"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 1 de novembro de 2014

OS BERBERES NA ANTIGUIDADE - 2a. PARTE

Outros Númidas

Dois são os autores que mais nos informam acerca dos povos ou grupos habitando a Berberia: Plínio, o velho, e Ptolomeu. Plínio, o velho, (V, 30) nos apresenta um relato específico das cidades e vilarejos existentes entre a região ocidental da Berberia oriental – mais precisamente a partir do el-Kebir – até a Cirenaica. Com relação à Berberia númida, ele diz: "...entre as comunidades restantes, a maioria não é somente de povoados, mas podem ser mencionadas, com justiça, como povos; assim há os nattabudes, os capsitani, os musulâmios, os sabarbares, os massilos, os nicives, os vamacures, os cinithi, os musuni, os marchubi e o conjunto da Getúlia, até o rio Nigris, que separa a África da Etiópia".

J. Desanges (1980: 328) comenta acerca da lista de Plínio seu aspecto aleatório, que se repete quando ele enumera as cidades e vilarejos dessa mesma região. Ela não segue uma ordem alfabética e nem parece seguir uma geográfica. Os nattabudes, seguindo Ptolomeu (IV, 3, 6: 639), são vizinhos dos musulâmios. Ambos estão localizados nas proximidades de Cirta, para o sul. J. Gascou (1982: 103) afirma que, no começo do século I d.C., essa área, formada por um relevo muito fragmentado, era ainda povoada por grupos nômades. Em Oum Krekèche, 20 Km. para o sudeste da cidade romana de Thibilis (que fazia parte da Confederação Cirtense, agrupamento de vilarejos e povos ao redor de Cirta, em época romana, reunidos sob sua jurisdição), foi encontrada, de maneira fortuita, uma inscrição de época tardia (209 d.C.), atestando a existência de uma g(ens) Nattabutum (C.I.L. VIII, 4826 apud Desanges 1980: 329).

Os capsitani, se levarmos em consideração, com rigor, o significado do sufixo étnico – itanus, teriam que ser entendidos enquanto habitantes da cidade de Capsa (atual Gafsa), cidade berbere datada do século II a.C., ao menos (Gsell 1918, vol.II: 98). No entanto, em seus comentários acerca do livro V de Plínio, o velho, J. Desanges (1980: 330) lembra que na documentação epigráfica os habitantes da cidade de Capsa são denominados capsenses (C.I.L. VIII, 100 e 101).

Com relação aos musulâmios, possuímos dois grupos portando o mesmo nome – citados por Plínio, o velho, e por Ptolomeu. Os de Plínio correspondem a um dos grupos berberes mais mencionados nas fontes textuais – literárias e epigráficas – do século I d.C. em diante. Seu território vê-se situado na região da cidade berbere de Madauros, a meia distância entre Tébessa (antiga Theveste) e Kenchela (antiga Mascula), na fronteira entre a Berberia central e a oriental, atual Argélia. J. Desanges, seguindo St. Gsell (1928, vol.VII: 190), acredita que o eixo de seu território estivesse situado no curso superior do oued Mellègue (antigo Muthul), na Koumirie, cujo nome antigo estaria ligado ao do próprio grupo indígena dos musulâmios (Musulami) (Desanges 1980: 331). Já os de Ptolomeu (IV, 3, 6: 639) são localizados para o noroeste desta mesma região. J. Desanges liga esse segundo grupo de musulâmios aos revoltosos, liderados pelo berbere Tacfarinas, que promoveram destruição nas terras de Cirta (Cirtensium pagi), no início do século I d.C. História que é relatada por Tácito (Anais, III, 74). O mesmo Tácito (Anais, II, 52) menciona musulâmios nômades, percorrendo os montes meridionais da Argélia, em contato com mouros. No século III d.C., J. Desanges visualiza a lembrança desse outrora grupo indígena no nome de uma civitas, cuja inscrição (Musula(mios ciu)itatesque ali(as....) (C.I.L. VIII, 20863=9288 apud Desanges 1980: 332) foi encontrada a oeste e a muita distância de seu local de origem, na cidade de Tipasa, no litoral argelino (Desanges 1980: 332). A questão que nos interessa aqui é apreender se temos, de fato, dois grupos com esse mesmo nome ou se temos a comprovação de locomoções ou migrações. Pela sua localização original, os musulâmios são considerados númidas. Além disso, em seu relato da Revolta de Tacfarinas, Tácito (Annales, II, 52; III, 20, 21, 32, 73, 74; IV, 22, 24, 25) refere-se aos musulâmios como númidas. Não podemos, ao menos, argumentar que Tácito utilize esse termo de maneira generalizada, pois ele distingue cuidadosamente os númidas (musulâmios), sob o comando de Tacfarinas; os mouros, sob as ordens de Mazippa; e, por fim, os garamantes. (Camps 1960: 156). O grupo dos sabarbares é mencionado, com esta grafia, exclusivamente por Plínio, o velho. No entanto, um grande número de documentos epigráficos do Alto Império, do século I ao III d.C., atestam a existência de um grande grupo indígena denominado suburbures. A documentação epigráfica, apesar de tardia, é muito interessante. Ela mostra uma ligação entre esse grupo e o dos nicibes (nicives na grafia de Plínio). Marcos de percurso do século I d.C., os chamados marcos miliários (millaria), trazem inscrições onde lemos que os dois grupos dividiam uma mesma região, dentro da área maior de Cirta e seus arredores. Além dessa associação, as inscrições assinalam também que os suburbures eram qualificados de Regiani. Por outro lado, textos epigráficos do final do século II e do século III d.C. são testemunhos da permanência dos suburbures (não mais qualificados como Regiani). No entanto, esse segundo conjunto de documentos (C.I.L. VIII, 8270 (ano 199); C.I.L. VIII, 10335 (ano 215) foi encontrado mais para oeste, em direção à Argélia central, mas ainda dentro dos domínios de Cirta. Em especial, dois marcos miliários demonstram que, na época de Trajano, os suburbures tiveram seu território delimitado (Desanges 1980: 333). Duas interpretações foram formuladas: a primeira considera que houve uma divisão do grupo, os Regiani seriam do leste, e os não Regiani seriam do oeste (Camps 1960: 179); a segunda entende que estamos lidando com um grupo semi-nômade, que praticava a transumância (Desanges 1980: 333).

A informação que os nicives, no Baixo Império, já cristianizados, tiveram seu território fixado ao norte do monte Batna, nas proximidades da Bacia do Hodna (Argélia), sendo que sua área de domínio parece ter alcançado a região, 30 Km. para o nordeste, da atual cidade de N'gaous (Niciuibus na Antigüidade), é um dado a mais a favor da interpretação por um modo de vida semi-nômade desse grupo. Ptolomeu (IV, 3, 6: 639) os localiza ao lado dos nattabutes (os nattabudes de Plínio, o velho,), para o leste da região de Cirta em torno do século II d.C. Ou seja, na direção oposta de sua implantação em época cristã. Lembramos, no entanto, que a inscrição que localiza os nicives na Berberia central é muito posterior às informações apresentadas por Ptolomeu e Plínio, o velho.

Dessa maneira, de maneira análoga aos musulâmios e aos suburbures, podemos entender tanto locomoções, típicas do semi-nomadismo, dentro de uma região circunscrita, como a existência de facções ou clãs diferentes habitando a área de Cirta e a área de Batna, ambas na Berberia central mas distantes c. 200 Km. uma da outra, ou ainda, visualizar uma mudança territorial, para a qual as razões nos escapam. No entanto, só podemos afirmar essa divisão, no caso dos nicives, para um período muito posterior ao estudado aqui.

Seguindo as indicações de Plínio, o velho, para os massilos, que os situa entre esses dois grupos, comprovamos o território desse grupo indígena – região de Cirta e do djebel Fortas – e percebemos que este fazia fronteira com as terras dos suburbures e dos nicives.

Um rio Vamaccura aparece representado em um mosaico de Thamugadi (atual Timgad, Argélia), cidade militar romana, na Berberia central (na face norte dos montes Aurès). Afora esse dado, sabemos apenas que, no século V d.C., existia uma cadeira episcopal na localidade de Bamaccora ou Vamaccorensis (Année épigraphique (AE), 1917-1918, 31, apud Desanges 1980: 338), situada na Numídia. Em vista do pouco que esses documentos, ademais tardios, podem nos oferecer em termos de informação, a única hipótese que se apresenta é a de ligar o território original do grupo indígena dos vamacures à região do rio, próximo à própria Thamugadi. Mas não possuímos qualquer prova material de que tenham existido enquanto tal, isto é, enquanto grupo indígena, nem na época de Plínio, o velho, ou de sua fontes para a África, nem no Baixo Império.

Tácito (Anais II, 52) menciona os cinithi como um "povo de pouca importância" mas, contraditoriamente, dentro da coalisão formada pelos musulâmios de Tacfarinas contra Roma. Já uma inscrição posterior, do final do século II d.C., qualifica-os como natio (C.I.L. VIII, 22729 apud Desanges 1980: 338). O étnico é diversas vezes encontrado, em época romana, enquanto cognome. Os locais de achado das inscrições cobrem a Berberia oriental latitudinalmente, em sua porção meridional: vão de Gightis (atual Bou Ghara, na costa leste da Tunísia), na Sirte Menor, até Theveste (atual Tèbessa, no interior da Argélia). Ptolomeu (IV, 3, 6: 639) os localiza justamente na Sirte Menor, nas proximidades de Thaenae (atual Henchir Thyna), cidade ao norte de Gightis. J. Desanges pretende que esse grupo indígena seja o mesmo mencionado no Bellum Africum (LXII, 1) que assinala a presença de um povo habitando à beira do mar, ao sul da província de Africa Vetus. Os cinithi teriam fornecido, no começo de 46 a.C., remadores e soldados da marinha getulos às tropas do chefe pompeiano P. Attius Varus (1980: 338). No entanto, como vimos pela documentação de época tardia membros desse grupo locomoveram-se para o oeste e para o interior, no que outrora fora o pleno coração númida.

Os musuni são localizados por Plínio, o velho, na parte oriental da província romana da África, isto é, na Berberia oriental. Ptolomeu (IV, 3, 6: 639) situa-os ao sul do território de um outro grupo indígena, os mididi. Temos notícia de uma cidade Mididi (atual Henchir Medded), a sudoeste de Mactar, na Tunísia. Ou seja, em plena área de dominação cartaginesa, na Berberia oriental. Conhecemos, igualmente, uma familia (clã) Medid, cuja inscrição que a menciona foi encontrada na Tunísia, entre Cillium (atual Kasserine) e Thelepte (atual Feriana), na região meridional da Berberia oriental (Cagnat, R.; Merlin, A & Chatelain, L Inscriptions latines d'Afrique (I.L.Afr.), Paris, 1923, n.107, apud Desanges 1980: 341). Uma documentação tardia, do século III d.C., nos dá a comprovação da precisão de Ptolomeu. Essas inscrições comprovam, de Sétimo Severo até Gordiano III, a presença de um grupo musuni Regiani, cujo território se estendia a nordeste da cidade de Thelepte (I.L.Afr. 102 e 103; C.I.L. VIII, 23195 apud idem). J. Desanges (ibidem) acredita que os musuni ganharam o qualificativo Regiani a partir de relações mantidas com os "reis" massilos. Por outro lado, a Tábula de Peutinger (segm. II, 2-3) localiza os musuni para o sudeste de Sitifis (atual Sétif, na Argélia). Isto é, em plena Berberia central, muito afastados da localização de Ptolomeu e das inscrições apresentadas acima. Admitindo que tenha ocorrido um deslocamento ou uma divisão do grupo, temos que essa facção não é mais denominada Regiani (Ptolomeu, IV, 2, 5: 604 – sob a denominação moukonoi apud Desanges 1980: 341). J. Desanges não exclui a persistência, aí expressa, de um modo de vida semi-nômade desde um passado mais remoto. Uma possível rota para essa transumância seria o eixo leste-oeste, ao norte dos montes Aurès.

Por fim, sobre os marchubi temos apenas documentos indiretamente relacionados a eles. Ptolomeu (IV, 2, 5: 604) menciona um grupo indígena, os salassii, e assinala que estes habitavam o território que ficava entre as terras de certos montanheses chamados malcoubioi (em grego), na Berberia ocidental, e o Ampsaga (oued el-Kebir), na fronteira entre a Berberia central e oriental. Associando as duas denominações: marchubi e malchoubii, temos que este grupo indígena habitava a região leste da Kabília, na Argélia. No entanto, vimos que os grupos indígenas de Plínio, entre eles os marchubi, devem ser localizados do Ampsaga para o leste. Isto é, da fronteira oriental da Berberia central até a Berberia oriental. Uma única menção aos salassii de Ptolomeu aparece em uma inscrição tardia (sem datação) encontrada na estrada que leva de Constantina (interior argelino) até El-Milia (próxima a atual Collo, no litoral oriental argelino), portanto, na Berberia central para o leste: esta menciona um prefeito dos salas(....) (C.I.L. VIII, 19923 apud Desanges 1980: 341). A identificação dos salas(....) com os salassii de Ptolomeu não é imediata, mas concordamos com J. Desanges quando ele sugere a possibilidade dos marchubi serem os mesmos montanheses de Ptolomeu (Desanges 1980: 342). Teríamos, então, mais um caso de locomoção ou fracionamento posterior.

