relação social boa é como se fosse uma relação entre irmãos. Mesmo que eu não tenha parentesco com você, eu sou seu irmão: somos ambos filhos de Deus. Também nas constituições laicas operamos com base nessa metáfora fortíssima de irmãos. O que significa dizer que você é meu irmão? Significa que somos semelhantes e que somos conectados por um ente superior. Que pode ser o Estado, pode ser Deus, pode ser o nosso pai, se formos irmãos mesmo. Isso que nos unifica é um termo superior.”

Já na lógica social dos povos indígenas, não há termo superior que unifique. Os outros – que podem ser um povo indígena diferente, o inimigo, os animais – são para os ameríndios, antes de tudo, uma espécie de cunhado. “O que significa chamar de cunhado? Entre dois cunhados não tem ninguém que seja superior: tem uma mulher que é diferente para cada um.
Para um é irmã, para o outro é esposa. Somos relacionados porque vemos uma mesma mulher de maneiras diferentes.” Não há, aí, necessidade de Deus, de pai ou de Estado para se pensar a boa relação social.
“Lembro-me dele dizendo em sala de aula, em tom de blague, que na Amazônia não valia o lema ‘liberdade, igualdade e fraternidade’. Liberdade, tudo bem. Mas no lugar de igualdade, diferença. No lugar de fraternidade, afinidade.”

Se a Melanésia havia contribuído com a noção de reciprocidade, e a África com os grupos de descendência, então os povos da América do Sul forneciam, no início dos anos 90, a ideia de “afinidade potencial”. Tanto nesse caso quanto no perspectivismo ameríndio, que surgiria poucos anos depois, Viveiros de Castro usou conceitos ocidentais – natureza, cultura, consanguinidade, afinidade – para tentar entender as culturas ameríndias. Mas descobriu que era preciso invertê-los para que funcionassem bem naquelas sociedades.

As consequências políticas dessa operação, tanto no caso do parentesco quanto no da metafísica indígena, em que a natureza muda dependendo do observador, eram as mesmas. “Esse é um mundo em que você não tem um ponto de vista dominante, soberano, monárquico”, explicou Viveiros de Castro. “Ao contrário, a condição de sujeito está espalhada, dispersa. Não tem uma transcendência, um ponto de vista do todo, privilegiado. O perspectivismo é o correlato cosmológico, metafísico, da ideia de sociedade contra o Estado, do Pierre Clastres.”
 
No seu apartamento, em outubro passado, Viveiros de Castro parecia irritado. Explicou que havia se contrariado no trabalho, o que não era incomum. Descreveu mais de três décadas de uma relação conflituosa com seus colegas de instituição. A origem dos aborrecimentos, ele disse, remontava a 1978, quando havia concluído o mestrado e concorreu a uma vaga de professor assistente no Museu Nacional. Dois candidatos se apresentaram: ele próprio e o antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho.

Oliveira Filho é, hoje, um dos principais representantes de uma linha de pesquisa importante na instituição carioca. Seus seguidores procuram entender os povos indígenas em suas relações com a sociedade e o Estado brasileiros. Essa corrente descende de Darcy Ribeiro, passando por Roberto Cardoso de Oliveira, um dos criadores da pós-graduação em antropologia no Museu Nacional, em 1968. Cardoso de Oliveira descreveu a “sociologia do contato”, que ele praticava, como uma tentativa de explicar a “sociedade tribal, vista não mais em si, mas em relação à sociedade envolvente”.
Em um artigo recente, em que mencionava os Ticuna, do Amazonas, João Pacheco de Oliveira ressaltou que mesmo as “crenças, costumes e princípios organizativos” dos povos indígenas estão “interligados e articulados com determinaçõese projetos da sociedade nacional”.

