"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

ASSIM NÃO DÁ, VLADIMIR!

Malho em ferro frio ao cobrar que esquerdistas façam um debate ao menos factualmente honesto

Vladimir Safatle, possível candidato do PSOL ao governo de São Paulo, surpreendeu os leitores deste jornal ao acusar, em sua coluna de terça, a polícia de ser responsável pela morte de quatro manifestantes: Cleonice Vieira de Moraes, Douglas Henrique de Oliveira, Luiz Felipe Aniceto de Almeida e Valdinete Rodrigues Pereira. Seriam, asseverou, apenas algumas das vítimas das PMs. A palavra delicada para definir a afirmação é "mentira". As polícias, felizmente, não mataram ninguém nos tais protestos.

Cleonice, uma gari, morreu em Belém de infarto. Varria rua quando houve um confronto entre manifestantes e a PM. Inalou alguma quantidade de gás lacrimogêneo e teve infarto depois disso, mas não por causa disso. O filósofo deve conhecer a falácia lógica já apontada pelos escolásticos: "post hoc ergo propter hoc" -"depois disso, logo por causa disso". Nem tudo o que vem antes é causa do que vem depois. É como no filme "Os Pássaros", de Hitchcock. Tudo se dá depois da chegada da loura, mas a loura é inocente, Vladimir! A notícia sobre a morte está aqui (is.gd/6QWqQM).

Douglas e Luiz Felipe morreram ao cair do viaduto José Alencar, em Belo Horizonte. Não há evidências de que estivessem sendo encurralados pela polícia. Ainda que sim, seria preciso examinar as circunstâncias. As notícias sobre suas respectivas mortes estão nestes endereços: is.gd/NxVkIo e is.gd/lVau1v.

A mentira sobre Valdinete é mais escandalosa (is.gd/i4A1Yf). Foi atropelada por um motorista que havia furado um bloqueio no km 30 da BR-251, em Cristalina, em Goiás. No mesmo episódio, morreu outra mulher, Maria Aparecida. Elas decidiram botar fogo em pneus para cobrar melhorias no distrito de Campos Lindos -nada a ver com os protestos dos coxinhas vermelhos. O motorista de um Fiat Uno não parou, atingiu as duas e sumiu. Elas não fugiam da violência policial.

Vladimir resolve moralizar o debate e escreve: "não consta que suas mortes tiveram força para gerar indignação naqueles que, hoje, gritam por uma bisonha 'lei de antiterrorismo' no Brasil. Para tais arautos da indignação seletiva, tais mortes foram 'acidentais' (...). Mas a morte do cinegrafista, ao menos na narrativa que assola o país há uma semana, não foi um acidente infeliz e estúpido (...)."

"Não consta que tiveram" é um coquetel molotov na língua pátria. Isso é com ele. A morte de Andrade não foi um acidente. O destino do artefato eram os policiais. Vladimir parece achar que a farda cassa dos PMs a sua condição de humanos. Indignação seletiva é a dele. Segundo acusa, estão usando a "morte infeliz de alguém" para "criminalizar a revolta da sociedade brasileira". O PSOL e os "black blocs" não são "a sociedade brasileira". De resto, na ordem democrática, é uma tolice afirmar que a "revolta" está sendo criminalizada. Se ela incidir em práticas puníveis pelo Código Penal, os crimes se definem pelos atos, não pelas vontades.

Sim, eu sei: malho em ferro frio ao cobrar que esquerdistas façam um debate ao menos factualmente honesto. Eu nunca me esqueço de um emblema desse modo que eles têm de argumentar. Até havia pouco, em defesa da legalização do aborto no Brasil, sustentavam que 200 mil mulheres morriam a cada ano vítimas de tal procedimento. Em fevereiro de 2012, a ministra das Mulheres, Eleonora Menicucci, levou tais números mentirosos à ONU (is.gd/qHYt5S). Um dia me enchi e peguei os dados do Ministério da Saúde sobre mortes de mulheres e suas causas e fiz as contas. Os abortistas haviam multiplicado por 200 o numero de óbitos em decorrência do aborto (is.gd/6Iu4EJ).

A mentira é mais útil às causas das esquerdas do que a verdade. Não fosse assim, homicidas como Lênin, Stálin, Trótski ou Mao Tse-tung não seriam cultuados ainda hoje. Isso tudo é um pouco constrangedor, mas, como escreve Janio de Freitas, continuarei tentando.

O EFEITO VAQUINHA

 

GOSTO DE QUERO MAIS

 

A CALMA DE BARBOSA

 
 
Perguntado sobre sua expectativa em relação ao resultado do novo julgamento da acusação de formação de quadrilha no processo do mensalão petista, que começou ontem, o presidente do Supremo tribunal FederalJoaquim Barbosa, deu de ombros, dizendo que para ele tanto faz como tanto fez . Essa súbita aceitação da decisão do plenário do STF, sem nenhuma reação mais contundente, parece ser provocada pela certeza de que o veredicto será alterado, e os condenados por formação de quadrilha terão suas penas reduzidas.
Tudo indica que os dois novos ministros Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso inclinam-se, por votos anteriores e comentários, a decidir a favor dos condenados. Mas há outra razão para a aparente tranquilidade, pelo menos até agora, com que Joaquim Barbosa está recebendo a reversão de um dos pontos centrais da acusação do mensalão.

Com ou sem crime de quadrilha, a decisão está tomada, e os condenados já estão na cadeia. Houve corrupção, desvio de dinheiro público, definiu o Supremo tribunal Federal, e a dificuldade para alterar isso em uma eventual revisão criminal é muito grande. Tão difícil de acontecer, por não haver razões técnicas para tal, que o advogado de Genoino, o mais excitado ontem no julgamento, admitiu que ela se dará, se acontecer, dentro de 10, 20, 30 anos .
A única novidade do julgamento de ontem do STF foi o tom explicitamente político que os advogados do núcleo político do mensalão deram à defesa. O mais veemente deles foi o advogado Luiz Fernando Pacheco, que, ao contrário de outras intervenções, quando tratou Genoino como um herói brasileiro, ontem preferiu ameaçar os ministros do Supremo com a força do PT.

A associação dos condenados do núcleo político do mensalão - Dirceu, Delúbio e Genoino - foi descrita não como a formação de uma quadrilha, como até o momento o STF entendeu, mas a união para a criação de um partido político para salvar o país . Um partido, frisou bem o advogado, que está no poder há 12 anos e, segundo ele, baseado nas pesquisas eleitorais, deve manter esse controle político do país pelo menos por mais um mandato presidencial.