Cláudio Ptolomeu menciona ainda outros grupos. Ptolomeu estabelece a sua descrição a partir de faixas paralelas ao litoral. Os kirtêsii, os nabathrae e os iontii são localizados na Numídia, próximos ao mar, até Thabraca (Tabarqa) (Ptolomeu IV, 3, 6: 639). Ou seja, na Berberia oriental, atual Tunísia. Logo abaixo deles, Ptolomeu menciona, em sua segunda faixa, os nattabudes e os musulâmios. Dessa maneira, as informações de Ptolomeu não contradizem os dados que apreendemos com Plínio, o velho.

Em suma, massilos, masesilos, maurúsios, zufônes, asfodélodes, areácidas, micatanos, macões, nababes, maxies, zauéces, gizantes, macurebi, tulensii, nattabudes, capsitani, musulâmios, gubul, suburbures, nicives, vamacures, cinithi, musuni, marchubi, kirtêsii, nabathrae e iontii são declaradamente classificados como númidas (Heródoto, Políbio e Diodoro da Sicília) ou são mencionados como habitantes da região dos númidas (Plínio, o velho, e Ptolomeu). Esta classificação apresenta uma série de problemas de ordem metodológica: abrange uma linha cronológica que vai do século V a.C. até os séculos I-II d.C. e engloba áreas muito distintas e distantes umas das outras. Os comentários de Heródoto são os mais problemáticos, pois os seus númidas são localizados em uma região – fronteira leste da Berberia oriental – que mesmo tendo orbitado na esfera de controle de "reis" como Massinissa, não fez parte efetiva e permanente dos territórios dos "reinos" berberes e, especialmente, não fez parte da área que se generalizou denominar Numídia. Os outros testemunhos, apesar de afastados no tempo, ao serem confrontados com os dados fornecidos pela documentação epigráfica, mantém-se sólidos. A única exceção são os grupos apresentados por Diodoro da Sicília (zufônes, asfodélodes, micatanos e areácidas), dos quais as fontes materiais não deixaram traços.

Todavia, antes de passarmos para a documentação referente aos grupos indígenas da Berberia ocidental, atual Marrocos, apresentamos uma denominação: misiciri, que é interpretada como referente a uma espécie de "confederação" ou super-grupo; isto é, não pertence a um grupo indígena isolado. Os misiciri são especiais porque só os conhecemos a partir de documentação material notadamente líbica, epigráfica. Não há qualquer menção sobre eles nas fontes textuais. Eles são mencionados em três inscrições latinas (C.I.L. VIII, 5211, 5217 e 5218 apud Camps 1960: 248) e 62 inscrições líbicas, encontradas na região florestal de La Cheffia e de Munier, entre a Argélia e a Tunísia. A grafia latina é misiciri, já a líbica é MSKRH. Todas as 62 inscrições líbicas foram encontradas na região de La Cheffia, e, mais especialmente, nas proximidades de Munier, na fronteira com a Tunísia. Assim, a "confederação" (assim denominada em razão da quantidade de inscrições encontradas – incluindo cinco sub-títulos – e da extensão territorial que os locais de achado cobrem) ocupava as terras montanhosas e florestais argelinas limitadas pelo oued Medjerda, ao sul; pelo oued el-Kebir e pelo vale do oued Namoussa, a oeste; pela planície do Tarf, ao norte; e pela região de Fernana, já na fronteira tunisiana, a leste. O interessante desse material primário e autóctone são os sub-títulos que aparecem juntamente ao nome misiciri, os quais correspondem a menções a cinco grupos menores (clãs/famílias?), que formavam o super-grupo misiciri. Com relação a esses grupos ou clãs possuímos apenas a denominação líbica: NBIBH; ÇRMMH; NNDRMH; NSFH; NFZIH. Uma hipótese lingüística relaciona o N inicial de todos esses nomes à preposição "de". Assim, teríamos uma partícula indicadora de proveniência ou origem (Camps 1960: 250).

A seguir, apresentamos os grupos indígenas que entendemos formaram, ou estiveram em contato, com o super-grupo dos mouros. Nossas principais fontes são, novamente, Ptolomeu e Plínio, o velho.

Mouros

Hecateu de Mileto, no século VI a.C., mostra-nos que o mundo grego já conhecia os confins ocidentais do Mediterrâneo, já que este autor menciona alguns nomes de cidades nessa região (Roget 1924: 11). O Périplo de Hannon, situado cronologicamente a seguir – século V a.C., é, infelizmente, por demais problemático para podermos fazer uso seguro das informações que oferece. Políbio teria escrito um relato de sua viagem pelas costas ocidentais da África, relato este que se perdeu. Vimos que Plínio, o velho, usa parte dessas informações em sua descrição do ocidente africano. Cláudio Ptolomeu, por outro lado, tanto em relação a estes como a outros autores que escreveram sobre essa região em particular (Estrabão, livro XVII, 3; Pompônio Mela; Alexandre Polihistor; e outros, de época tardia), é a fonte mais antiga (c. 140 d.C.) que fornece dados concretos, em ampla quantidade, sobre as terras do atual Marrocos.

Cláudio Ptolomeu (IV, 1, 5: 585) apresenta uma longa lista de grupos indígenas da Berberia ocidental. É o primeiro autor a fazê-lo explicitamente. A. Jodin (1987, 215) crê que o "reino" mouro na época pré-claudiana era formado organicamente por uma dúzia de nationes, uniões de gentes, posteriormente localizadas por Ptolomeu nos limites precisos da província da Tingitânia. O autor alexandrino descreve os grupos indígenas seguindo uma linha noroeste/sudeste: partindo da cidade berbere de Tingis (atual Tanger), no Estreito, para então terminar seu elenco na região nordeste da Berberia ocidental:

"As regiões desta província, do lado do Estreito, são habitadas pelos metagônitas; as regiões do Mar Ibérico, pelos socossii; e, sobre eles, pelos verves; abaixo da região dos metagônitas, nós encontramos os mázaces, depois os verbicae; abaixo, os salinsae e os canni ; depois os bacuatae e, em seguida, os macanites; sob os verves, os volubiliani; em seguida, os iangaucani e, em baixo, os nectiberes; em seguida, os pirron pedion, com a posição 9º 30', 30º. Abaixo, encontramos os zegrensii, depois os baniubae e os vacuatae. O norte oriental é ocupado, por inteiro, pelos maurensii, e uma parte pelos herpeditani." (tradução de R. Roget 1924: 37-38).

Os socossii e os verves são localizados na região do Mar Ibérico de Ptolomeu, que equivale ao Mediterrâneo no extremo oeste (Jodin 1987: 26). O arqueólogo A. Jodin (1987: 27), no entanto, acredita que o nome verves pode ser reencontrado na denominação do atual oued Ouerrha, na região norte do Marrocos. Ali ocupavam as terras do vale. Abaixo dos verves habitavam os volubiliani, grupo que, dessa maneira, aparece pela primeira vez nos textos, como a maior parte dos outros étnicos. Com relação aos volubiliani, há a possibilidade de esse grupo indígena do sudoeste da Berberia ocidental ter derivado o seu nome da cidade berbere, do século III a.C., de Volubilis (Jodin 1987: 28). No entanto, ainda hoje não sabemos se os volubiliani desenvolveram algum tipo de relacionamento com a cidade ou se apenas compartilharam uma mesma área, isto é, foram vizinhos de Volubilis.

O Itinerário de Antonino (Tingitânia, 3: "Rota de Tocolosida – 4 Km. e 1/2 ao sul de Volubilis" – Roget, 1924: 40), do século III d.C., avalia como sendo de 16 mil passos a distância separando Volubilis da cidade romana mais próxima, Aquae Dacicae, sendo que apenas 3 mil passos a separava de Tocolosida, isto é., 28 Km. A. Jodin (1987: 30) afirma, então, que esta distância correspondia, mais ou menos, à extensão do território, ou seja, do subúrbio que compunha a região de Volubilis, aos pés do maciço de Zerhoun. Assim, esse autor supõe que essa área, acrescida das colinas dos arredores, representava a região onde os volubiliani circulavam.

Os vizinhos mais próximos dos volubiliani seriam um grupo indígena não citado por Ptolomeu. Alexandre Polihistor diz: "Gilda, cidade da Líbia. Nome do povo: gilditas" (Roget 1924: 21). A cidade de Gilda é citada, no Itinerário de Antonino, dentro da rota de Tocolosida Gilda, capital dos gilditas, é situada perto de Sidi Slimane a menos de 50 Km. da área noroeste de Volubilis, na beira do oued Beth. O distrito de Cherarda coincidiria, atualmente, com o seu território.

Seguindo a descrição de Ptolomeu, após os volubiliani encontramos os iangaucani, e ainda mais para o sul, os nectiberes. Os grupos dos pirron pedion, dos zegrensii, dos baniubae e dos vacuatae habitam as terras a sudeste dos nectiberes.

Os zegrensii são mencionados também sob a forma zegrensi na Tabula Banasitana. No entanto, A. Jodin (1987: 27) pensa que eles possam ser localizados na planície do Rharb (região centro-ocidental da Berberia ocidental, atual Marrocos), na margem direita do oued Sebou e a noroeste de Banasa (Sidi Ali bou Djenoun), cidade berbere datada do, ao menos, século III a.C. O arqueólogo de Volubilis acredita que o local de origem dos zegrensii não deva ser procurado para além das montanhas do Rif, o que significaria os colocar do lado de fora da região que forma, na época dos Flávios, a província romana da Tingitânia.

Já na região noroeste da Berberia ocidental, que compreende o atual Estreito de Gibraltar, Ptolomeu cita, primeiramente, os metagônitas. Após o que, o geógrafo localiza os: mázaces, os verbicae, os salinsae, os canni, os bacates e os macanites. Os herpeditani são os únicos que compartilham a região nordeste da Berberia ocidental (da Tingitânia, para Ptolomeu) com os mouros (maurensii).

Sobre estes grupos é J. Carcopino que oferece a melhor interpretação, por isso seguimos as datações que este estudioso sugere, bem como acompanhamos seus principais argumentos. Segundo ele, os bacates e os macanites são também relatados em uma glosa do Itinerário de Antonino, datada do século IV d.C. J. Carcopino a traduz da seguinte maneira: "A partir de Tingis, a Mauritânia, isto é, a região onde habitam os bárbaros, os bacates e os macanites" (1943: 260). Assim, Carcopino, fundamentandose nesse itinerário, assinala a localização desses dois grupos, não nas montanhas do norte do Marrocos (cf. Ptolomeu), e sim no centro da Berberia ocidental.

Durante o Império foram confeccionados catálogos dos grupos indígenas espalhados pelos territórios romanos. O mais antigo que conhecemos é a lista de Verona, datada de 297 d.C. (Carcopino 1943: 260). Ela enumera, na Mauritânia os: mauri gensani (mouros quinquegentiani); mauri mazazeces (mouros mázaces); mauri bavares (mouros bavares) e mauri bacautes (mouros bacates). Outro catálogo, posterior, acrescenta à lista os massenas (macanites) e os mazicei (mázeces) (Carcopino 1943: 261). Desse modo, J. Carcopino pensa que o segundo redator do Itinerário de Antonino (que incluiu a glosa mencionada acima), de posse dessas informações, que ademais não trazem uma localização precisa dos grupos, limitou-se a incluílos enquanto habitantes da Mauritânia.

Todavia, na passagem onde Ptolomeu cita os marchubi, o geógrafo também assinala os mázeces. Assim, J. Carcopino sugere que este último deva ser localizado na região da Kabília (Argélia), mais exatamente nas proximidades do rio Chélif (antigo Cinalaph) (Ptolomeu IV, 2, 5: 604). De qualquer forma, de uma região mais a leste vem uma inscrição de época tardia atestando uma ilhota de mázeces (C.I.L. 2786 apud Carcopino 1943: 261). No século IV d.C., eles são mencionados combatendo contra os romanos (Amiano Marcelino XXIX, 5, 25).