Por telefone, o norte-americano Anthony Seeger, coautor do artigo de 1978 e orientador de Viveiros de Castro no doutorado, disse que ele e o aluno acreditavam que “as sociedades em si também mereciam atenção”. Ao se preocuparem com o parentesco e com as cosmologias dos grupos que estudavam, praticavam uma etnologia – a parte da antropologia que se ocupa dos povos indígenas – “clássica”, tida por representantes da outra corrente como excessivamente “filosófica”, apolítica e pouco comprometida com as circunstâncias sociais dos índios. De sua parte, Viveiros de Castro acredita que é a “sociologia do contato”, uma linha de pesquisa, ele diz, associada à “esquerda tradicional”, que é politicamente questionável. Seus rivais veriam os índios a partir da mesma perspectiva adotada pelo Estado, como parte do Brasil. Ele, ao contrário, inverteria o ponto de vista. Partiria das sociedades indígenas, tomando suas ideias e práticas como referências para criticar o Brasil, o Estado, o capitalismo.

Viveiros de Castro perdeu o concurso de 1978. Segundo ele porque os representantes da esquerda tradicional eram majoritários na banca. João Pacheco de Oliveira Filho foi o escolhido, mas uma segunda vaga foi criada. O etnólogo “clássico” se tornou, ele também, um jovem professor do Museu. Nos anos seguintes, o que começara como uma disputa teórica se transformaria em cizânia e ressentimento.

Tanto assim que as opiniões sobre o antropólogo carioca se dividem, de maneira marcada. Entre ex-alunos, ele é reconhecido por gestos de generosidade e de correção intelectual. Contudo, são também frequentes os relatos de arrogância na relação de Viveiros de Castro com os colegas, o que contribui para o clima de animosidade na instituição. Ele próprio disse representar, no Museu, “uma posição que é considerada trouble maker, anarquista, e que despreza os outros”. “Isso é quase verdade. Sou tido como alguém que não leva muito a sério o outro tipo de antropologia que é feita lá. De fato. Eu nunca manifestei isso, acho eu. Mas o pessoal percebe. Hoje eu diria que está quase todo mundo aliado ao João, e contra mim. Alguns ficam em cima do muro, que é a posição mais confortável.”

O antropólogo Paulo Maia, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-orientando de Viveiros de Castro, afirma que o antigo professor tende a assumir posições pouco diplomáticas. “Ele não quer encontrar um meio-termo: quer marcar posições”, disse Maia. “O Eduardo não busca o consenso e não gosta de pessoas que têm um caráter mais subalterno, boazinhas. Ele gosta de gente mais intempestiva mesmo. Na própria escrita dele, dá para ver isso. É um estilo que não é muito diferente do modo como ele fala. O que para muitos alunos é encantador. A escrita dele é cativante.”
 
Em 1997, a tensão entre colegas no Museu Nacional se tornou mais aguda. A instituição abriu concurso para professor titular, o posto mais alto da carreira universitária. Quase duas décadas depois da primeira disputa entre os dois, Viveiros de Castro e João Pacheco de Oliveira tinham novamente a intenção de se candidatar à mesma posição. Outros integrantes do departamento se mobilizaram para evitar o embate. “Houve uma pressão muito forte, dentro da instituição, para que só se apresentasse um candidato”, disse Viveiros de Castro. “Partindo daquele éthos característico da academia, em que você prefere arranjar as coisas para evitar situações delicadas. Entenda-se: para que não entre a pessoa que você não quer.”

A solução encontrada, segundo professores do Museu, foi a realização de um sorteio prévio: quem ganhasse se apresentaria como candidato, e o derrotado desistiria da disputa. Viveiros de Castro perdeu.

Naquele mesmo ano, o antropólogo viajou para a Inglaterra, convidado para uma temporada de um ano na Universidade de Cambridge. Lá, conheceu Marilyn Strathern, professora titular de antropologia social na instituição, talvez o cargo de maior prestígio da disciplina. Ela ainda não conhecia o trabalho do colega brasileiro, que fez quatro conferências sobre o perspectivismo ameríndio. Strathern disse ter ficado impressionada com o argumento, exposto com “erudição e autoconfiança” – o mesmo atrevimento que lhe causava problemas em casa ajudava-o a conquistar audiências estrangeiras. A ideia exposta por Viveiros de Castro pareceu à professora “profundamente imaginativa e bastante precisa”.