Os argumentos técnicos para desqualificar a formação de quadrilha foram apenas subsidiários às defesas, que se empenharam em reafirmar a inocência de seus clientes, não apenas no tema em questão, mas também sobre o tema geral da corrupção política, que já é questão julgada e definida pelo STF.

Os advogados de Delúbio Soares e José Dirceu foram mais formais com relação ao já decidido, admitindo mesmo Malheiros Filho que Delúbio fora coautor dos crimes cometidos. O advogado José Luis de Oliveira Lima limitou-se a dizer que José Dirceu (...) teve 40 anos de vida pública sem mácula, sem qualquer mancha. O meu cliente, José Dirceu, é inocente .

O mais enfático da tarde foi o advogado de Genoino, que atacou de frente o processo do mensalão, classificando-o de a maior farsa da História da política brasileira . Luiz Fernando Pacheco mais uma vez refutou a acusação de corrupção ativa - que não estava em discussão - para concluir que, portanto, não houve também a formação de quadrilha.

O advogado de Dirceu já havia feito uma menção, de passagem, ao fato de que os condenados no núcleo político haviam se reunido não para formar uma quadrilha, mas, sim, um partido político. Mas o de Genoino foi além, afirmando que não houve a intenção de formar uma sociedade de delinquentes , mas, sim, um partido político que encampou o poder e o poder vem mantendo há 12 anos. Dizer que havia uma quadrilha é uma tese absurda, e o povo brasileiro já refutou isso .

De maneira surpreendente, o advogado Luiz Fernando Pacheco referiu-se à mais recente pesquisa de opinião que mostra a presidente Dilma em primeiro lugar na disputa presidencial para perguntar aos ministros do STF: O povo brasileiro quer ser governado por quadrilheiros? Acho que não .

O raciocínio politicamente tosco do advogado de Genoino é semelhante aos que tratam as vaquinhas para pagar as multas dos mensaleiros, ou a reeleição de Lula em 2006, como provas de que o povo já inocentou o PT.

Mas o que ficará na História é que, pela primeira vez, políticos poderosos foram para a cadeia por crime de corrupção. E a primeira vez não se esquece. Talvez por isso Joaquim Barbosa esteja tão calmo.

21 de fevereiro de 2014
Merval Pereira, O Globo

ÁRABES DE ISRAEL: NÃO QUEREMOS VIVER EM UM ESTADO PALESTINO


          Internacional - Oriente Médio 
É muito mais fácil para os palestinos acusarem Israel de racismo do que admitirem que não querem ser parte de um Estado palestino.
“Esta é uma proposta imaginária que se relaciona com os árabes como se eles fossem peças de xadrez que podem ser movidas para lá e para cá, de acordo com a vontade dos jogadores” , disse Ahmed Tibi, membro do Knesset (o Parlamento de Israel).

Se os membros árabes do Knesset estão tão preocupados com a possibilidade de se tornarem cidadãos de um Estado palestino, eles deveriam trabalhar em direção à integração, e não à separação de Israel, e dar mais ouvidos aos seus constituintes do que às vozes do Fatah e do Hamas.

Novas conversações sobre trocas de terras [1] entre Israel e um futuro Estado palestino deixaram muitos árabes israelenses preocupados a respeito da perda do seu status como cidadãos de Israel.
 
De acordo com o diário israelense Ma'ariv, Israel propôs aos americanos transferir as comunidades árabes israelenses para a Autoridade Palestina como parte de uma troca de terras que colocaria os assentamentos judeus na Margem Ocidental sob a soberania israelense.
 
A proposta significa que cerca de 300 mil árabes israelenses teriam permissão para ficar em seus vilarejos na área do “triângulo” ao longo da fronteira com a Margem Ocidental. No entanto, esses cidadãos viveriam sob a jurisdição de um Estado palestino.
A nova-velha proposta foi fortemente rejeitada pelos líderes dos árabes israelenses [2], que expressaram irritação com relação à idéia.
 
Foi difícil encontrar pelo menos um árabe israelense que apoiasse a proposta publicamente.
“Esta é uma proposta imaginária que se relaciona com os árabes como se eles fossem peças de xadrez que podem ser movidas para lá e para cá, de acordo com a vontade dos jogadores”, disse Ahmed Tibi, membro do Knesset [3].
 
Outro membro árabe do Knesset, Afu Ighbarriyeh, disse: “Cidadãos de um Estado democrático não são instrumentos ou reféns nas mãos de seu governo”.[4]
Tanto Tibi quanto Ighbarriyeh são de cidades que ficam na área do triângulo: Taybeh e Umm al-Fahm.
 
Mas o que os membros árabes do Knesset não estão falando abertamente é que eles não querem acordar de manhã e descobrir que são cidadãos de um Estado palestino. É muito mais fácil para os palestinos acusarem Israel de racismo do que admitirem que não querem ser parte de um Estado palestino.
 
Um pesquisa de opinião realizada em novembro de 2007 pelo Centro Árabe de Pesquisa Social Aplicada verificou que mais de 70% dos árabes israelenses são contrários a qualquer proposta de anexar cidades e vilarejos da área do triângulo à Autoridade Palestina, em troca da anexação dos assentamentos a Israel.[5]
 
Outra pesquisa de opinião pública, realizada pelo Professor Sammy Smooha [6], da Universidade de Haifa, mostrou que três quartos dos árabes israelenses crêem que os representantes árabes deveriam tratar de questões do dia-a-dia em vez do conflito israelense-palestino.
 
Essa pesquisa também verificou que, pelos últimos dez anos, os árabes israelenses se tornaram mais extremos em suas visões com relação a Israel e sua maioria judia.
O Professor Smooha disse que os árabes israelenses estão interessados em receber os benefícios que o Estado lhes proporciona -- estabilidade, democracia, serviços, e assim por diante. A liderança árabe é mais crítica de Israel do que o público árabe, que é “muito mais pragmático do que seus líderes”, explicou ele.
 
O Knesset é composto por 120 membros, 12 dos quais são árabes. Alguns dos parlamentares árabes, nas duas últimas décadas, têm agido e falado de maneira a causar dano aos interesses dos 1,5 milhões de cidadãos árabes de Israel.
 
Eles são, em primeiro lugar e em maior intensidade, responsáveis por radicalizar um grande número de árabes israelenses e por fazê-los se voltar contra o Estado.
 
Esses parlamentares, na verdade, têm usado mais tempo defendendo os interesses dos palestinos na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza do que defendendo os interesses de seus eleitores.
 
Um membro do Knesset que se identifica abertamente com o Fatah ou com o Hamas ou com o Hezb'allah (Partido de Alá), é responsável pela situação de que, hoje, muitos judeus israelenses veem os árabes israelenses como uma “quinta coluna” e como “um inimigo de dentro”.
 