Os macanites também são citados em uma passagem de Dião Cássio (LXXV, 13, 3) que relaciona, erroneamente e seguindo uma indicação de Juba II, a nascente do Nilo com o sopé do Grande Atlas. De qualquer forma, essa região é identificada como sendo as terras dos macanites. Relegando a segundo plano a questão do Nilo, podemos incorporar as três informações sobre os macanites que acabamos de citar (Ptolomeu – IV, 2, 5-; catálogo imperial; Dião Cássio) e concluir que, estando eles para o sudeste dos bacates, os macanites deviam, realmente, habitar as terras próximas às montanhas do Grande Atlas marroquino. Os bacates ficam localizados, pois, no Médio Atlas (Carcopino 1943: 262). De fato, possuímos seis inscrições, a mais antiga da primeira metade do século II d.C., encontradas em Volubilis (cinco) e em Cartennae (atual Ténès), que assinalam a presença dos bacates nas terras centrais da Berberia ocidental.

Plínio (V, 17) menciona alguns grupos dos getulos na Tingitânia, em constante locomoção, e depois as gentes selatitos e masathos. A. Jodin acredita ser possível que a gens selatitos dependesse do rio Sala (oued Bou Regreg), e a masathos do rio Massat, no sul da Berberia ocidental (Jodin 1987: 27). De fato, o próprio Plínio, o velho, menciona o flumen Masath com relação aos masathi. J. Desanges relaciona esse rio com o Massa de Ptolomeu (IV, 6, 2: 731) (1980: 114). Uma inscrição encontrada em Rapidum (Sour Djouab) menciona um prefeito romano, que no século III d.C., comandava uma gens Masat..... De qualquer forma, os masathi estariam situados às margens do rio Massat. Já os selatiti não são mencionados em nenhum outro documento.

Dessa maneira, nossas fontes acerca dos grupos indígenas habitando a região ocidental da Berberia se esgotam. Plínio, o velho, reporta, como mencionado, alguns grupos getulos transitando pela Tingitânia, inclusive tomando o lugar de grupos indígenas locais. No entanto, o mesmo Plínio, afora os selatiti e os masathi, assinala, enquanto habitantes originais dessa região, apenas os mouros (os maurensii de Ptolomeu). Vimos que não foi assim, apesar da maioria dos nomes apresentados por Ptolomeu permanecer obscura para nós.

Getulos

Junto aos númidas e aos mouros, os getulos formam o último dos super-grupos ou "confederações" que habitaram a Berberia na Antigüidade, a partir dos dados fornecidos pelas fontes textuais. Desse modo, o termo "getulo" faz referência a um conjunto de grupos indígenas, isto é, uma espécie de "confederação". Plínio, o velho, (XIII, 91) afirma que quando os "reis" mouros pretenderam estender sua autoridade até os getulos, as terras destes tinham por limite sul as regiões habitadas pelos etíopes, ou seja, para além do Alto Atlas. Na verdade, os getulos habitavam uma zona muito ampla: ao sul da área onde viviam os mouros, os masesilos, os massilos, os súditos de Cartago e os de Roma, e ao norte do início do Saara – ocupado, por sua vez, pelos etíopes (Estrabão, II, 5, 33; XVII, 3, 2), isto é, a área que como veremos engloba toda a região meridional da Berberia. Plínio, o velho, (V, 43) situa a existência de desertos entre a área de ocupação dos getulos e dos povos mais meridionais ainda (libyes aegyptii e leucoe aethiopes). O nome getulos (gaitouloi ou gaetuli) começa a ser empregado a partir do final do século II a.C. para designar indígenas que se confundem com o grupo de povos chamado númida e não submetidos diretamente à Cartago (Gsell 1927, vol.V: 115). De maneira análoga ao que foi visto com relação aos dois outros super-grupos (mouros e númidas), acredita-se que o nome "getulos" pertencesse a um grupo indígena específico primeiramente, para em seguida aglutinar diversos outros (Estrabão, XVII, 3, 2). Eles nunca formaram um "estado", nas palavras de St. Gsell (idem:109), que conclui que o termo Gaetulia (Getúlia) era uma denominação geográfica reunindo um grupo de planícies e outro de montanhas, bordeando o deserto. Os limites meridionais desta zona separavam os brancos dos negros. Os getulos eram, então, os povos brancos que se mantiveram ao largo dos "reinos" dos masesilos, massilos e mouros (ibidem:110).

A hipótese do significado da denominação "getulos" conter a definição de seu estilo de vida, baseado no nomadismo, é abraçada por diversos autores. Assim, A. Jodin (1987: 26) afirma que o povo dos getulos se distinguia dos mouros e dos númidas por terem um modo de vida mais rústico, causado pelo seu afastamento geográfico do Mediterrâneo e por sua proximidade com as regiões desérticas. Salústio (Jugurthinum, XIX) distingue dois grupos entre eles: "os getulos que vivem, uns em choças, e outros, mais bárbaros, nômades...".

A contraposição encontramos nas análises de E. W. B. Fentress, que discorda fortemente dessa concepção. Esta autora chama a atenção para o fato do relato da Guerra da África (Bellum Africum) falar sobre duas praças-fortes getulas (duo oppida Gaetulorum) (XXV, 2). Estrabão (17, 3, 9) também menciona as habitações espalhadas pelo território dos getulos (Fentress 1982: 330, nota 13). Apesar de não negar que o pastoralismo fizesse parte da economia dos grupos getulos, ela afirma que o mesmo ocorreu para os grupos númidas. Assim, baseando-se nos argumentos fornecidos pelas fontes textuais, E. Fentress sustenta a teoria de que os getulos formavam algum tipo de confederação na qual certos grupos indígenas, cidades e áreas estavam ligados (idem: 331). De fato, essa é a interpretação que melhor se sustenta. Pompônio Mela refere-se aos getulos enquanto uma natio frequens multiplexque (1, 23) e, em uma inscrição do século I d.C., encontramos um praefectus...nation(um) Gaetulicar(um) sex quae sunt in Numidia (C.I.L. 5.5267 apud ibidem).

Plínio, o velho, (V, 17 e 10) menciona alguns dos grupos indígenas que faziam parte da denominação maior getulos. São eles: os baniurae ou baniubae, os autólolas, os darae e os nesimi. Todos esses são situados, de maneira geral, na área meridional da Berberia ocidental e central.

Discute-se ainda qual a localização geográfica precisa dos baniurae. Um grafite circular em um fragmento de cerâmica, gravado com o nome "baniurai" e encontrado no sítio arqueológico de Banasa, atesta a presença deste grupo na região central da Berberia ocidental. R. Rebuffat, autor da publicação do grafite, propõe localizar os baniurae no Vale do rio Sebou, na direção de Banasa. Já M. Euzennat os localiza no Alto-Rharb, no Vale do oued Ouerrha, mais ao sul (Desanges 1980: 146). Pendemos para a suposição de locomoções próprias do semi-nomadismo.

J. Desanges propõe que os autólolas fossem getulos, isto é, eram um dos povos que formavam os getulos (1980: 113). Ainda segundo Desanges, os autólolas habitariam a região localizada entre Sala (no litoral do Atlântico, abaixo da linha de Volubilis) e Essaouira (antiga Mogador) (Plínio, o velho, V, 9 e VI, 201). Na opinião de J. Carcopino essas indicações, às quais devemos acrescentar a que os leva mais ao sul ainda, em direção aos etíopes (Plínio, o velho, V, 17) demonstram que esse grupo estava se desintegrando, se fracionando. Quando Ptolomeu escreve sua Geografia ele os situa no litoral atlântico, na extremidade sul da Getúlia, entre Cernè (no Rio Oro) e as ilhas Canárias (IV, 6, 6: 734). A partir de Ptolomeu em diante, os autólolas só são mencionados enquanto reminiscência de um passado extinto (Carcopino 1943: 260).

Os darae são apenas brevemente mencionados por Plínio, o velho, (V, 10). Eles habitariam a região em seguida a dos autólolas: no curso médio do oued Dra (antigo Darat), localizado na região sudeste da Berberia ocidental, ou seja, distante das terras mouras mencionadas acima.

Por último, temos os nesimi, que são considerados uma facção dissidente dos autólolas por J. Desanges e estão localizados ainda mais ao sul da Berberia ocidental (Desanges 1980: 147). Acreditamos que outros grupos fizessem parte dos getulos e que dados referentes a eles possam estar misturados a outras menções genéricas, como é o caso provável dos cinithi, que J. Desanges relaciona com os getulos do relato Bellum Africum (LXII, 1).

Líbios

Para além dos diversos nomes individuais dos grupos indígenas, Heródoto é um dos primeiros a apresentar ao mundo grego um étnico que incluiria todas essas populações. Trata-se do termo "líbio". Há muito tempo aceita-se que este nome seja originariamente africano, e que foi empregado pela primeira vez pelos egípcios, já no IIº milênio, para designar os povos que habitavam a região a oeste do Nilo.

O. Bates, autor que compilou, em seu livro The Eastern Libians, todos os grupos indígenas orientais do Norte da África mencionados nas fontes escritas egípcias, criou um quadro onde relaciona os povos e grupos indígenas hamíticos, vizinhos do Egito (Camps 1960: 24). Bates inclui entre os muitos grupos que elenca, o grupo rebu/lebu (idem).

Os rebu (R'bw) localizavam-se no norte e agrupavam um certo número de grupos indígenas (entre elas os imukehek, os kehek e os esbet). Esta localização dos rebu no Norte da África dura até o período clássico e os gregos – com certeza os de Cirene – acabaram por estender esta denominação a todas as populações hamíticas do Norte da África (Camps 1960: 25). O nome Leptis, que se escreve em púnico LBKY, teria a mesma raiz do nome do povo.

Entretanto, é possível encontrar ainda uma definição mais restrita para o termo "líbio". Diodoro da Sicília, Políbio e Apiano (idem: notas 5 e 6) chamam libyes aqueles que para os romanos eram os afri, isto é, os indígenas do território submetido à Cartago, em contraponto aos nomades, que viviam para além desta área. Este território cartaginês, ou ao menos o que restou dele após as usurpações de Massinissa, foi anexado pelos romanos após 146 a.C., e a nova província, a Africa, foi denominada pelos gregos de Libye (Gsell 1928, Vol. VII: 1).

Todavia, para além dessa diferenciação entre nômades e líbios/afri possuímos documentos que mencionam categorias específicas derivadas do termo líbio. Existe, no relato dos próprios autores antigos (Diodoro da Sicília XX, 55, 4) uma diferenciação entre líbios e uma nova categoria, os libifenícios. Os primeiros corresponderiam à grande massa de indígenas e se confundiriam com os númidas, habitantes da maior parte da Líbia. Já os segundos, que possuíam muitas cidades costeiras, codividiam com os cartagineses direitos de epigamia e eram assim chamados pela sua relação de parentesco com os últimos, devem ser entendidos de maneira análoga a categorias semelhantes, como as dos iberofenícios. Após o fim de Cartago, o termo libifenício ganha um sentido geográfico-étnico, passando a identificar as pessoas de origem semítica que viviam no território que, anteriormente, havia sido controlado por Cartago (Gsell, 1918, vol.II: 94, notas 4 a 7).

É comum encontrarmos, entre os pesquisadores, uma outra interpretação que relaciona os libifenícios às pessoas de sangue misto: indígena e fenício (Bondì 1972: 654). Ou então, há quem identifique as cidades onde habitavam os libifenícios como recebendo privilégios jurídicos – em relação às cidades indígenas – e não um grupo determinado de pessoas (idem: 655).

No entanto S. Bondì (1972: 656) foi buscar nas palavras do próprio Diodoro da Sicília as pistas para o entendimento do termo. Libifenício é usado pelo historiador grego duas vezes, na passagem citada acima (XX, 55, 4) e quando ele descreve a delegação enviada por Cartago a Alexandre, o Grande, composta por cartagineses e libifenícios (XVII, 113, 2). Em ambos os casos Diodoro deixa claro dois pontos: eles habitavam a costa e gozavam de direitos semelhantes aos cartagineses.

Fazendo uma análise crítica dessas passagens, S. Bondì afirma que a documentação epigráfica que possuímos, e que nos informa acerca da existência, nas cidades da Berberia, de instituições jurídicas análogas às de Cartago, não nos permite estabelecer fronteiras espaciais entre litoral e interior. Assim, não fica evidente que apenas os centros da costa gozassem de privilégios particulares, como poderíamos ser tentados a depreender pelo fato de Diodoro situar libifenícios apenas na costa. Dessa argumentação o arqueólogo retira a seguinte conclusão: os libifenícios não se diferenciavam dos outros líbios por possuírem uma situação jurídica especial ligada ao seu território. A distinção não era feita em razão de uma distribuição geográfica (Bondì, 1972: 658). Contudo, Diodoro sabia que alguns habitantes da Berberia, fora de Cartago, possuíam direitos particulares, talvez análogos aos dos habitantes da capital africana. Dessa maneira, S. Bondì, seguindo a hipótese inicial de St. Gsell, propõe que essa distinção jurídica diga respeito a certos indivíduos e não ao espaço geográfico por eles ocupado. Quando Diodoro (XIII, 80, 3) menciona os povos que lutaram na Guerra dos Mercenários por Cartago ele cita númidas, líbios, etc., mas não libifenícios. Assim, esses últimos não seriam um terceiro ethnos, um terceiro povo, e sim uma categoria de pessoas, uma ordem: os libifenícios são os fenícios que habitavam fora de Cartago. Eles possuíam plenos direitos, que se contrapunham aos dos líbios, autóctones.