O texto sobre o perspectivismo foi lançado em inglês em 1998. “Foram essas conferências de Cambridge e a publicação em inglês que alçaram o tema a uma posição de destaque no campo antropológico”, observou Viveiros de Castro. Segundo Strathern, as ideias do brasileiro fazem, hoje, parte do cânone apresentado aos estudantes de pós-graduação da disciplina no Reino Unido.
 
O caráter conflituoso de Viveiros de Castro se manifesta nas redes sociais. O antropólogo tem mantido, nos últimos anos, intensa atividade política no Twitter e no Facebook. Seus curtos enunciados são às vezes enigmáticos, com frequência irônicos, quase sempre militantes. Em outubro, quando manifestantes subiram no Monumento às Bandeiras, em São Paulo, e cobriram de tinta as estátuas de Brecheret que celebram a conquista do Oeste pelos paulistas, com consequências trágicas para os índios, ele ofereceu seu veredicto: “É preciso derrubar essa porcaria.”

Boa parte das frases e dos pequenos textos que publicou no Twitter e no Facebook, desde junho, manifestava entusiasmo pelas manifestações de rua, das quais ele evitou participar, por medo de aglomerações. Seus posts revelavam também o que ele chamou de “simpatia” em relação à ação dos black blocs. “É espantoso como a esquerda tradicional está histérica com os black blocs”, ele me disse. “Está histérica porque não controla, porque não é partido. Não é militante de partido. Os black blocs nem existem como movimento. É uma tática.”

“Devo dizer que fiquei muito feliz de ver os manifestantes subirem na parte de cima do Caveirão. Gostaria que eles tivessem virado o Caveirão de cabeça para baixo. Se tivessem feito isso, acharia legal! E será que destruir a porta de um banco é uma coisa assim tão abominável? Em que será que se está tocando quando se quebra a porta de um banco? Por que deixa todo mundo tão nervoso?”

Já havia manifestado ideia semelhante no Facebook. “Quebrou uma vitrine do Banco Itaú, é vândalo, apanha da polícia e vai pro presídio; desapareceu com bilhões do BNDES, é empresário em dificuldades, vai para recuperação judicial”, publicou, no início de novembro. Estendeu-se um pouco mais noutro comentário: “O que o Estado faz, e deixa fazer, com os índios é um resumo altamente concentrado e potencializado do que ele faz, e deixa que façam, com toda a população. Os que dizem que não se pode mesmo dar mole para esses selvagens, que é preciso logo civilizá-los etc., são como o servo que se acha senhor porque o servo do lado levou mais chicotadas no lombo do que ele.”

Em seu apartamento, ao lado da mulher, o antropólogo explicou sua conversão recente às redes sociais, resultado de uma briga com a imprensa mainstream. Há pouco mais de três anos, a revista Veja publicou uma reportagem intitulada “A farra da antropologia oportunista”.
Criticava a multiplicação de povos indígenas no país, interessados nas terras que sua nova condição lhes daria direito. “Em 2000, o Ceará contava com seis povos indígenas”, o texto registrava. “Hoje, tem doze. Na Bahia, catorze populações reivindicam reservas. Na Amazônia, quarenta grupos de ribeirinhos de repente se descobriram índios.”

Citavam então Viveiros de Castro, atribuindo a ele uma opinião crítica aos “índios ressurgidos”: “Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente de cultura indígena original.” A primeira frase havia sido retirada de um texto publicado pelo antropólogo, intitulado “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”.

A segunda, ele nunca disse ou escreveu. “Colocaram entre aspas uma frase que tiraram de um artigo meu, e acrescentaram a ela outra, que eles inventaram.” Ao inventarem, puseram em sua boca ideias opostas às que ele defende. Nas últimas décadas, argumentou o antropólogo, tem acontecido no Brasil algo inverso ao problema que ocupava os fundadores da sociologia do contato. Em vez de os índios se tornarem, aos poucos, brasileiros, são os brasileiros que estão virando índios. E não é necessário um “ambiente de cultura indígena original” para que um grupo advogue essa condição.
“Várias populações tradicionais estão se redescobrindo indígenas. Isso acontece porque eram índios.