Esses membros do Knesset estão totalmente conscientes de que eles perderiam a maior parte de seus privilégios se estivessem debaixo da maioria dos regimes árabes -- razão pela qual eles são fortemente contrários à recente proposta.
 
Os palestinos possuem seu próprio parlamento na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza. Mas esse parlamento, conhecido como Conselho Legislativo Palestino, está paralisado desde que o Hamas tomou o controle da Faixa de Gaza, em 2007.
 
Na maioria dos países árabes, os membros do parlamento que ousarem criticar seus governantes frequentemente são confinados a seus lares ou ficam presos atrás das grades.
Se os membros árabes do Knesset estão tão preocupados com a possibilidade de se tornarem cidadãos de um Estado palestino, eles deveriam trabalhar em direção à integração, e não à separação de Israel. Os parlamentares árabes precisam ouvir mais o que seus constituintes estão lhes dizendo do que ao Fatah e ao Hamas.
(Khaled Abu Toameh -- www.gatestoneinstitute.org)

Notas:


Khaled Abu Toameh,
um muçulmano árabe, é jornalista veterano, vencedor de prêmios, que vem dando cobertura jornalística aos problemas palestinos por aproximadamente três décadas. Estudou na Universidade Hebraica e começou sua carreira como repórter trabalhando para um jornal afiliado à Organização Para a Libertação da Palestina (OLP), em Jerusalém. Toameh trabalha atualmente para a mídia internacional, servindo como “olhos e ouvidos” de jornalistas estrangeiros na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza.

Os artigos de Abu Toameh têm aparecido em inúmeros jornais em todo o mundo, inclusive no Wall Street Journal, no US News & World Report e no Sunday Times de Londres. Desde 2002, tem escrito sobre os problemas palestinos para o jornal Jerusalem Post. Toameh também é produtor e consultor da NBC News desde 1989.

21 de fevereiro de 2014
Khaled Abu Toameh
Publicado na revista Notícias de Israel - http://www.beth-shalom.com.br/

FASCISMO, RÚSSIA E UCRÂNIA


          Artigos - Globalismo 
Putin quer a Ucrânia em sua União Eurasiana, o que quer dizer que a Ucrânia tem de ser autoritária, e isto significa que a Maidan deve ser destruída.
O eurasianismo não é somente a fonte ideológica da União Eurasiana, é também o credo de muitas pessoas na administração Putin.

N.T.
: Artigo publicado na edição de 20 de Março de 2014 da The New York Review referente ao atual conflito na Ucrânia. A exposição do cenário político e cultural desse conflito feita pelo autor é importante no entendimento do cenário latino-americano atual e, particularmente, no conflito que hoje ocorre na Venezuela, como pode ser visto pela leitura dos debates entre o professor Olavo de Carvalho e o teórico russo Aleksandr Dugin.

Os estudantes foram os primeiros a protestar contra o regime do presidente Viktor Yanukovych na Maidan, a praça central de Kiev, novembro passado. Esses eram os ucranianos que mais tinham a perder, os jovens que sem dúvidas se vêem como europeus e que desejam ter uma vida e uma pátria ucraniana européia. Muitos deles eram alinhados politicamente à esquerda, alguns deles radicalmente à esquerda. Após anos de negociações e meses de promessas, o seu governo, sob a administração do presidente Yanukovych, no último momento deixou de assinar um importante acordo com a União Européia. 


Quando a polícia de choque entrou em cena e reprimiu os estudantes novembro passado, um novo grupo, dos veteranos do Afeganistão, foi para a Maidan. Esses homens de meia idade, soldados da reserva e oficiais do Exército Vermelho, muitos deles carregando as cicatrizes dos ferimentos em campo de batalha, foi para a Maidan, como eles diziam, para proteger “seus filhos”. Eles não se referiam diretamente aos seus filhos e filhas: eles se referiam ao melhor da juventude, o orgulho e o futuro do país. Depois dos veteranos do Afeganistão vieram muitos outros, dezenas de milhares seguidos por centenas de milhares, agora nem tanto a favor da Europa mas em defesa da decência. 

O que quer dizer ir para a Maidan? A praça está localizada perto de alguns dos maiores prédios do governo e é agora um local tradicional para protestar. É importante ressaltar que a palavra maidan existe em ucraniano mas não em russo, e que mesmo as pessoas que falam russo usam essa palavra devido ao seu significado especial. Na sua origem, é a palavra arábica para "praça", um espaço público.
Porém, maidan hoje quer dizer em ucraniano o mesmo que a palavra grega agora: não simplesmente um mercado público onde as pessoas podem se encontrar, mas um local onde as pessoas se encontram deliberadamente, precisamente para deliberar, para conversar e para criar uma sociedade política. Durante os protestos a palavra maidan veio a se referir ao ato público da política em si. Assim, por exemplo, as pessoas que usam seus carros para organizar a atenção pública e proteger os outros protestantes são chamados automaidan

Os protestantes representam todos os grupos de cidadãos ucranianos: Os que falam russo e os que falam ucraniano (mesmo que a maior parte dos ucranianos sejam bilíngues), pessoas das cidades e do campo, as pessoas de todas as regiões do país, os membros de todos os partidos políticos, os jovens e os idosos, os cristãos, os muçulmanos e os judeus. Todas das maiores vertentes do cristianismo estão representadas por fiéis e a maior parte delas pelo clero. Os Tártaros da Criméia marcharam em número impressionante e as lideranças judaicas fizeram questão de apoiar o movimento. A diversidade da Maidan impressiona: o grupo que monitora os hospitais para que o regime não possa sequestrar os feridos é organizado por jovens feministas. Um telefone de emergência que os protestantes ligam quando necessitam de ajuda é mantido por ativistas LGBT.

Em 16 de janeiro, o governo ucraniano, encabeçado pelo presidente Yanukovych, tentou colocar um fim na sociedade civil ucraniana. Uma série de leis passadas as pressas e sem seguir os procedimentos normais restringiram a liberdade de expressão e de comício, e removeram os poucos entraves que restavam a autoridade do executivo. Isso foi feito com o intento de levar a Ucrânia a uma ditadura e tornar todos os participantes na Maidan, que naquela altura provavelmente já somavam alguns poucos milhões, criminosos. O resultado foi que os protestos, até então pacíficos, se tornaram violentos. Yanukovych perdeu o apoio mesmo na sua base política no sudeste, próxima da fronteira com a Rússia. 