Uma denominação própria?

Na Antigüidade, o nome amazigh (tamazight, no feminino, e imazighen, no plural), o qual é, aparentemente, utilizado pelos próprios berberes como designação étnica de seus grupos indígenas, surge, em inscrições líbicas, na forma MSK; em inscrições romanas nas formas mazic, masik, mazix e mazica (feminino com uma desinência latina) (Gsell 1927, vol.V: 116; Camps 1960: 27). Este nome foi usado também no começo da era cristã para denomina diversos grupos indígenas. É um étnico largamente difundido por todos os países berberes e é usado no topônimo. Trata-se da raiz MZG ou MZK que aparece também nos nomes mázaces (de época romana), maxies (em Heródoto), mazyces (em Hecateu), maxitani (em Justino), meshwesh (nas inscrições egípcias). Os imusagh, do oeste do Fezzan, os imagighen, do Aïr, os imazighen, do Aurés, do Rif e do Alto Atlas, entre outros, conservam este nome. O tamaseght (=tamachek) é a língua dos touareg, que chamam a si mesmos de imouchar. O uso indiscriminado, nos textos antigos, do nome mazices para povos diferentes, nômades, montanheses, etc, em períodos diversos e habitando regiões distantes umas das outras, parece mostrar que este seria o único nome indígena de aceitação geral. Durante o Baixo-Império as menções aos mázaces continuam e são razoavelmente abundantes. Justino (XVIII, 6, 1), ao narrar a lenda da fundação de Cartago por Dido/Elissa, assinala que o rei da região onde a princesa iria fundar sua cidade tinha por súditos maxitani.

Os próprios habitantes autóctones se autodenominavam madic ou mazic. O termo tem sido traduzido pelos estudiosos como "nobre" ou "livre". Quinze séculos mais tarde, Ibn Khaldoun escreve que uma parte dos berberes, os Botr, tinham como ancestrais os madghis, enquanto, outros, os Beranès, descendiam dos mazigh, filhos de Cannaã (Camps 1960: 29).

Conclusão

O grupo indígena é entendido como a formação social básica a compor o tecido humano autóctone da Berberia. A partir das informações contidas nos textos de autores gregos e latinos, e dos dados fornecidos pela documentação epigráfica, percebemos que esses grupos podem ser caracterizados também quanto a sua forma de vida: nômade, semi-nômade e sedentária. O que ficou claro, no entanto, é a justaposição desses modos de vida dentro de uma mesma área, e a sobreposição dos grupos, sub-grupos, clãs, etc. dentro de um mesmo conjunto que a historiografia moderna tem denominado de "confederações" ou super-grupos.

É interessante notar que o primeiro grupo indígena apresentado por Heródoto como sedentário é o dos maxies. Vimos que essa construção, que se confunde com os próprios maxlies semi-nômades, aparece nas fontes líbicas sob a forma MZG ou MZK. A provável denominação própria berbere estaria presente no nome amazigh, imagighen e imazighen (atuais) e em diversas transcrições gregas, latinas e também egípcias (meshwesh). A raiz MZK/MZG é, com certeza, muito forte culturalmente.

Entretanto, percebemos que pensar nesses nomes todos em termos de grupos indígenas autônomos é precipitado. Das dezenas de inscrições líbicas que mencionam cinco grupos isolados ou clãs pertencentes ao super-grupo misiciri, apenas uma é bilíngüe (latina-líbica). Pois esta, justamente, utiliza uma mesma transliteração latina, no caso misiciri, para traduzir os dois líbicos (o da "confederação" ou super-grupo dos misiciri: MSKRH, e o do clã/família ou grupo ÇRMMH). Ficamos, então, cautelosos quanto a considerar todos os outros nomes apresentados pelas fontes latinas e gregas enquanto grupos indígenas por inteiro. Acreditamos ser possível que parte destes representassem, dentro da estrutura social interna, uma outra categoria hierárquica, talvez um clã ou família.

Desse modo, temos um grande conjunto de denominações gregas, líbicas, latinas, egípcias e cartaginesas. Algumas sobrepondo-se; outras sendo exemplos únicos. Estas denominações referem-se tanto a aglomerados de grupos indígenas ("confederações"), como a grupos individuais e suas possíveis divisões hierárquicas.

As bases informativas de qualquer estudo sobre o Norte da África na Antigüidade foram aqui apresentadas. Ainda resta por debater as relações sociais e econômicas destes grupos entre si e frente aos estrangeiros. As fontes textuais permanecem enquanto documentos pertinentes, mas acreditamos que somente com o avanço das pesquisas arqueológicas e etno-arqueológicas poderemos efetivamente formular hipóteses de trabalho mais conclusivas.

 
01 de novembro de 2014
in "O Fascinante Universo da História

OS BERBERES NA ANTIGUIDADE - 1a. PARTE


A pesquisa desenvolvida neste artigo foi realizada durante um trabalho de organização da documentação epigráfica e textual referente aos grupos berberes norte-africanos na Antiguidade.
Oportunamente, discutimos as especificidades da documentação à disposição do pesquisador desta área: arqueológica, epigráfica e textual e apresentamos nossa contribuição para a definição do conceito teórico tribo, normalmente utilizado de maneira vaga e pouco fundamentada.



Introdução

Norte da África, enquanto laboratório de transformações culturais impostas por mudanças históricas, constitui um campo de análise extremamente rico para o cientista humano. Esta região pode ser considerada, geograficamente, uma "ilha", pois encontra-se separada da Europa pelo mar e do resto da África pelo deserto. De fato, sua ligação física mais direta é com o Oriente, esse mesmo Oriente com o qual grande parte de sua História se mescla. No entanto, apesar das barreiras físicas, a Península Ibérica em especial, mas igualmente a região mediterrânica central, desde tempos os mais remotos, estabeleceram uma série de contatos e intercâmbios humanos, culturais e econômicos com a região norte-africana. De fato, um estudo acurado destes aspectos demonstra que, apesar de não podermos ignorar elos entre a região central norte-africana e sua área setentrional, foi com relação aos povos do continente europeu e do Oriente Próximo que a maioria dos processos ocorreu.

Conforme apontamos acima, desde o Neolítico, trocas culturais e mesmo econômicas ocorreram principalmente com a Península Ibérica e as ilhas da região do Mediterrâneo central. Por outro lado, durante a chamada Antigüidade Clássica, o Oriente, representado pelos fenícios, e através destes, pelos egípcios, estabeleceu um vínculo cultural permanente com os povos autóctones desta região. A chegada dos invasores islâmicos no século VII de nossa era representou, de uma certa maneira, uma continuidade de contato com o Oriente e não uma novidade. No entanto, gregos e, principalmente romanos, também ali aportaram. De fato, durante o Império Romano, todo o Norte da África, com exceção do Egito o qual representava uma unidade imperial a parte, foi transformado em províncias específicas: da Mauritânia (Cesariense, Tingitânia e Sitifensi), Numídia (Cirtensi e Militaria), Africa Proconsular, Tripolitânia e Bizacene.

De colonizadores em colonizadores, os povos autóctones do Norte da África depararam-se, portanto, com fenícios, romanos, vândalos, islâmicos e, já em tempos modernos, com europeus (franceses e italianos essencialmente). Sua existência, deste modo, sempre foi pautada e analisada a partir da perspectiva do outro, do estrangeiro. Entretanto, com o advento dos processos de libertação do período pós-colonial, e com a conseqüente formação de novas identidades nacionais nos países norte-africanos, houve uma identificação e um retorno ao passado islâmico. Aspectos históricos e culturais deste passado foram, então, valorizados.

Na esteira desta reificação de uma identidade nacional islâmica, os povos autóctones norte-africanos, os chamados berberes, também ganharam voz. De fato, a determinação da identidade étnica de um povo é uma criação político-social, ativada e estruturada através de estratégias discursivas dentro do próprio grupo (Hall 1997: 41). Entendemos que esta formação étnica é uma construção ditada pelas circunstâncias históricas e é de difícil percepção na cultura material. Entretanto, o pesquisador que lida com o Norte da África encontra-se absolutamente familiarizado com a existência de um grupo social específico, os já citados berberes, o qual é identificado (inclusive nos escritos contemporâneos), através de aspectos tanto culturais: lingüísticos e sociais, como também físicos, de maneira difusa, desde o chamado período proto-histórico, sempre em contraponto aos diversos povos que aportaram e dominaram o Norte da África ao longo de sua história, conforme mencionamos no início de nossa introdução.

A constituição de uma memória islâmica no Norte da África, a qual foi fruto da independência destes antigos países colônias frente ao europeu, gerou, pois, uma reação oposta à política praticada por esses mesmos europeus anteriormente, qual seja, a da recuperação do passado greco-romano destas regiões. Apesar de pesquisadores renomados, como o arqueólogo Gabriel Camps e mesmo Stephané Gsell, terem realizado uma série de estudos a respeito dos povos autóctones norte-africanos durante o período de ocupação fenício-cartaginês e greco-romano, estes povos não possuíam a primazia nas pesquisas historiográficas que hoje em dia possuem. De fato, à resposta política dos países libertos do jugo europeu devemos acrescentar uma guinada profunda que ocorre no mundo da pesquisa "clássica" européia. Entre os anos 50 e 60, publicações como a de Biagio Pace, Arte e Civiltà della Sicilia Antica e Luigi Bernabó Brea, "Leggenda e archeologia nella protostori siciliana" (Kokalos), sobre os povos autóctones siciliotas, fizeram parte de uma grande onda, até hoje muito forte, de recuperação da história dos povos marginais ao domínio grego e ao Império Romano.

A nossa tese de Doutoramento, da qual este artigo é fruto, insere-se nesta contextualização. Ao propormos a análise iconográfica das cunhagens emitidas por dois grupos autóctones do Norte da África, os mouros e os númidas – os últimos divididos em masesilos e massilos –, entre o final do século III a.C. e a segunda metade do século I a.C., nossa preocupação permanente foi a de efetuar uma pesquisa resgatando a história do ponto de vista interno destes povos, e não a partir da ótica romana ou mesmo fenício-cartaginesa. Isso nos obrigou a avaliar o raio de ação dos documentos disponíveis (textuais e arqueológicos) como também nos obrigou a repensar as categorias analíticas que normalmente são utilizadas nas pesquisas de História Antiga. Apresentamos a seguir o resultado destas reflexões com relação a definição social dos povos autóctones e apresentamos nosso mapeamento dos referidos povos.

Tribo ou grupo indígena: estabelecendo um conceito

A imensa maioria dos pesquisadores ao tratar da Berberia utiliza o termo tribo para designar a divisão estrutural básica dessa sociedade (Whittaker 1993; Gsell 1920-1930; Euzennat 1963; e outros). No entanto, muitos têm consciência das dificuldades que o uso específico da palavra tribo acarreta (Fentress 1982: nota 13). Além de questões restritas à esfera da Antigüidade, o termo é problemático conceitualmente em razão da carga negativa a ele agregada, vinda das concepções evolucionistas do século XIX. Por exemplo, foi abolido da antropologia brasileira, onde se passou a utilizar, ao invés, o termo grupo indígena (ou grupo social), menos carregado de significados secundários. Como já salientamos, mesmo internacionalmente existe um longo debate sobre a pertinência e as conotações da palavra tribo (Whittaker 1993: 332, notas 4 e 5), que se encontra em desuso mas não foi ainda totalmente abolida. Isto porque o uso do conceito "sociedade tribal" é preferido em relação ao de "primitivo", que traz embutido em si a mesma carga negativa que acabamos de relacionar ao termo tribo. Entretanto, uma vez que a produção acadêmica brasileira solucionou a questão passando a utilizar o neutro conceito de grupo indígena (o termo indígena é adotado, por nós, para marcar o caráter autóctone dessas pessoas), optamos por seguir essa tendência e o adotamos também, no lugar de tribo, mas não no lugar de "sociedade tribal", que é menos tendencioso do que "sociedade primitiva". Deste modo, utilizamos o termo grupo indígena para designar as diferentes nomeações gregas e latinas, que aparecem nas fontes antigas, de populações que se organizaram socialmente na Berberia proto-histórica. No entanto, visto que o termo grupo indígena é mais abrangente do que o termo tribo, apresentamos a seguir algumas considerações sobre o primeiro.