Foram obrigadas a esquecer que eram, forçadas a aprender português. Houve um processo de branqueamento que nunca se completou. E não se completar fazia parte do processo: o cara deixava de ser índio, mas você não o deixava virar branco. Parava no meio. Virava um brasileiro. O que é um brasileiro? É um índio pra quem você diz: ‘Você vai ser branco, você deixará de ser índio’, mas o cara para no meio. Você é quase branco. O cara perde a sua condição indígena, mas não ganha do outro lado.”

Foi para divulgar sua indignação com a revista, disse o antropólogo, que ele passou a usar as redes sociais. Primeiro o Twitter, no qual tem hoje cerca de 4 600 seguidores. Depois o Facebook, onde conta com mil amigos e quase 5 mil seguidores.
 
Um dos temas caros a Viveiros de Castro e a Déborah Danowski, tratado com frequência por ele em sua militância na internet, é o que chamam de “catástrofe” ambiental. Em outubro, no dia do primeiro leilão do pré-sal, o antropólogo escreveu: “Não faça parte das minorias com projetos ideológicos irreais: colabore para a destruição do planeta. Deus proverá. Viva Libra, viva a Shell, viva a Total, viva a China, viva o Brasil.” Em meados de novembro, um outro post conclamava: “Liberar a Terra das cadeias produtivas.”

Desde os anos 80, o antropólogo milita contra a construção de hidrelétricas na Amazônia. Foi um dos fundadores do ISA, o Instituto Socioambiental, uma das principais ONGs de defesa do meio ambiente e dos povos indígenas no país. Na sala de sua casa, no Rio, o casal citou estimativas de aquecimento global feitas pelo IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, da ONU. Um aumento de temperatura que não é improvável neste século, disseram, pode pôr em risco a maior floresta do planeta.
“A parte oriental da Amazônia é mais seca do que a ocidental”, afirmou o antropólogo. “Essa parte mais seca, em alguns lugares, está começando a perder mais água do que recebe. Aquilo está secando. Um processo de ressecamento progressivo, discreto talvez, no sentido de que não é uma coisa catastrófica. Mas acontece que, se essa floresta passa de determinado ponto crítico de ressecamento, uma hora pega fogo e ninguém mais apaga.”

Os dois lembraram ainda a impossibilidade de o planeta comportar, para toda a sua população, o atual padrão de produção e consumo ocidental. “O que vai acontecer, provavelmente, é a falência degenerativa, muito mais do que apocalíptica, do atual sistema técnico-econômico mundial, que não vai se sustentar”, disse Viveiros de Castro. “Temos que nos preparar para um mundo radicalmente diferente deste em que vivemos. Temos que pensar num mundo fora do milênio, fora da ideia de que um dia vamos dar tudo para todos, seja no capitalismo ‘sustentável’, dois ponto zero, seja no socialismo.

A ideia de que vamos finalmente chegar a um estágio de plenitude, de abundância e de equilíbrio. Nós não vamos. Minha impressão é de que estamos numa curva descendente do ponto de vista da civilização, talvez da espécie, e que a gente tem que se preparar para o declínio.”

Argumentei que há quem conte com inovações tecnológicas, como já aconteceu no passado, para mover a fronteira dos limites planetários. “Eu acho que isso é religião”, respondeu o antropólogo. “Essa coisa de que vamos sair dessa é teologia. É achar que o homem sempre pode dar um jeito, pela sua capacidade, de transcender as condições naturais. Isso para mim é cristianismo laicizado.”

O que fazer? “Oposição ao governo, dono de um projeto ecocida”, respondeu. O antropólogo votou em Marina Silva, em 2010, mas disse ter dúvidas se repetirá o apoio em 2014, caso ela venha a concorrer. “Não morro de paixão pelas alianças que ela fez nem por sua base de consulta intelectual”, composta por economistas liberais. “Mas nada, nem o Serra, vai me fazer votar na Dilma. Não adianta virem com o Serra pra cima de mim. ‘Olha o Serra!’ Não há Cristo, nem Diabo, que me faça votar na Dilma.”