Após semanas respondendo pacificamente as prisões e as agressões da polícia de choque, muitos ucranianos concluíram que tinham chegado ao limite. Uma parte dos protestantes, longe de serem a maioria dos alinhados à direita e à direita extrema, decidiram entrar em confronto com a polícia. Entre eles estavam membros do partido de extrema direita Svoboda e um novo conglomerado de nacionalistas que se intitulam Setor Direito (Pravyi Sektor). Jovens, alguns de grupos da direita e outros não, tentaram tomar a força os espaços públicos disputados pela polícia de choque. Jovens judeus formaram seu próprio grupo de combate, ou sotnia, para lutar contra as autoridades. 

Mesmo tendo Yanukovych revogado a maior parte das leis ditatoriais, a violência ilegal do regime, que havia começado em novembro continuou em fevereiro. Membros da oposição foram alvejados e assassinados, ou molhados pelos carros de água usados para dispersar manifestações em temperaturas abaixo de zero para que morressem de hipotermia. Outros foram torturados e deixados para morrer no mato. 

Durante as duas primeiras semanas de fevereiro, o regime de Yanukovich buscou restaurar algumas das leis ditatoriais por decretos, atalhos burocráticos e novas legislações. Em 18 de fevereiro, um debate parlamentar que estava anunciado para tratar de uma reforma constitucional foi cancelado. Ao invés desse debate, o governo colocou milhares de policiais do batalhão de choque contra os manifestantes de Kiev. Centenas de pessoas foram feridas por balas de borracha, gás lacrimogêneo e cassetetes. Dezenas foram mortas. 

* * *
 
O futuro desse movimento de protestos será decidido pelos ucranianos. Ainda assim, os protestos haviam começado na esperança de que a Ucrânia pudesse entrar para a União Européia, uma aspiração que para muitos ucranianos representa algo como uma combinação de estado de direito, ausência do medo, fim da corrupção, estado de bem estar social e livre mercado sem a intimidação dos sindicatos controlados pelo presidente. 

O curso dos protestos foi muito influenciado pela presença de um projeto rival para a Ucrânia, apoiado por Moscou e chamado de União Eurasiana. Trata-se de uma união internacional política e comercial que ainda não existe mas que deve passar a existir em janeiro de 2015. A União Eurasiana, ao contrário da União Européia, não está baseada nos princípios da igualdade e da democracia nos seus países membros, nem no estado de direito, nem nos direitos humanos.

Ao contrário, é uma organização hierárquica, que por sua natureza parece improvável que admita qualquer membro que seja democrático, com estado de direito e direitos humanos. Qualquer democracia na União Eurasiana seria uma ameaça ao poder de Putin na Rússia. Putin quer a Ucrânia em sua União Eurasiana, o que quer dizer que a Ucrânia tem de ser autoritária, e isto significa que a Maidan deve ser destruída.
As leis ditatoriais de 16 de janeiro eram obviamente baseadas nos modelos russos, e foram propostas por legisladores ucranianos com laços fortes com Moscou. Essas leis parecem ter sido a condição imposta pela Rússia para o apoio financeiro ao regime de Yanukovych. Antes de serem anunciadas, Putin ofereceu a Ucrânia um grande empréstimo e prometeu reduzir o preço do gás natural Russo. Todavia, em janeiro o resultado não foi o alinhamento à Rússia. As pessoas da Maidan se defenderam, e os protestos continuaram. Onde isso tudo vai levar ninguém pode adivinhar; somente o Kremlin expressa certeza em relação ao que tudo isso significa.

Os protestos na Maidan, nos foi dito diversas vezes pela propaganda russa e pelos amigos do Kremlin na Ucrânia, significavam o retorno do nacional-socialismo à Europa. O ministro de relações exteriores russo palestrou aos alemães em Munique sobre o apoio dos protestantes a pessoas que saúdam Hitler. Naturalmente, é importante que se esteja atento à extrema direita na política e história ucraniana. Essa ala política ainda é uma presença séria nos dias de hoje, ainda que menos importante que a extrema direita na França, na Áustria ou na Holanda. Ainda assim, é o regime ucraniano, não seus opositores, que está retomando o anti-semitismo, instruindo sua polícia de choque de que a oposição é liderada por judeus. Em outras palavras, o governo ucraniano está dizendo para seus policiais que o oponente é judeu e dizendo para nós que o oponente é nazista. 

O mais estranho em relação às aspirações de Moscou é a ideologia política dos seus teóricos. A União Eurasiana é a inimiga da União Européia, não só na estratégia mas também na ideologia. A União Européia se baseia em uma lição histórica: de que as guerras do século XX se basearam em idéias falsas e perigosas, o nacional-socialismo e o stalinismo, que devem ser rejeitadas e de fato superadas em um sistema que garanta livres mercados, livre fluxo de pessoas e estado de bem estar social. O Eurasianismo, ao contrário, se apresenta com seus defensores como o oposto da democracia liberal. 

A ideologia eurasiana pinta uma lição totalmente diferente do século XX. Fundada por volta de 2001 pelo cientista político russo Aleksandr Dugin, ela propõe a realização do nacional-bolchevismo. Ao invés de rejeitar ideologias totalitárias, o eurasianismo chama os políticos do século XXI a buscar o que é útil tanto no fascismo como no stalinismo. O principal trabalho de Dugin, Os Fundamentos da Geopolítica, publicado em 1997, segue de perto as idéias de Carl Schmitt, o líder dos teóricos nazistas. O eurasianismo não é somente a fonte ideológica da União Eurasiana, é também o credo de muitas pessoas na administração Putin e a força motriz de um movimento bastante ativo da juventude russa de extrema direita. Por anos Dugin defendeu abertamente a divisão e colonização da Ucrânia. 

O homem de referência para as políticas eurasianas e ucranianas no Kremlin é Sergei Glazyev, um economista que, como Dugin, tende a combinar nacionalismo radical com nostalgia pelo bolchevismo. Ele foi membro do Partido Comunista e deputado comunista no parlamento russo antes de se tornar um dos fundadores do partido de extrema direita chamado Rodina, ou Terra-mãe. Em 2005, alguns de seus deputados assinaram uma petição ao procurador geral russo pedindo que todas as organizações judaicas fossem banidas da Rússia. 

Mais tarde, naquele mesmo ano, o Rodina foi proibido de participar das futuras eleições depois de reclamações de que suas propagandas incitavam o ódio racial. A mais notória dessas propagandas mostrava pessoas negras comendo melancias e jogando as cascas no chão, para então chamar os russos para a limpeza de suas cidades. O livro de Glazyev Genocídio: Rússia e a Nova Ordem Mundial defende que as forças sinistras da “nova ordem mundial” conspiraram contra a Rússia nos anos 90 para impor políticas econômicas que levaram ao “genocídio”. Esse livro foi publicado em inglês pela revista de Lyndon LaRouche Executive Intelligence Review com prefácio de LaRouche. Hoje, a Executive Intelligence Review ecoa a propaganda do Kremlin, disseminando em língua inglesa que os protestantes ucranianos queriam um golpe de estado nazista e que iniciaram uma guerra civil.