Na Berberia da Antigüidade, o grupo indígena pode ser entendido como a formação social básica a habitar a região, seja como nômade, semi-nômade ou sedentária. Stéphane Gsell (1927, vol V.: 82-83) definia os nomes encontrados nos textos antigos gregos e latinos como sendo ou de tribos ou de povos. O termo povos era utilizado quando a referência, segundo ele, fosse para um conjunto de povoamentos unidos por laços mais ou menos estreitos. Recentemente, C. R. Whittaker (1993: 332-333) mencionou a divisão desses grupos em "segmentos ferozmente independentes, denominados por conveniência de pequenos clãs". Estes clãs seriam compostos por diversos grupos familiares menores. Gabriel Camps (1960), em sua obra dedicada ao rei númida Massinissa, ao discorrer sobre a proto-história da Berberia, escapa ao uso de qualquer um desses termos, preferindo referir-se a povos nômades, semi-nômades e sedentários. Camps acredita em uma unidade "étnica" (aspas nossas) dos povos berberes revelada pelos dialetos berberes, hoje em dia fracionados e separados, reduzidos a ilhas, mas todos derivados de uma antiga língua (Camps 1960: 124-125).

No entanto, essa unidade étnica não expressa unidade política, isto é, centralização do poder. Os grupos indígenas divididos em clãs, que são compostos por pequenos grupos familiares, em determinados momentos históricos, da Antigüidade até o século XX se nos lembrarmos da organização social dos touareg saarianos (Seligman, 1935: 128), admitiram relações de vassalagem com outros grupos e formaram unidades políticas maiores que constantemente variaram de tamanho. Desta maneira e em alguns momentos, um certo número de grupos indígenas e de "confederações", oriundos destes, podem ser identificados, como no caso dos "reinos" pré-romanos masesilo, massilo, númida e mouro. No entanto, o grau de coesão das facções componentes e do próprio grupo indígena variou enormemente ao longo da História, e, segundo C. R. Whittaker (1993: 333), foi essencialmente efêmero.

Na verdade, a maioria dos nomes dos grupos indígenas autóctones da Berberia que a historiografia moderna conhece é oriunda das fontes textuais gregas e latinas. Estes nomes foram sempre apresentados, genericamente, como sendo referentes a um povo, uma natio (no sentido de "conjunto de indivíduos nascidos no mesmo lugar"), mas que poderiam, eventualmente, estar designando algo mais específico, uma gens (subentendendo-se um conjunto de pessoas que, pelos varões, se ligam a um antepassado comum, varão e livre).

Uma questão primordial para o estudo da sociedade norte-africana é entender quais categorias dessa organização social delineada acima estão por detrás dos nomes de grupos conhecidos, que denominamos grupos indígenas.

Acreditamos ser um erro considerar como referente a um agrupamento fechado e independente cada um dos nomes que a literatura e a epigrafia grega e latina, e a epigrafia púnica nos revelam. Como veremos nem sempre é possível depreender, a partir da citação, se se trata de um grupo indígena específico, um sub-grupo (clã, família, etc.), ou uma denominação maior ("confederação" ou super-grupo). Este tipo de questionamento teria que ser mediado pelo estudo da ocupação territorial, dos padrões dessa ocupação e do conjunto da cultura material a eles relacionados.

Dessa maneira, apresentamos as mais importantes citações textuais que mencionam os grupos indígenas berberes, acrescentando as informações provenientes da documentação material epigráfica, com o intuito de vislumbrar parte dessa organização.

A documentação

A história e a organização social dos habitantes autóctones do Norte da África pré período fenício-cartaginês é praticamente desconhecida. Os dados que possuímos sobre eles são, na sua imensa maioria, de ordem material e, mais especificamente, relacionados com a esfera excepcional da morte. Ou seja, possuímos um quadro razoavelmente completo dos tipos de túmulos e áreas de enterramento desses povos desde a sua proto-história. No entanto, as formas de ocupação espacial e a cultura material a elas relacionadas ainda não foram estudadas de maneira a formar um corpus documental consistente.

Eles possuíam uma língua própria, como vimos acima, que se convencionou chamar de líbica na falta de uma denominação original, mas essa língua só ganhou um formato escrito em torno do século IV a.C. após contatos mais extensos com os fenício-cartagineses e com a língua destes, o fenício, que no Ocidente ganhou traços específicos, e passou a ser denominada, atualmente pelos estudiosos, de púnico, do nome dado pelos romanos aos herdeiros desse povo semítico no ocidente mediterrânico.

Possuímos, por outro lado, poucos textos líbicos da Berberia. A grande maioria deles são inscrições de caráter religioso, bilíngües com o púnico ou neo-púnico (forma cursiva do púnico desenvolvida após a destruição de Cartago no século II a.C.).

As fontes escritas mais prolixas sobre os autóctones continuam sendo os textos de autores gregos como Heródoto, Diodoro da Sicília, Ptolomeu e Políbio, e romanos como Salústio, Tito-Lívio, Plínio, o velho, Tácito e Apiano, entre outros.

No entanto, a leitura dessas obras tem que ser feita com extremo cuidado, através da análise da coerência interna e da comparação com os dados fornecidos pelas fontes materiais. Além disso, as fontes originais utilizadas pelos autores antigos devem ser detectadas na medida do possível. A natureza dos temas narrados concentra-se em aspectos intimamente ligados aos acontecimentos militares que envolveram cartagineses e gregos, num primeiro momento, cartagineses e romanos, em seguida, por ocasião das Guerras Púnicas, e, por fim, as lutas entre os partidos romanos de Mário e de Silas, César e Pompeu, Otávio e Marco Antônio. Além disso temos obras como o Bellum Jugurthinum de Salústio, onde ele narra a guerra do berbere Jugurta pelo poder – guerra essa que envolveu Roma e ocorreu entre os herdeiros de Massinissa; ou então, textos acerca da convivência entre as populações locais e o poder romano, como nos Anais de Tácito, onde se lê sobre a revolta de Tacfarinas, líder do grupo indígena musulâmios, no século I d.C.

As exceções são poucas, mas existem. Assim, Heródoto, em um período anterior ao acirramento das agressões entre cartagineses e gregos, que ocorre no final do século V a.C., é o primeiro a escrever sistematicamente sobre os indígenas do Norte da África. No entanto, ele trata mais detalhadamente dos grupos que habitavam a parte oriental da Tunísia e a Líbia atuais. De qualquer forma, seu relato é muito interessante porque é o primeiro relato "etnográfico" que possuímos.

Geograficamente, as fontes textuais greco-romanas localizam os grupos mormente na região oriental da Berberia oriental, isto é, na costa leste da atual Tunísia. A proximidade com a colônia grega de Cirene com certeza facilitou os primeiros contatos entre gregos e autóctones. Para a profusão de nomes compilados nesta área, temos a contrapartida de uma exigüidade de outros para as áreas onde futuramente vão se formar os "reinos da Numídia e da Mauritânia", que correspondem, grosseiramente, às regiões do atual Maghreb.

Mais além, a visão que as fontes escritas gregas e latinas nos trazem é, antes de tudo, baseada na forma de vida que essas pessoas levavam. Apresentada de forma antinômica, isto é, ou eles são nômades ou são sedentários.

Este tipo de pesquisa forçosamente é dependente das fontes textuais. No entanto, a documentação epigráfica, quando arrolada, foi utilizada como parâmetro essencial para a determinação da veracidade dos textos. Procurar entender a organização social de um povo a partir de uma visão estrangeira pode levar a erros graves, deste modo o procedimento inverso, isto é, partir-se dos dados epigráficos seria o ideal, entretanto, no estado atual das pesquisas arqueológicas na área, este método não é quantitativamente satisfatório. Por outro lado, os dados provenientes da análise das diferentes categorias materiais de uma cultura possibilita abordagens próprias e específicas. O conhecimento que esse tipo de documento permite é muito diferente daquele construído tendo como fonte a documentação textual. A fala dos objetos, das estruturas, da organização espacial de uma sociedade é uma fala intrínseca a ela, permite uma visão global de dentro para fora, e não apenas de segmentos – como ocorre, em geral, com relação às fontes textuais. A documentação material berbere e púnica possui um atrativo ainda maior: representa praticamente a totalidade da documentação produzida por eles, a qual os estudiosos modernos puderam recuperar até o momento. Afora as inscrições – na sua imensa maioria funerárias; os grafites – especialmente na cerâmica; e as legendas monetárias, não possuímos fontes textuais diretas desses povos. A documentação textual latina do Norte da África sob domínio romano, apesar de abundante, é muito posterior ao período ora abordado.

Os pastores e agricultores de Heródoto

As primeiras indicações sistematicamente arroladas vêm de Heródoto. A maioria dos grupos indígenas que este autor grego elenca está localizada para além da Berberia oriental. A importância de Heródoto enquanto fonte textual vem de dois fatores: a primeira está centrada no fato de ser o relato de Heródoto a relação sistemática mais antiga que conhecemos – menções existem, de fato, em textos mais antigos, mas são esporádicas e fragmentárias; a segunda, diz respeito à categorização que Heródoto nos apresenta ao dividir os indígenas em nômades (pastores) e agricultores. Essa representa a primeira informação de ordem sócio-econômica de que temos notícia.

Heródoto (IV, 181, 191) descreveu a partir do Egito os: adimarquides, giligames, asbites, ausquises, bacales, nasamões, psilos (extintos), maces, gindanos, lotófagos, maxlies e auses. Os primeiros, até os maces, habitavam a área litorânea a partir da Sirte Maior (Golfo de Sidra). Os últimos habitavam as margens do lago Tritonis. Deste modo, adotando a localização de St. Gsell (1927, vol.V: 82-83), em torno de meados do século V a.C., apreendemos que, na região anteriormente denominada Sirtes (entre a Sirte Menor e a Sirte Maior nas atuais Tunísia e Líbia), viviam, de forma nômade, todos esses grupos indígenas.

Os nasamões (Heródoto, II, 32) ocupavam inicialmente o litoral oriental deste grande "golfo", que corresponde ao litoral da atual Líbia até a região de Barqa, e logo em seguida avançaram em direção à costa meridional, tomando o lugar dos psilos, que, então, desapareceram. J. Desanges, seguindo a orientação geográfica que Heródoto apresenta, situa-os, ele também, nas costas orientais das Sirtes, mas afirma que, quando eles se distanciavam de sua zona de ocupação habitual, nos períodos de transumância, a direção que tomavam era sudeste, isto é, para o oásis de Augila (atual Aoudjila) (Heródoto, IV, 172) (Desanges 1980: 370).

Os maces (Heródoto, IV, 175; V, 42) tomam posse da área ocidental da Sirte Maior (Golfo de Sidra), e mais a oeste, na região onde o Cinips corre. Este rio, identificado com o atual oued Oukirré ou el-Khaâne joga-se no mar a 18 km. para o sudeste de Lebda, a antiga Leptis Magna (Desanges 1980: 258). J. Desanges acredita que os maces foram os primeiros getulos (analisados mais à frente), a travarem contato com os romanos (idem 367, n.4).

Mais a oeste encontra-se o território dos gindanes (Heródoto, IV, 176). Antes deste povo, os lotófagos (Heródoto, IV, 177) possuíam a área situada entre a região do Cinips e da Sirte Menor (Gsell 1918, vol.lII: 131). Entretanto, na opinião de St.Gsell (1927, vol V: 82) este nome fora dado pelos gregos aos mesmos gindanes, pois estes, vivendo ao longo do litoral africano, alimentavam-se das frutas do lotos (jujubeira). De fato, J. Desanges assinala o uso do termo em Plínio, no genitivo: lotophagon, e o liga a uma fonte grega. Além disso, este mesmo estudioso bem avalia a dimensão exata desse nome ao lembrar-nos que o termo lotófago evoca simplesmente a alimentação de alguns desses grupos, feita a partir das frutas do lotos, cujas diferentes espécies crescem selvagemente em várias partes do Norte da África oriental (Desanges 1980: 267).

Retomando a distribuição espacial dos grupos indígenas apresentados por Heródoto, ao redor do grande lago Tritonis – situado na Sirte Menor – encontramos os dois últimos grupos indígenas apresentados pelo historiador grego, os maxlies (Heródoto, IV, 178) e os auses (Heródoto, IV, 180), separados pelo rio Tritão, que deságua no lago. Segundo St. Gsell (idem) este lago seria aquele que vemos, hoje em dia, ao fundo do Golfo de Gabès.

Heródoto (IV, 181) escreve: "Eu acabei de indicar os líbios nômades que habitam ao longo da costa marítima. Abaixo deles, para o interior, encontra-se a Líbia das feras selvagens..." (Camps 1960: 18). Desse modo, até o momento todas as indicações apresentadas foram com relação a grupos nômades. Na verdade acreditamos que esses grupos fossem semi-nômades, pois gravitavam em uma área fixa, entre o litoral e o interior das Sirtes.