A política partidária, de toda forma, parece pouco relevante em seu discurso, fatalista. “Pode ser que nós, ocidentais de classe média, o francês, o brasileiro rico de São Paulo, o americano, pode ser que passemos pela mesma coisa por que passaram os índios em 1500. Eles continuam aí, mas o mundo deles acabou em 1500. Se formos falar do fim do mundo, pergunte aos índios como é, porque eles sabem. Eles viveram isso. A América acabou. Pode ser que venhamos todos a ser índios, nesse sentido. Todos venhamos a passar por essa experiência de ter um mundo desabando. No caso deles, eles foram invadidos por nós. Nós também vamos ser invadidos por nós. Já estamos sendo invadidos por nós mesmos. Vamos acabar com nós mesmos da mesma maneira como acabamos com os índios: com essa concepção de que é preciso crescer mais, produzir mais.”

No seu apartamento, já de noite, Viveiros de Castro se disse pessimista. “Mas esse pessimismo não é paralisante. Não é um quietismo. A sensação que eu tenho é de que a gente está lutando dentro de casa. Quarteirão a quarteirão. Como essas guerrilhas.” Deu um exemplo de resistência. “Dizem que os índios já foram incorporados ao capitalismo. Mas não foram dominados mentalmente. Já foram dominados economicamente, politicamente, mas não mentalmente. O problema com os índios é que eles são insubordinados. Você não consegue domesticar o índio. É por isso que o governo tem tanto horror deles.”
“É isso que significa o brasileiro virar índio”, disse, alargando o sentido da frase. “Numa versão ‘Twitter’, para encurtar a conversa, é isso. É virar black bloc. Menos pelego, e mais black bloc.”
 
Em 2008, Marilyn Strathern se aposentou do cargo de professora titular de antropologia social, em Cambridge. Mais de um ano antes, tinha dado início ao processo de escolha de seu sucessor. Ela sugeriu ao etnólogo carioca que apresentasse sua candidatura ao posto.

Viveiros de Castro disse que foi só por causa da insistência da amiga que concordou em concorrer. “Relutei e tergiversei, pois não tinha a intenção de aceitar”, diria mais tarde. Além de razões práticas – como o trabalho de sua mulher no Rio –, afirmou que “sabia do tamanho do abacaxi que era ser o cabeça da antropologia social” na universidade inglesa. Disse não ter vontade de se dedicar à administração acadêmica, o que certamente seria exigido pela posição.

De toda forma, no final de 2007, estava entre os três finalistas. Viajou à Inglaterra para apresentar uma aula na universidade, parte do processo de seleção. Na sala em que falou, numa noite fria do outono inglês, alunos e professores se apertavam, muitos sentados no chão, outros espremidos nos cantos, junto às paredes.

Foi só quatro anos depois de concorrer à vaga na Inglaterra que Viveiros de Castro pôde afinal se candidatar, em 2011, ao posto de professor titular do Museu Nacional. O memorial que escreveu para o pleito foi redigido “num tom quase insolente” de propósito, ele disse. Ali ele afirma que sua produção intelectual “exerceu uma influência teórica muito significativa” na antropologia, “talvez a influência mais significativa exercida até o presente pelo trabalho de um antropólogo brasileiro”. No mesmo texto, voltou ao assunto do cargo em Cambridge, revelando seu desfecho. “Fizeram-me saber (ou deixaram-me saber, como se diz) que eu tinha todas as chances de ser o escolhido. Escrevi rapidamente ao departamento e a Marilyn recusando o posto, just in case. Eu realmente queria continuar sendo um jardineiro em Petrópolis.”

Considerava já ter alcançado, então, o objetivo de se fazer ouvir ao norte do Equador. No memorial, um balanço de mais de três décadas de atividade intelectual, Viveiros de Castro afirmou ter tido, desde o início de sua carreira, o propósito explícito de “rebater para a matriz nossas lucubrações periféricas” e de “meter a colher na sopa metropolitana”.
“Cuido que consegui”, ele conclui, sem modéstia.

07 de janeiro de 2014
RAFAEL CARIELLO