* * *
 
A campanha populista na mídia pela União Eurasiana está agora nas mãos de Dmitry Kiselyov, o anfitrião do mais importante talk show da Rússia e, desde dezembro, também diretor da estatal de mídia russa designada a formar a opinião pública da nação. Mais conhecido por dizer que os gays que morrem em acidentes de carro devem ter seus corações cortados de seus corpos e incinerados, Kiselyov levou a campanha de Putin contra os direitos dos homossexuais e a transformou em uma arma contra a integração européia.

Assim, quando o então ministro de relações exteriores alemão, que é gay, visitou Kiev em dezembro e se encontrou com Vitali Klitschko, o político campeão dos pesos-pesados e opositor ucraniano, Kiselyov diminuiu Klitschko como um ícone gay. De acordo com o ministro de relações exteriores russo, a exploração das políticas sexuais deve se tornar agora uma arma na luta contra a “decadência" que representa União Européia. 
Seguindo a mesma estratégia, o governo de Yanukovych alegou, falsamente, que o preço das relações mais próximas com a União Européia era o reconhecimento do casamento gay na Ucrânia. Kiselyov é bem aberto em relação a estratégia da mídia russa sobre a Maidan: “aplicar a tecnologia política correta”, e "levá-la ao ponto de super-aquecimento”, para então trazer para a “lente de aumento da televisão e da internet”.
 
Por qual motivo pessoas com tais visões pensam que podem chamar aos outros de fascistas? E por qual motivo ninguém na esquerda ocidental os leva a sério? Uma linha de raciocínio parece ser a seguinte: os russos ganharam a Segunda Guerra Mundial e por isso se pode ter certeza que eles reconhecem nazistas. Muita coisa está errada nisso. A Segunda Guerra Mundial, no front oriental, foi travada basicamente no que na época eram chamadas de Ucrânia Soviética e de Bielorrússia Soviética, não na Rússia Soviética. 5% da Rússia estava ocupada pelos alemães; toda a Ucrânia estava ocupada pelos alemães. Exceto pelos judeus,
os quais sofreram de longe o pior, as principais vítimas das políticas nazistas não foram os russos, mas os ucranianos e os bielorrussos.

Não existia nenhum exército russo lutando na Segunda Guerra Mundial, mas sim o Exército Vermelho Soviético. Os seus soldados eram de maneira desproporcional de origem ucraniana, já que o Exército Vermelho teve muitas perdas na Ucrânia e recrutou soldados entre população local. O grupo do exército que libertou Auschwitz era chamado de Primeira Frente Ucraniana.
 
A outra fonte da suposta legitimidade moral da Eurásia parece ser a seguinte: uma vez que os representantes do regime de Putin só de maneira seletiva se distanciam do stalinismo, eles são, portanto, herdeiros confiáveis da história soviética, e devem ser vistos como opositores automáticos aos nazistas e, dessa forma, confiáveis a se opor a extrema direita. 
 
Mais uma vez, muita coisa está errada nisso. A Segunda Guerra Mundial começou com uma aliança entre Hitler e Stalin em 1939. Terminou com a União Soviética expulsando os sobreviventes judeus pela sua fronteira para a Polônia. Após a fundação do Estado de Israel, Stalin começou a associar os judeus soviéticos com uma conspiração do mundo capitalista e iniciou uma campanha de prisões, deportações e assassinatos de líderes escritores judeus. Quando Stalin morreu em 1953, ele estava preparando uma campanha ainda maior contra os judeus. 
 
Após a morte de Stalin, o comunismo ganhou cada vez mais uma coloração étnica, com pessoas que queriam reviver suas glórias afirmando que o problema do stalinismo fora que esse havia sido estragado por judeus. A purificação étnica do legado comunista é precisamente a lógica do nacional-bolchevismo, que é a fundação ideológica do Eurasianismo hoje. Putin é um admirador do filósofo Ivan Ilin, que queria que a Rússia fosse uma ditadura nacionalista.
 
* * *
 
O que quer dizer quando o lobo aponta aos outros e grita: “lobo!”? Obviamente, propagandistas em Moscou e Kiev nos tomam por idiotas - o que, pelos indícios, é um tanto justificável. 
 
De maneira mais sutil, o que essa campanha faz é tentar reduzir a tensão social em um país complexo a uma batalha de símbolos do passado. A Ucrânia não é o teatro para a propaganda histórica de outros nem um quebra-cabeça no qual peças possam ser removidas. É um grande país europeu no qual os cidadãos possuem importantes laços culturais e econômicos tanto com a União Européia quanto com a Rússia. Para definir seu próprio caminho, a Ucrânia necessita de debate público normal, da restituição da democracia parlamentar e de relações funcionais com todos os seus vizinhos. A Ucrânia está repleta de pessoas sofisticadas e ambiciosas. Caso as pessoas no Ocidente fiquem presas a questão de serem eles predominantemente nazistas ou não, então os ocidentais irão perder de vista as questões centrais da presente crise.
 
De fato, os ucranianos estão em uma luta tanto contra a concentração de riqueza quanto contra a concentração de poder armado nas mãos de Viktor Yanukovych e seus aliados mais próximos. Os protestos podem ser vistos como um belo exemplo de coragem para americanos tanto na esquerda quanto na direita. Os ucranianos estão fazendo sacrifícios reais na esperança de se juntarem a União Européia. Pode haver algo a ser aprendido nisso tudo entre os eurocéticos em Londres ou em qualquer outro lugar? Esse é um diálogo que não está ocorrendo.
 
A história do Holocausto é parte do nosso próprio discurso público, do nosso agora, da nossa maidan. A atual tentativa russa de manipular a memória do Holocausto é tão gritante e cínica que aqueles que são idiotas o suficiente para cair nela vão um dia ter de se perguntar como, e a serviço do que, foram coniventes. Se o fascismo se fantasia com o manto do anti-fascismo, a memória do Holocausto em si será alterada. Será mais difícil no futuro se referir ao Holocausto quando em defesa de qualquer causa nobre, seja ela particularmente a história judaica ou a história dos direitos humanos em geral.

21 de fevereiro de 2014
Timothy Snyder
Tradução: Fernando de Souza

PERGUNTA INCONTORNÁVEL

             
          Artigos - Movimento Revolucionário 
Desde suas remotas origens até a atualidade mais candente, o movimento revolucionário vive de incessantes autonegações e transmutações dialéticas que desnorteiam a platéia leiga.