Dentre os livros consagrados por Plínio, o velho, à geografia regional, a descrição da África representa apenas a décima-quarta parte. Ao arrolar os grupos indígenas dessa região, ele avança até as Sirtes, e assim repete alguns dos nomes mencionados por Heródoto, como os nasamões. J. Desanges compara a lista de Plínio (V, 33) com a de Estrabão (XVII, 3, 23). Os nomes dos grupos indígenas mencionados por Estrabão são: marmáridas, psilos, nasamões, getulos, asbites, garamantes. A lista de Plínio inclui seis grupos: marmáridas, acrauceles (substituindo os psilos), nasamões, asbites, maces e garamantes.

A conclusão principal de J. Desanges, acerca dessa lista, é que o escritor latino reuniu essas informações de uma tabela etnográfica muito antiga, que poderia ser relacionada ao próprio trabalho de Estrabão, mas que também poderia pertencer às anotações de Posidônio (Desanges 1980: 368).

Os maces, pois, representariam os primeiros getulos conhecidos dos romanos e habitariam a região do rio Cinips. Os nasamões, que estavam localizados para o leste do território dos maces, mantinham contatos com estes no século IV a.C. (idem: 367-368, nota 4 e 370). Os marmáridas são os situados mais para o oriente de todos, vizinhos do Egito (Estrabão, II, 5, 33 e Plínio, V, 33).

Os garamantes são mencionados por Heródoto (IV, 183) como guerreiros que se utilizavam de carros: "Os garamantes caçam os etíopes trogloditas com carros puxados por quatro cavalos". É exatamente esta a imagem que vem das numerosas pinturas e gravuras de carros do Fezzan e do Tassil des Ajjer, do Grande Atlas marroquino, da Mauritânia atual e de inúmeras regiões saarianas (Camps 1960: 21).

Estas imagens recuperadas pela Arqueologia são tão numerosas e estão localizadas tão regularmente que verdadeiras rotas saarianas foram demarcadas tendo-as como base. Uma dessas rotas atravessava o Fezzan, a antiga região dos garamantes, garantindo as relações entre o Mediterrâneo e a região de Niger.

De qualquer forma, Heródoto (II, 32) situa os garamantes no que seria uma terceira zona, ao sul das Sirtes e a leste da Líbia dos agricultores, ou seja, nas proximidades do deserto. Os garamantes eram poderosos, Plínio (V, 34) menciona sua hostilidade para com a expedição de L. Cornélio Balbo em 21 a.C., e Tácito (Anais, III, 74, 3 e IV, 50) reporta seu auxílio a Tacfarinas, no século I d.C. Afora a imagem de guerreiros que nos chegam a partir dos relatos textuais e das imagens rupestres, os trabalhos de Charles Daniels, que durante 19 anos escavou sistematicamente a área garamante, revelaram importantes dados acerca da evolução interna desse grupo e, principalmente, demonstraram que eles não eram nômades, pois possuíam cidades importantes como Zinchecra, Germa ou Garama (atual Djerma) e um entreposto em Saniat Gebril.

Acreditamos ser mais plausível a idéia que os garamantes fossem uma "confederação", dada a extensão territorial de sua ocupação e a importância de sua cultura material revelada pelas escavações arqueológicas. O próprio nome "garamantes" fornece indícios para crermos na segunda hipótese. A palavra garamantes (=ag german) significaria pessoas dos vilarejos (ou dos Ksours – "mercados"). Garama e garamantes ligam-se à raiz GRM, "agerem", que pode ser traduzida por aglomeração, burgo ou vilarejo (Camps 1960: 154). As ligações entre esses grupos que apenas vislumbramos, nos traz indícios de uma rede de contatos organizada.

A oeste da área dos auses, isto é, já na Berberia oriental, Heródoto (IV, 187 e 191) menciona outros grupos indígenas, dedicados à agricultura e que moram em casas. Ele afirma: "Mas no poente do lago Tritonis os líbios não são mais nômades e não possuem os mesmos costumes... são os líbios cultivadores... eles possuem casas e são chamados de maxies". Muito provavelmente estes indígenas, os maxies, devam ser localizados na mesma área dos grupos semi-nômades relacionados acima. Isto é, habitavam a Tunísia ao longo do lado oriental.

Junto com os maxies temos também citados os zauéces e os gizantes. Heródoto (IV, 194) diz que, de maneira análoga aos primeiros, os outros dois também dedicam-se à agricultura e moram em casas. No território dos gizantes estava situada uma montanha, que St. Gsell identifica com a cadeia da Zeugitânia, acima da planície de Enfida. Desta maneira, alcançamos a região que fará parte do território cartaginês primeiramente; e, após 146 a.C., da província romana Africa Vetus (Heródoto IV, 191, 193 e 194, respectivamente) (Gsell 1927, vol.V: 83).

Os maces, os maxies e os nasamões, dos povos citados por Heródoto, reaparecem nas fontes relativas a períodos mais recentes. Todos continuam a habitar as costas orientais e meridionais das Sirtes, ao menos até o fim do século I d.C. (Diodoro, III, 40, 1 e 49, 1; Ptolomeu, IV, 3, 6 p.642 e IV, 6, 6 p.746; Estrabão, XVII, 3, 20; Plínio, o velho, V, 33 e 34). Com relação aos maces temos o relato do Pseudo-Cílax (Périplo, 109) sobre seu modo de vida, que acreditamos ser mais condizente com o semi-nomadismo: no verão eles retiravam-se da zona litorânea da Sirte Maior e dirigiam-se para o interior, onde encontravam fontes de água para seu rebanho (Desanges 1980: 376).

Outros nomes de grupos indígenas chegaram até nós através de citações posteriores a Heródoto e anteriores a Plínio, o velho, e Pompônio Mela: os erébidas, os mimaces e os mindones (Gsell 1927, vol. V: 84-85). Eles são citados por Filistos, o siracusano, que escreveu em torno da primeira metade do século IV a.C., e por Éforo, contemporâneo de Filistos. A região ocupada pelos erébidas é situada, de maneira análoga à dos grupos anteriormente citados, entre as duas Sirtes (Gsell 1918, vo.III: 85), isto é, na área nômade de Heródoto. Quanto aos outros dois grupos, os mimaces e os mindones, não possuímos mais nenhuma informação sobre eles.

A Berberia dividida entre mouros e númidas

Retomando, em sua obra Heródoto divide os grupos indígenas que apresenta a partir do seu modo de vida. Assim, primeiramente ele relaciona os grupos nômades da Líbia oriental, cujas principais denominações procuramos apresentar aqui. A esta região o historiador grego opõe a Libia habitada pelos cultivadores, que é montanhosa, arborizada, etc.

Uma região arborizada e montanhosa aplica-se a todo o Norte da África, e não apenas aos territórios cartagineses do Sahel ("litoral"), que são áreas planas. O lago Tritonis é, portanto, para Heródoto, um limite geográfico importante, e marca a separação entre os nômades e os cultivadores, habitantes de moradas fixas.

O relato que Diodoro da Sicília (XIII, 80 e XX, 38-39 e 55-57) faz da expedição do tirano de Siracusa, Agátocles, a África, no final do século IV a.C., menciona diversas vezes os nômades, povos indígenas vizinhos do território cartaginês, que os latinos passaram a chamar de numidae. Os fatos que ele relata dizem respeito a combates de Cartago contra esses povos, em razão desses terem se aproveitado do enfraquecimento do controle cartaginês causado pelos ataques dos gregos siciliotas na Berberia oriental. Neste relato aparecem dois nomes específicos: os zufônes (XX, 38, 2) e os asfodélodes (XX, 57, 5). Os primeiros habitavam a Dorsal tunisiana, isto é, o centro da Berberia oriental (Camps 1960: 36). Já os asfodélodes Gsell situa no nordeste da Argélia, parte ocidental da Berberia oriental (Gsell 1918, vol. III: 50-51 e 1913, vol. I: 303-304). Diodoro (XX, 57) refere-se a eles mencionando que se pareciam com os etíopes, pela cor de suas peles. De fato, pesquisas arqueológicas têm revelado que, desde o período Capsiense (7.000 a 4.500 a.C.), elementos com afinitudes negróides participaram do povoamento da África. Somente com o estudo mais preciso dos esqueletos encontrados em sepulturas megalíticas, púnicas e romanas, no Norte da África, será possível afirmar com mais certeza acerca da proporção de elementos humanos do tipo negróide nesta região, na Antigüidade, como o texto de Diodoro dá a entender.

Na tradução grega, copiada por Políbio (III, 33, 15), de uma inscrição bilíngüe, grega/púnica, que o general cartaginês Aníbal teria dedicado no templo de Hera Lacínia, situado a poucos quilômetros de Crotona, na costa meridional da Itália, os cartagineses apresentam os povos africanos, isto é, os grupos indígenas, que faziam parte de sua cavalaria em 219-218 a.C., por ocasião da IIª Guerra Púnica: os lergétes e, entre os númidas, os massilos, os macões, os masesilos e os maurúsios. Dois outros grupos númidas, os areácidas e os micatanos, nos são apresentados por Diodoro da Sicília (XXVI, 23) quando este autor trata da Guerra dos Mercenários, ocorrida após a Iª Guerra Púnica. Os estudiosos modernos ainda não encontraram os territórios de todos esses grupos (Gsell 1927, vol.V: 85; Jodin 1987: 214). Os micatanos, no entanto, são mencionados por Diodoro como participantes da rebelião contra o poder cartaginês na Berberia, e os areácidas teriam colocado um dos seus chefes à disposição de Aníbal, enquanto o general cartaginês se encontrava em Hadrumeto, em 203 a.C. (Apiano, Lib., 33; Gsell 1918, vol.III: 251). A partir desse momento, nos encontramos nas regiões onde se formarão os "reinos" indígenas dos númidas e dos mouros.

Como explicitado desde o início, já em Heródoto (IV, 181, 186-188, 190-192) temos a divisão dos indígenas entre pastores: nomades, e cultivadores: agroteres. Apesar de ter sido empregado com este mesmo sentido, isto é, o de pastores, por outros autores como Hecateu e Píndaro, o termo nômade tornou-se também um nome próprio: numidae. Políbio (I, 19. 3; I, 31. 2; I, 65. 3; III, 15) usa a palavra nomades, como também autores gregos posteriores (Diodoro da Sicília, XIII, 80, 3; XX, 38 - 39; etc.). Os autores latinos utilizam o termo numidae (Salústio, Jugurthinum, V, 1 e 4; VI, 3; Tito Lívio, XXI, 22, 3; XXI, 29, 1; etc.). Deste modo, com exceção dos habitantes do território cartaginês, depois província Africa, que eram denominados libyes e afri, todos os outros indígenas do Norte da África foram chamados de nomades ou numidae (Diodoro da Sicília XX, 55, 4; Salústio, Jugurthinum, XCI, 4 e 6) (Gsell 1927, vol.V: 118), mas sem o sentido cabal de nômades, dessa maneira se diferenciando dos grupos indígenas apresentados por Heródoto, com exceção dos zauéces, maxies e gizantes, pois estes últimos habitariam igualmente a área de atuação cartaginesa e seriam cultivadores.

Entretanto, o nome "númida" acabou tendo um sentido ainda mais restrito. Os getulos, habitantes do interior, nas franjas do deserto, e os mouros, do norte da Berberia ocidental, foram diferenciados dos númidas nos textos do próprio Salústio (Jugurthinum, XIX, 4-5, 7; LXXX, 1 e 6) e de Diodoro da Sicília (XIII, 80, 3), mas também em outros autores (Justino, XIX, 2, 4; Estrabão, II, 5, 33). Os númidas, então, são os habitantes da costa situada entre o reino mouro e a província cartaginesa, ou seja, entre a Berberia ocidental e a Berberia oriental, e a Numídia (Numidia) corresponde, de acordo com as oscilações das fronteiras, a essa região. Pompônio Mela (I, 30) estendia a Numídia do Moulouia até o el-Kebir, isto é do Molochath até o Ampsaga. Sendo que em uma segunda passagem (I, 33) o limite oriental deixa de ser o rio Ampsaga para ser o promontório Metagônita (atual Cabo Bougaroun, na Argélia).

De fato, acabamos de mencionar rapidamente os três grandes grupos indígenas que serão tanto os mais citados quanto os mais conhecidos desde a Antigüidade. Já nesse período eles foram reconhecidos como super-grupos ou "confederações" maiores, que incluíam diversos grupos indígenas menores na sua composição. São os númidas, situados ao longo da Berberia central e da oriental; os mouros, localizados na Berberia ocidental; e os getulos. Estes últimos, tratados mais adiante, ocupavam a região meridional da Berberia ocidental e central. Um quarto povo, menos citado, os garamantes, já mencionados, são um caso à parte, visto que sua área de atuação está situada para além dos limites meridionais e orientais da Berberia, pois habitavam a região estépica ao sul, em sua porção oriental, isto é, na continuação latitudinal dos getulos, mais especificamente do Fezzan tunisiano, na Berberia central, até as Sirtes.