Fora de alguns círculos discretos de neo-estalinistas, muita gente de esquerda reconhece hoje que o comunismo soviético foi uma tirania genocida e uma economia tão louca e ineficiente que acabou por se auto-eletrocutar.

O problema é que, ao persistir na esquerda, essa turma nos deixa sem uma resposta razoável para a seguinte e incontornável pergunta: Se o comunismo foi tão ruim, por que deveríamos admitir que o monopólio do bem e da virtude reside, hoje, naqueles que o apoiaram e não naqueles que o combateram?

Por que os herdeiros ideológicos que só renegaram o comunismo quando ele já estava morto e não havia mais meio de salvá-lo são pessoas mais decentes do que aqueles que o enfrentaram de peito aberto, arriscando a vida e a honra, quando ele era vivo e todo-poderoso? Por que chamar de heróis os que fomentaram o crime e de vilões os que tentaram detê-lo?

Será porque Hitler foi anticomunista? Mas Hitler também foi antitabagista, e ninguém sai por aí fumando só para ostentar antinazismo. Hitler foi vegetariano fanático, meio veganista -- mas vegetarianos e veganistas pululam na esquerda muito mais do que na direita, sem que ninguém os olhe com desconfiança. Hitler foi feroz inimigo da liberdade de mercado (v. http://mises.org/freemarket_detail.aspx?control=507), e nenhum socialista se vexa, por isso, de atacar a liberdade de mercado. Sobretudo, é claro, Hitler odiava os judeus, e nem por isso deixa de ser elegante, na esquerda, aplaudir os terroristas que os matam.

Não. Aqui como em praticamente tudo o mais, a reductio ad hitlerum, ou Lei de Godwin (v. http://en.wikipedia.org/wiki/Reductio_ad_Hitlerum), é uma fraude, não um argumento.
A solução do enigma está em outro lugar. Para enxergá-la é preciso estar ciente de três fatos. A descrição que aqui forneço deles é demasiado compacta, mas corresponde estritamente à realidade e pode ser comprovada por amostragem mais que abundante: 

1) É só nos dicionários que o comunismo é o nome de um sistema econômico definido, bem delimitado, inconfundível com o capitalismo, com a economia fascista, com a socialdemocracia etc. Na realidade da vida, os governos comunistas tentaram todos os arranjos e misturas, pela simples razão de que o comunismo dos dicionários -- a completa estatização dos meios de produção e subseqüente desaparição do Estado por efeito paradoxal da onipresença -- é uma impossibilidade absoluta.

2) Se não tem a unidade de um sistema econômico definido, o comunismo tem, em contrapartida, a de um movimento: é uma rede mundial de organizações de variados tipos (por exemplo, partidos legais e grupos terroristas) em permanente intercomunicação, onde tanto o conflito quanto a solidariedade concorrem dialeticamente para o crescimento e avanço do conjunto na sua luta pelo poder.

3) Em razão dos dois fatos anteriores, a variedade de sentidos da palavra “comunismo” já se incorporou há tempos no discurso comunista, servindo igualmente bem para desnortear o adversário e fortalecer a unidade do movimento por trás de divergências de superfície. Um governo dominado pelos comunistas pode, por exemplo, ser admitido como “comunista” perante a platéia interna, ao mesmo tempo que, quando se fala ao público geral, se jura que ele não é comunista de maneira alguma (por exemplo, porque favorece o livre mercado como fez Lênin com sua Nova Política Econômica em 1921).
Mutatis mutandis, essa flexibilidade semântica resolve o problema de como o movimento comunista presente e atuante deve falar dos governos comunistas extintos ou reconhecidamente fracassados. 

Conforme a platéia a que esteja se dirigindo, ele tanto pode denominá-los francamente “comunistas”, para dar a entender que ele próprio não o é de maneira alguma, quanto pode jurar que eles nunca foram comunistas, salvando assim o ideal comunista abstrato de toda responsabilidade pelos crimes e pecados do comunismo histórico: o primeiro desses modos de dizer é usado para o público externo que se deseja tranqüilizar anestesicamente, o segundo para uma platéia mais próxima de militantes que se deseja encorajar ou de simpatizantes que se espera recrutar.

Desses três fenômenos a solução do problema com que iniciei este artigo brota espontaneamente: quando se condena o velho comunismo, mas exaltando os que o defenderam e denegrindo os que o combateram, de um só golpe a coesão, o revigoramento e o prestígio do movimento são assegurados, junto com a necessária camuflagem protetora, pelo artifício de rejeitar suas partes mortas e dar um novo nome às suas partes vivas.

Desde suas remotas origens até a atualidade mais candente, o movimento revolucionário vive de incessantes autonegações e transmutações dialéticas que desnorteiam a platéia leiga, mas que, aos olhos do estudioso – seja ele comunista ou anticomunista – são de uma simplicidade quase pueril e às vezes de um automatismo deprimente.
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O assassinato de reputações começou nas altas esferas federais, mas agora baixou para o humilde recinto do jornalismo. A página do Facebook, “Ruth Sheherazade – a irmãzinha boa da Raquel” foi criada especialmente para sujar a imagem da apresentadora de TV, jogando, de raspão, uns respingos fecais na minha pessoa.
A técnica é a mesma dos famosos dossiês forjados contra inimigos do governo: fuçar a biografia da vítima em busca de detalhes inócuos aos quais se possa dar ares de grandes crimes e escândalos mediante uma linguagem artificiosa, fingidamente denuncista. A coisa é um trabalho de publicitários profissionais, restando averiguar quem é o cliente.
 
Publicado no Diário do Comércio com o título 'Difícil resposta'.

21 de fevereiro de 2014
Olavo de Carvalho

RETÓRICA DO BERRO E DO SILÊNCIO

                       
          Artigos - Governo do PT 
Em 1º de janeiro de 2003 a inquisição petista deve ter embarcado em Alcântara rumo a algum asteróide distante. O outrora refinado faro não capta mau cheiro sequer quando vem da sola do próprio sapato.

O Partido dos Trabalhadores, há bem mais de uma década, nada de braçada nas águas revoltas da nossa política. Isso não aconteceu por sorte ou acaso. Foi perícia coletiva, dentro de bem traçado planejamento e perfeita execução. De um lado, o partido se constituía na tradição dos partidos de massa, rara entre nós, e aplicava com tenacidade os métodos de infiltração que o fizeram presente e ativo nos corpos sociais e nas instituições do Estado. De outro, partia para o ataque a seus opositores sem tréguas nem misericórdia. O objetivo era produzir a demolição moral de quem estivesse em seu caminho. Pela cartilha petista, escândalo no território inimigo era e continua sendo coisa que ou existe ou se fabrica. Onde houvesse o mais tênue fio de fumaça da suspeita o partido era o primeiro a chegar, com um tonel de gasolina.

Impoluto, apontava o dedo acusador para as privatizações, por exemplo, com a autoridade moral de quem jamais o usou para contar dinheiro mal-havido. Quando seus líderes clamavam por CPIs para investigar as privatizações e a base do governo FHC não os apoiava, roíam-me desconfianças e suspeições. "Ai tem!", pensava eu. Se o nariz petista acusava algo, se sua alma se ouriçava, se seu fino tato acusava, era certo que algo havia. Afinal, eles sabiam tudo, mas tudo mesmo, sobre o governo dos outros.
 
Foi assim que o partido, sem muito esforço diga-se, destruiu moralmente os governos Collor e Sarney. Foi assim que o partido requereu contra o governo FHC mais de duas dezenas de CPIs. As investidas foram tantas, tão contínuas e violentas que o prestígio do ex-presidente despencou dos elevados índices a que chegara nos pleitos que venceu. Quanto de verdade havia naquelas acusações? O PT atribuía a falta de provas cabais ao engavetamento dos processos na Procuradoria Geral da República e à recusa da base do governo em conceder à oposição os votos necessários à formação das CPIs.
         
A posse de Lula seria, também, a hora da verdade para sua oposição? Eu pensava que sim. Os petistas não mais dependiam das CPIs para investigar e exibir as negociatas alheias. Passavam a dispor de todos os meios de investigação, servidos em bandeja de prata, com guarnição de veludo azul. Ministério da Justiça, Controladoria-Geral da União, ABIN, Polícia Federal, Receita Federal, eram apenas alguns dentre os muitos instrumentos disponíveis. Sem esquecer, ainda, os arquivos de todos os ministérios, repartições e empresas estatais do país. Vai ter muito colarinho branco na cadeia, pensava eu.
 
Surpresa! Em 1º de janeiro de 2003 a inquisição petista deve ter embarcado em Alcântara rumo a algum asteróide distante. O outrora refinado faro não capta mau cheiro sequer quando vem da sola do próprio sapato. Seus sherloques, seus produtores de dossiês, que antes sabiam de tudo que acontecia na República, foram acometidos de um alheamento, de um autismo em que não apenas ninguém está a par do que acontece na sala ao lado, mas é a própria mão direita a primeira a desconhecer o que a esquerda faz. Sobre essa duplicidade de conduta nada se fala, nada se escreve. Quando não há explicação moralmente aceitável é preferível deixar o dito pelo não dito. E Lula maneja com perfeição a prolongada retórica do silêncio.
 
21 de fevereiro de 2014
Percival Puggina

AS FORMAS DE LUTA PELO PODER: A FORMA PACÍFICA

                     
          Artigos - Movimento Revolucionário        
 
Uma coisa é conhecer os fatos, outra é conhecer o porquê dos fatos.

Durante a II Guerra Mundial, quando a União Soviética lutava, junto à Inglaterra, EUA e outros países, contra o nazismo, Stalin propôs, em 15 de março de 1943, a dissolução da III Internacional, dissolução que foi materializada em 9 de junho de 1943 através de um comunicado do Comitê Executivo da IC, assinado por Giorgy Dimitrov, então Secretário-Geral . Dentre os partidos comunistas que aprovaram a dissolução, estavam os da Argentina, Cuba, Colômbia e Chile. No comunicado de Dimitrov assinalava expressamente que “a proposição de dissolver a Internacional Comunista havia sido aprovada unanimemente pelas  seções que tiveram a possibilidade de comunicar suas decisões em tempo”.
 
Com mais eloquência que esse parco comunicado do Comitê Executivo da IC, anteriormente, em 28 de maio desse mesmo ano, em uma entrevista à agência de notícias “Reuters”, em Moscou, Stalin assinalou que “a dissolução da III Internacional fora acertada porque, assim, evidencia a mentira das forças hitleristas, que afirmam que Moscou trata de imiscuir-se na vida de outras nações para bolchevizá-las. Agora, poremos fim a essa calúnia. Essas calúnias afirmam que os partidos comunistas dos diversos países atuam não no interesse de seus povos, e sim sob ordens exteriores. Isso também facilitará as atividades dos patriotas, nos países amantes da liberdade, para unir as forças progressistas de seus respectivos países, sem distinção de partidos e de credos religiosos, em um campo único de libertação nacional, para desenvolver a luta contra o fascismo”.

O ato do Comitê Executivo da III Internacional, inspirado por Stalin, dissolvendo essa organização, objetivou, portanto, dar fim a “uma calúnia”. Todavia, Stalin conservou no território soviético os antigos e futuros estados-maiores de todos os partidos comunistas europeus: romeno, polonês, húngaro, búlgaro, tcheco, alemão, italiano e francês que, quando do término da guerra, faria regressar aos seus países.
                  
Em 5 de outubro de 1947, Stalin criou o Kominform (Departamento de Ligação e Informação dos Partidos Comunistas Europeus).
                  
A doutrina supostamente científica do marxismo-leninismo define a revolução socialista como resultado de um combate simultâneo em várias frentes: política, econômica e ideológica. Todavia, as formas sob as quais se desenvolve esse combate dependem da combinação concreta de fatores internos e externos de cada país.
 
Entre os fatores internos podem ser citados os níveis de desenvolvimento econômico e cultural do país; o grau de organização e influência do partido comunista local; se ele está ou não na legalidade; a correlação de forças entre as classes; as tradições nacionais; etc. Entre os fatores externos figuram a solidez das ligações do partido comunista nacional com partidos comunistas de outros países; a situação internacional geral; as relações com países vizinhos; etc.
 
Cada caso particular determinará a originalidade da tática a ser implementada e as formas de luta pelo poder que, por mais variadas que possam ser, podem ser resumidas, num plano muito geral, em duas essenciais: a forma pacífica e a forma não pacífica. Esta pressupõe o emprego da luta armada.
 
A absolutização tanto de uma como de outra dessas formas de luta não é aceita pela ortodoxia marxista. A prática revolucionária e as condições objetivas e subjetivas é que irão determinar, em cada momento, a forma de luta a ser utilizada. Ambas, no entanto - e isso é importante ter sempre presente -, a pacífica e a não pacífica, são revolucionárias. Qualquer que seja a forma pela qual a revolução socialista venha a se processar, ela implicará sempre na derrubada do regime dominante e, nesse sentido, será sempre um exercício de violência, pois, em última análise, ninguém renuncia ao poder e à propriedade privada de livre e espontânea vontade.
 