Acabamos de ver que, ao longo dos séculos, estes nomes de povos tiveram acepções diferentes. Os gregos por muito tempo chamaram de númidas todos os africanos não súditos de Cartago, reservando o nome líbios para os indígenas que habitavam o território submetido. No entanto, com respeito às populações líbicas mais ocidentais, atualmente, nós as chamamos de mouros, mais do que de númidas. Essa distinção só se tornou definitiva quando os romanos descobriram a existência de um "reino" indígena no atual Marrocos, isto é, na Berberia ocidental, o que ocorreu na época de César (Bellum Africum, III, 1; VI, 3; VII, 5; LXXXIII, 3). Artemidoro, no século II a.C., considerava ainda como númidas os líbios que habitavam as imediações das Colunas de Héracles (atual Estreito de Gibraltar) (Estrabão, III, V, 5). Entretanto, talvez seja possível perceber que a distinção entre númidas e mouros fosse mais antiga e local se admitirmos, como se faz geralmente, que o nome mouro não fosse nada além do que uma simples designação geográfica de origem fenícia. De fato, nos tempos de Aníbal, o uso desse nome era corrente; pois, como acabamos de ver, ele figurou na inscrição bilíngüe que o general cartaginês gravou na Itália, em Crotona, sob a forma grega de maurúsio (Políbio, III, 33, 15). A partir do século XVII, passou-se a explicar a origem do nome mouro por uma contração de um termo semítico: mahaurim, que traduziria "os ocidentais" (Camps 1960: 148). Os fenícios teriam dessa maneira qualificado as populações da Berberia ocidental (Gsell 1913, vol.I: 335). No entanto, G. Camps (1960: 149) acredita que esta teoria não explica, linguisticamente, a existência de uma sibilante no nome grego maurúsio, mais antigo do que a forma latina mauri (mouros).

Por outro lado, St. Gsell (1927, vol.V: 89) afirma não haver razão contumaz o suficiente para podermos rejeitar a asserção de Estrabão (XVII, 3, 2), que atribuiu uma origem indígena para o nome mauri. Plínio, o velho, (V, 17) escreve que, entre os grupos indígenas da Mauritânia Tingitânia (oeste da Berberia ocidental), o principal era o dos mauri, isto é, a gens mauri. No entanto, de acordo com este autor (V, 17) guerras haviam reduzido esse grupo a poucos clãs, e o nome da província romana de Mauritânia derivaria desse grupo. Para tentar apoiar esses textos, alguns autores passaram, então, a procurar uma origem berbere para o nome dos mouros. No entanto, as explicações até hoje levantadas não foram admitidas pela crítica acadêmica.

De qualquer forma, podemos afirmar com segurança que os mouros ou maurúsios originais, os que foram citados por Plínio, o velho, enquanto grupo indígena, habitavam a região da Berberia ocidental. Deste modo, a leste dos mouros, e até a vizinhança de Cartago, viviam os númidas.

Mencionamos acima que, na época romana, o nome númida foi usado para designar somente alguns grupos indígenas da Argélia e da Tunísia. Pois, com o tempo, os mouros haviam dado o seu nome para todas as populações da Argélia até o oued el-Kebir (Ampsaga), em seguida à cessão da Numídia ocidental (atual Argélia), antiga região da Masesília, a Boco, "rei" dos mouros, no final do século II a.C. (Camps 1960: 148). A Masesília (Masaesylie) é designada como a região do grupo indígena masesilo, considerado númida por Políbio. Permanece corrente durante um certo período enquanto designação geográfica (Estrabão, XVII, 3, 6, 9, 12, 20; Plínio, o velho, X, 22) (Gsell 1927, vol.V: 86), mas à época romana cai em desuso. Plínio, o velho, (V, 17) assinala que o grupo indígena dos masesilos havia desaparecido em meio às guerras travadas contra os mouros, seus vizinhos na Tingitânia e que seu território havia sido ocupado pelos getulos. Para Gsell significa que os masesilos saíram do Marrocos para conquistar a Argélia. Ali criaram o "reino" do masesilos (Gsell 1927, vol.V: 86).

Por outro lado, o nome dos mouros não cessa de se estender por toda a Berberia até o final dos tempos antigos, terminando por adquirir um sentido particular: o de berberes não romanizados. Na Idade Média, a mesma palavra vai servir para designar todos os muçulmanos do Ocidente (Raven, 1993: xxvi-xxvii).

Assim, admitindo a localização original na Berberia ocidental para os mouros, os númidas foram aqueles que ocuparam, entre o território desses e o de Cartago, a parte oriental da Berberia ocidental, a Berberia central e uma pequena porção, a oeste, da Berberia oriental. No final do século II a.C., com o avanço do super-grupo mouro até o Ampsaga (el-Kebir), podemos visualizar duas hipóteses: estes tomaram o lugar dos númidas, empurrando-os em direção oriental, ou co-existiram ambos os super-grupos; pois, mesmo estando correta a afirmação da existência original de um pequeno grupo indígena denominado númida, este termo passa a denominar di-versos grupos distintos de uma mesma vasta região desde um período muito recuado (século V a.C., se pensarmos nos nomades de Heródoto e século III-II a.C., se pensarmos em Políbio e sua fontes).

A relação dos grupos indígenas atuando nos exércitos de Cartago, já mencionada, que Políbio copiou de uma inscrição bilíngüe cartaginesa, qualifica uma série de grupos indígenas como númidas – Diodoro da Sicília faz o mesmo ao relatar a Guerra dos Mercenários. Retomando, são eles: os já citados masesilos, os massilos, os maurúsios – ou seja, os mouros –, os macões, os areácidas, e os micatanos.

Destes povos, foram os três primeiros que formaram os grupos maiores dos númidas e dos mouros. No século III a.C., os outros númidas, de maneira geral, eram "súditos" dos masesilos e dos massilos – com exceção dos maurúsios/mouros (Gsell 1927, vol.V: 110). De fato, os masesilos e os massilos são denominados "reis" (rex, basileus) dos númidas nas fontes escritas (Tito Lívio, XXIV, 48, 2; Políbio, XXXVI, 16, 1; Salústio, Jugurthinum, V, 4; Justino, XXXIII, 1; etc.). Isto é, são denominados "reis" dos outros grupos indígenas da região. Alguns dos nomes desses grupos já foram apresentados aqui: zufônes, asfodélodes, macões, areácidas e micatanos. Após a queda do "reino" masesilo frente aos massilos, estes últimos estendem seu poder de Thabraca (atual Tabarqa) – na Argélia – até o Soumam ou Moulouia – no Marrocos. Esta região é, então, a já mencionada Numídia (Gsell 1927, vol.V: 108). Como vimos acima os massilos primeiro perdem a parte ocidental dessa Numídia – do Moulouia (antigo Molochath) ou do oued Soumam até o el-Kebir (antigo Ampsaga) –, anexada ao "reino" mouro de Boco, no final do século II a.C., e, posteriormente, perdem o restante, a parte oriental, na segunda metade do século I a.C., com a criação da província romana Africa Nova.

Vimos que Plínio, o velho, (V, 17) assinala a presença do grupo indígena masesilo (masaesyli) perto dos mouros, na Berberia ocidental, região do Estreito de Gibraltar. Essa localização tão para o oeste não é aceita por todos. No entanto, St. Gsell (1927, vol.V: 86) e J. Desanges (1980: 145-146) acreditam ser possível confiar na informação do autor latino, pois foi encontrada na região de Anjra (interior de Tétouan, no Estreito de Gibraltar), mais precisamente em Jarda, uma inscrição do final do século II – começo do século III d.C., na qual consta uma menção aos masaisuli. Esta inscrição, redigida em nome de um morto, Tacneidis, por seus herdeiros, apresenta-o como sendo um masesilo: d(is) m(anibus) s(acrum) / Tacneidis / Securi (filius) / ex Masaiculis vixit / annos xxxv. Acreditamos ser possível que os masesilos tivessem por habitat original a região mais ocidental da Berberia e que, com as movimentações costumeiras dos semi-nômades, acabaram por se fixar na parte ocidental da região que podemos generalizar como sendo dos númidas: entre o Moulouia ou Soumam e o Cabo Bougaroun/ Ampsaga.

Com relação aos massilos, Isidoro de Sevilha (Etym., IX, 2, 123) menciona, na região da Berberia ocidental, entre o maciço do Atlas e o mítico Jardim das Hespérides (no Estreito de Gibraltar), uma cidade denominada Massília, de onde os mas-silos haviam tirado seu nome (Carcopino 1943: 286). Há uma fonte (Hegesianax 11, Fragm. hist. Graec., III: 70) que assinala tanto a existência do grupo indígena massilo quanto de seu "rei", já na Iª Guerra Púnica. Plínio, o velho, (V, 30) também os identifica primeiramente enquanto grupo indígena. Este grupo teria crescido e englobado outros grupos, de maneira análoga aos masesilos e aos mouros. J. Carcopino (1943: 285), seguindo St. Gsell (1918, vol.III: 175-177), os situa entre o Cabo Bougaroun e os limites do território cartaginês. Isto é, na fronteira entre a Berberia central e a oriental, portanto, no extremo oposto do Estreito de Gibraltar. Massinissa foi o mais famoso representante do povo massilo. J. Desanges propõe como centro do "reino" massilo a região do djebel Fortas, ao sul da cidade argelina de Constantina, antiga Cirta (Desanges 1980: 335). O Medracen, grande mausoléu númida entre Aïn Yagout e El Mader, na região de Batna (sudoeste de Constantina), área dos númidas massilos, possui uma datação de 330 a.C.. Foram encontrados diversos documentos epigráficos que assinalam o cognome Mas(s)ul nessa região.

Entre os poetas latinos registra-se o adjetivo massylus (por vezes massylius ou massyleus) para aplicá-lo, de maneira geral, aos homens e às coisas da África (Virgílio, Eneida, IV, 132 e 483; Lucano; Sílio Itálico, XVI, 258 apud Gsell 1927, vol.V: 87).

A palavra númida, de construção ternária, possui um aspecto semítico, devido talvez aos diferentes sistemas de transcrição. Duas inscrições bilíngües, latino-púnica e latino-líbica, nos deram dois nomes diferentes correspondentes ao numida. Na primeira, descoberta em Guelaâ-bou-Sba, o texto neo-púnico traz o nome de Tisdat, filho de Metatis, filho de Gautal, o NGRY....; o texto latino diz: Rufus, Metatis filius Num(ida?). Se admitirmos o desenvolvimento Num(ida), somos tentados a dar o mesmo significado para o termo púnico "NGRY". Ora, este étnico é conhecido em cerca de meia dúzia de inscrições líbicas sob a forma "NGRH". Estas inscrições estão situadas entre Duvivier e Souk-Ahras, isto é, em uma região essencialmente númida, entre os Alpes Numidicae e Thubursicu Numidarum (próxima a Collo, antiga Chullu, na Argélia).

No entanto, quando examinamos a outra inscrição bilíngüe (R.I.L., n.85 apud Camps 1960: 150), latina-líbica, o ceticismo quanto a correlação númida-NGRH surge. Descoberta em Dar Tabela, perto de Ouchtata, ela apresenta para a palavra latina N(umida), a correspondente líbica "NBIBH", que é bem diferente da "NGRH" vista acima. O étnico "NBIBH" é bastante conhecido a partir de outros documentos encontrados na localidade de La Cheffia (na fronteira entre a Berberia central e a oriental), onde aparece em 15 inscrições (analisadas adiante, pois o termo está ligado a um grupo indígena específico, os misiciri).

Assim é que não cremos ser possível estabelecer ainda qual a hipótese mais precisa. G. Camps (1960: 152) pensa que mesmo não se conhecendo nem o nome púnico nem o líbico que corresponda ao latino numida, não haveria razão para acreditarmos que este último tenha sido derivado do nomades grego. Se os romanos tivessem se apossado dessa nomenclatura a partir do grego eles a teriam integrado ao sistema imparisilábico da 3ª declinação (idem: 153). Se os latinos chamaram de numidae os mesmos povos que os gregos, ambos em razão de um trocadilho, que os batizava de nômades, foi pelo fato que tanto um como o outro tiveram um modelo norteafricano, que lhes pareceu mais berbere do que púnico, apesar de sua construção ternária. G. Camps lembra que são conhecidos, na onomástica líbica, nomes que começam com NM (R.I.L., pr.XX apud Camps 1960: 152).
 