Após fevereiro de 1917, na Rússia, quando foi instalado o governo de Kerensky, Lenin chegou a considerar a possibilidade de uma conquista pacífica do poder, mediante a passagem de todo o poder aos sovietes. Essa perspectiva foi considerada por Lenin, naquele momento, devido à fraqueza e desorganização da burguesia russa. “Infelizmente”, segundo a história da Revolução Bolchevique escrita na União Soviética, “a via pacífica não foi tornada possível, face à reação dos expropriadores, que se recusaram a ser expropriados sem luta”.
 
Desde então, a existência de um Estado fraco, contraposto à força e organização de um partido comunista que se considera o “estado-maior do proletariado”, passou a ser considerada a condição fundamental para um desenvolvimento “pacífico” da revolução socialista, se é que uma revolução, qualquer que seja, terá condições de desenvolver-se pacificamente.
 
Posteriormente, por considerar que a modificação da correlação de forças em nível internacional aumentara as possibilidades de um desenvolvimento “pacífico” da revolução socialista, a concepção marxista-leninista dessa via foi sendo desenvolvida nas conferências teóricas internacionais dos partidos comunistas, realizadas em 1957, 1960 e 1969, e, em seguida, nas resoluções políticas dos congressos de vários partidos.
 
Esse desenvolvimento “pacífico” pode revestir-se de formas diversas. Uma delas é a utilização do Parlamento, obtendo nele uma maioria - não necessariamente numérica, uma vez que para o marxismo-leninismo o conceito de maioria é mais rico e complexo: o de “maioria ativa” -, transformando-o e convertendo-o num instrumento da vontade das “amplas massas”.
 
Foi isso que aconteceu na Checoslováquia no período de 1945 a 1948, conforme relatado no livro “O Assalto ao Parlamento - A Tomada do Poder pela Constituinte”, escrito por Jan Kosak, deputado comunista na Assembléia Constituinte checoslovaca. Nesse livro, ele relata minuciosamente como o Parlamento de seu país foi levado a desempenhar um papel revolucionário na transição para o comunismo, derrubando um regime parlamentar que funcionava com uma maioria não-comunista baseada em princípios democráticos, “transformando o Parlamento de um órgão a serviço da burguesia em um instrumento criador de medidas democráticas que conduziram à mudança gradual da estrutura social, instrumento direto da revolução socialista”. Isso só foi possível graças à “maioria ativa”.
 
Além da conquista do Parlamento, os comunistas, na luta pela chamada “conquista pacífica do poder”, propõem outros objetivos de luta: a “democratização” do aparelho do Estado, a participação dos operários na gestão econômica das empresas e a criação de uma opinião pública que limite a possibilidade da classe dirigente opor resistência à aplicação de uma “política favorável à maioria do povo”.
 
O chamado desenvolvimento pacífico da revolução não é, todavia, um “pic-nic”, uma transformação harmoniosa do capitalismo em socialismo, uma renúncia voluntária das classes dominantes ao poder político. Isso eqüivale a dizer que essa via, de forma alguma, significa a interrupção da luta de classes ou a diminuição da sua intensidade. É, basicamente, a combinação de uma “pressão de cúpula”, desenvolvida a partir do Parlamento e outros órgãos da máquina estatal, com a “pressão de base”, levada a efeito pela atividade revolucionária das “amplas massas”. Segundo Lenin escreveu, em 1905, quando da Revolução de Fevereiro, na Rússia, “restringir, como princípio, as ações revolucionárias às pressões de base e renunciar às pressões de cúpula é anarquismo”.
 
Na hipótese de “o governo estabelecido recorrer à violência contra o povo, a classe operária e as amplas massas serão levadas a atuar também nesse terreno, para ... assegurar a passagem ao socialismo por meios pacíficos”. Se invertermos os termos, o significado será o mesmo: “na hipótese do governo estabelecido recorrer à violência contra a classe operária e as amplas massas, o povo ver-se-á obrigado a atuar também nesse terreno...”
 
Luiz Carlos Prestes, quando Secretário-Geral do Partido Comunista Brasileiro, analisando as causas da derrota das forças democráticas em março de 1964, declarou: “As possibilidades do chamado caminho pacífico (...) foram, em geral, erradamente interpretadas por nós, como se a revolução pudesse ser um processo idílico, sem choques nem conflitos” (“Revista Internacional” nº 6, junho de 1968).
 
O leninismo, considerado o “marxismo da época do imperialismo”, assinala que a eficácia da luta armada é determinada, em cada caso, pelo grau de maturidade das chamadas “condições objetivas e subjetivas” do país dado. A luta armada poderá ser considerada objetivamente necessária em determinadas condições, o que, em absoluto, significará que essa forma de luta seja a única a ser considerada revolucionária.
 
É por essa razão que os marxistas-leninistas ortodoxos condenam os “aventureiros de esquerda”, que enfatizam desmedidamente o emprego das armas em quaisquer partes e sejam quais forem as circunstâncias, subestimando a importância da forma de luta “pacífica”.
 
Segundo Lenin, “desenvolver a democracia até o fim, procurar as formas desse desenvolvimento, pô-las à prova na prática, é uma das tarefas essenciais da luta pela revolução social”.
 
A Conferência Internacional dos Partidos Comunistas, realizada em 1969, indicou em seu documento final que “na medida em que se desenvolve a unidade de ação contra o monopólio e contra o imperialismo, amadurecem as condições favoráveis à coesão de todas as correntes democráticas numa aliança política capaz de limitar de uma maneira decisiva o papel dos monopólios na vida econômica do país, de colocar um fim ao poder do grande capital e de estabelecer um regime que realize transformações políticas e econômicas radicais, criando, dessa forma, condições mais favoráveis ao prosseguimento da luta pelo socialismo”.
 
Finalmente, observa-se que nos programas de diversos partidos comunistas dos países desenvolvidos ou em desenvolvimento, o lugar central não cabe à luta imediata pelo socialismo e sim àquelas reivindicações políticas, econômicas e sociais que tornarão factível essa luta. Esses partidos, conscientes das necessidades de determinadas etapas na luta pelo socialismo, definiram como objetivo realista a tomada paulatina do poder político da burguesia, substituindo-o por uma “democracia contínua”, susceptível de satisfazer aquilo que denomina de “aspirações das amplas massas”, sempre dirigidas, é claro, pelo seu partido, o “partido da classe operária, estado-maior e vanguarda do proletariado”: o Partido Comunista. Ou seja, a tomada do Poder à la Gramsci.

Esse é o conteúdo da forma de luta “pacífica” da estratégia para a revolução socialista.


21 de fevereiro de 2014
Carlos Azambuja é historiador.