 
01 de novembro de 2014
in "Fascinante Universo da História"

O PSICOPATA EMBAIXO DA CAMA - PARTE 1

(Apontamentos inspirados pelo livro Russia’s kleptocracy de Karen Dawisha e à luz da metodologia de Golitsyn)
“Por podemos constatar que há um sistema astuto e complexo na Rússia — que por sinal é opaco e cheio de detalhes interessantes e regras internas — deveríamos concluir que o sistema só veio a se concretizar por causa de um projeto consciente. Mas como? Evidências mostram que indubitavelmente ele não se concretizou por acaso. Este livro rejeita com veemência a ideia frequentemente disseminada pelos meios acadêmicos ocidentais de que Putin é um ‘autocrata acidental’ ou um ‘bom czar rodeado por maus boiardos’.”
Karen DawishaPutin’s Kleptocracy: Who Owns Russia?
“As elites formam a autoridade fundamental [na Rússia]: elas abastecem a autoridade coletiva a qual elas mesmas compõem [inclusive fornecendo o presidente] e decidem, entre outras coisas, por quanto tempo deve servir o presidente.  Essas elites necessitam de um mecanismo ao seu dispor para que, por meio dele, decisões como essa possam ser tomadas e tornem possível que se coordenem os eventos políticos. É essencial ao sucesso dessa estratégia que esse mecanismo esteja bem escondido do Ocidente. Me faltam os recursos para estudar como esses mecanismos funcionam. No entanto, a probabilidade é que ele funcione de modo sub-reptício dentro de uma instituição conhecida publicamente. O Conselho de Segurança Nacional pode ser um candidato a ser investigado como possível front desse mecanismo secreto.”
Anatoliy GolitsynMemorando à CIA, 1 de outubro de 1993
"Quero alertar os americanos. Como povo, vocês são demasiadamente ingênuos acerca da Rússia e suas intenções. Vocês acreditam — porque a União Soviética não existe mais — que a Rússia agora é amiga. Ela não é e eu posso mostrar como a SVR [serviço de inteligência estrangeira russo] está tentando destruir os EUA hoje mesmo e com muito mais intensidade do que a KGB durante a Guerra Fria.”
Sergei Tretyakov, citado por Pete Early em Comrade J: The Untold Secrets of Russia's Master Spy in America After the End of the Cold War (2007)

O velho inimigo da América ainda está aí planejando destruir o capitalismo. Entretanto, isso parece um paradoxo, pois o comunismo supostamente morreu há 23 anos. É claro então, que o que morreu foi algo diferente. Na verdade, o que morreu é a velha prática de admitir as crenças comunistas. Foi isso que morreu! A moda hoje — em Rússia, China, EUA, Europa, América Latina e África — é negar que alguém seja comunista. Foi assim que se disse que Nelson Mandela não era comunista, mas um “democrata”. Hugo Chávez não era comunista, mas um “populista”. O presidente Xi Jinping não é um comunista, mas um “pragmático”. Vladimir Putin não é um comunista, mas um “cristão”. E assim joga-se o jogo ao redor do mundo, de maneira que ninguém é comunista, exceto aqueles que vestem um capuz vermelho com um martelo e uma foice desenhados na testa.
E quem seria idiota ao ponto de vestir tal capuz? Apenas um tolo diria que está aí para destruir o capitalismo. Os capitalistas possuem poder e dinheiro, de modo que eles resistiriam a qualquer ataque direto e aberto às suas posições. Sendo assim, o rótulo comunista interfere negativamente no cumprimento dos próprios objetivos comunistas, pois até mesmo um homem de negócios relativamente ignorante teme a expropriação. Desta maneira, o avanço do comunismo deve ser um processo dissimulado ao qual os comunistas tomem o poder sob um estandarte “progressista” que prometa melhores condições de saúde e melhores condições de vida; ou, como prometeu Lênin ao povo russo em 1917, “Nossa política é pão e paz!”. No entanto, essa campanha se revela pela sua patente inveja e pelo seu uso de forças e desejos destrutivos — especialmente ao manterem vivas memórias de injustiças passadas e de tragédias da história as quais podem ser atribuídas de modo verossímil à “ganância” ou aos “ricos”. Na verdade não são os “ricos” que temos de temer, pois riqueza não é o mesmo que maldade. O criminoso e o psicopata não são tão motivados pela cobiça, dado que a motivação principal desses dois vem do ódio que nutrem pela sociedade normal. “Um homem não é um socialista se ele não odiar uma pessoa ou alguma coisa...”, escreveu Gustave le Bon. O pano de fundo dos grandes líderes socialistas, de Mao a Castro, ou de Stálin e Lenin, era um pano de fundo psicopatológico. O socialismo totalitário sempre foi na verdade um governo de psicopatas. A demonstração final de comunismo é a presença de criminosos de tipo ordinário dentro da liderança do Partido Comunista ou no quadro de membros. É aí que encontramos sádicos, ladrões, assassinos e os excluídos do convívio normal da sociedade. A revolução os seduz, pois ela permite que eles façam o que sabem fazer de melhor, só que sob o manto ideológico. Como observou Sam Vaknin, “A supressão da inveja está no âmago do narcisista. Se ele não conseguir se convencer de que ele é a única coisa boa no universo, ele está fadado a ser exposto por sua própria inveja assassina. Se houver outros lá fora melhores que ele, ele os invejará e os atacará de maneira feroz, incontrolável, louca, odiosa, até chegar ao ponto de tentar eliminá-los”.
Se o indivíduo for patológico então ele pertence a uma tribo patológica. E sim, eles podem reconhecer uns aos outros.  É esse subconjunto que opera para destruir a civilização ocidental e eliminar o que há de melhor no mundo. O psicopata, energizado pela política, se realiza de uma maneira totalmente nova. Uma pessoa não está destinada a cometer crimes irrelevantes se houver grandiosidade suficiente. É possível assim cometer crimes contra milhões de pessoas indefesas em escalas nunca antes sonhadas. A esse tipo de maquinação é dada uma coloração ideológica. O perpetrador é apresentado como o herói dos oprimidos. É assim que toda essa empresa é vendida aos fracos de espírito, ingênuos e imaturos. É aí que está o subconjunto que atualmente seduz nossos homens de negócio para que eles formem uma relação de negócios gigantesca com a China. É aí que está o subconjunto responsável por mudar o currículo escolar em várias jurisdições dos Estados Unidos. Eles já tomaram os grandes sindicatos. Eles possuem um surpreendente grau de influência sobre a mídia e Hollywood. Eles possuem primazia na formulação de políticas ambientais e dão atenção particular na mutilação da economia capitalista para que se torne impossível à América competir economicamente. Como mostrou Trevor Loudon em seu último livro, The Enemies Within: Communists, Socialists and Progressives in the U.S. Congress [Inimigos intramuros: Comunistas, Socialistas e Progressistas no Congresso dos EUA], esses “inimigos” chegam até a redigir nossas leis — seja nas assembleias estaduais ou no Congresso.
Hoje em dia estamos condicionados a acreditar que o movimento comunista internacional não existe mais. Ele não tem mais na Rússia sua capital. Estamos condicionados a acreditar que os comunistas chineses são comunistas apenas no nome. Seria sábio acreditar que o comunismo morreu porque os psicopatas por trás dele foram curados? Ou, afinal de contas, seria mais sábio admitir que os psicopatas que compunham o núcleo de um sistema criminoso mantêm-se como eram? Por que teria alguma diferença agora? Hoje eles nos enganam dizendo que viraram a página. Mas não há página alguma e, portanto, nada para virar. Psicopatas não são curados ao tornarem-se capitalistas.
Dezenas de milhões foram assassinados pelo sistema criado pelo Partido Comunista que durou de 1917 a 1991. Quem foi julgado por esses assassinatos? Alguma propriedade foi devolvida às famílias das vítimas? Foi feita alguma restituição? Não. Lênin sequer foi enterrado e seus restos mortais estão à mostra em Moscou como se estivessem frescos como margarida. Suas estátuas mantêm-se todas em pé por toda a Rússia. Pode-se argumentar que em 1991 o Partido Comunista da União Soviética mudou sua formação e passou parcialmente à clandestinidade. Se o sistema russo é opaco, como mostra a expert no assunto Karen Dawisha, então ele foi cuidadosamente projetado. Por que a realidade política russa deveria ser considerada tenebrosa senão pelo fato de que a Rússia tem em mente a organização de uma fraude — com um véu escuro estendido sobre acontecimentos e personalidades chave? Precisamos olhar com maior atenção à obra de Anatoliy Golitsyn, que por sua vez previu com sucesso todo o devir da política russa desde 1985 até o presente. Ele previu a perestroika e a glasnost. Ele previu o Partido Comunista desistindo do seu monopólio.  Ele previu o estabelecimento de freios e contrapesos no sistema político russo. E ele previu que esses freios e contrapesos seriam um embuste; talvez o maior embuste da história, ao ponto de colocar em risco o destino de milhões no mundo inteiro.
Muitos pesquisadores têm fortes suspeitas de que ataques a bomba nos apartamentos em 1999 na Rússia foram planejados pela FSB para que se pudesse culpar os muçulmanos e assim começar uma guerra contra a Chechênia. Alguns pesquisadores suspeitam que tal ato pode ser considerado uma ação inaugural para consolidar um novo tipo de regime na Rússia. Mas esse não é apenas um tipo ordinário de regime criminoso, mas uma reconfiguração do regime soviético (os mesmos criminosos sob um novo rótulo). Como alguém que saiu da chefia da FSB antes dos ataques, Vladimir Putin provavelmente esteve envolvido no planejamento e ele certamente foi o beneficiário político do desenrolar dessa história. A retomada da guerra à Chechênia, que então fora rotulada de “Operação Anti-terror” não foi um mero álibi antes do 11 de setembro [1]. Isso ajudou Putin a desempenhar o papel de fiel aliado aos Estados Unidos (coisa que ele nunca foi). Que esse álibi foi falso é algo admitido pelo Gauleiter da Chechênia, Akhmad Kadyrov, escolhido a dedo por Putin. No dia 7 de junho de 2000 Kadyrov deu uma entrevista ao jornal inglês de língua árabe Al-Sharq al-Awsat sugerindo de maneira oblíqua que os generais russos controlavam ambos os lados do conflito na Chechênia. De fato é algo muito intrigante! “Isso não é jihad”, explicou Kadyrov, “é apenas um embuste”. Ele confrontou pessoalmente Putin acerca desse fato e Putin supostamente admitiu que “erros foram cometidos”. Kadyrov afirmou: “Eu disse a Putin que se a Rússia realmente quisesse, nem um único estrangeiro [i.e. um terrorista da al Qaeda] poderia ter infiltrado na Chechênia ou oferecido um único dólar a ela, o que significa que essa coisa toda foi deliberadamente planejada”.
Sim, ela foi planejada por um número de razões minuciosamente planejadas. Como argumentou mais tarde Anatoliy Golitsyn, a guerra na Chechênia havia provado a todos que a Rússia era militarmente fraca e incapaz. Ela não poderia mais ser uma ameaça ao Ocidente. Isso logo adiante reforçou a retirada da inteligência ocidental que estava na Rússia e realocou-a para combater a ameaça islâmica. Como sugeriu Golitsyn, as políticas e ações tomadas pelo Partido Comunista da União Soviética (PCUS) de 1985 a 1991 tinham em mente essas consequências desde o início.
Trinta anos atrás o ex-major da KGB, Anatoliy Golitsyn, alertou em sua obra New Lies for Old que “os próximos cinco anos serão um período de luta intensa, que será marcado por uma grande e coordenada ofensiva comunista dirigida à exploração do sucesso do programa de desinformação estratégica ao longo dos últimos vinte anos e a tirar vantagem da crise e dos erros que esse programa gerou nas políticas ocidentais dirigidas ao bloco comunista”. Essa ofensiva, segundo ele, foi cuidadosamente preparada desde o fim dos anos 1950. Ela envolveria a colaboração secreta entre Moscou e Beijing.
De acordo com Golitsyn, a Rússia e a China estão comprometidas com a “estratégia das tesouras” e, no “golpe final, as lâminas da tesoura se fecharão”. A opção europeia “seria levada por um renascimento da ‘democratização’ controlada nos moldes checoslovacos”. Golitsyn explicou que a intensificação das políticas linha-dura do começo dos anos 1980 “exemplificados pela “prisão” de Sakharov e a ocupação do Afeganistão, pressagiam, talvez, a saída de cena de Brezhnev”. Golitsyn então fez uma previsão espantosa: “O sucessor de Brezhnev pode bem parecer um tipo de Dubcek soviético. A sucessão será importante apenas para efeito de exibição. A realidade da liderança coletiva e o compromisso comum dos líderes à política de longo alcance continuarão sem ser afetados”. Ele previu que uma era de políticas de longo prazo estaria por vir: o controle seria descentralizado, firmas auto-administradas seriam criadas e se aumentaria os incentivos materiais. Segundo o major, “o controle do partido sobre a economia seria aparentemente relaxado e diminuído. Tais reformas se baseariam nas experiências soviéticas dos anos 1920 e 1960, bem como na experiência iugoslava”. A despeito das aparências externas, Golitsyn alertou que o partido “continuaria a controlar a economia por detrás da cena, tanto quanto controlava antes. O quadro de estagnação e deficiências, que [fora então] apresentado deliberadamente, deveria ser entendido como parte da preparação para inovações enganosas; esse quadro [tinha] a intenção de causar sobre o Ocidente um impacto maior quando essas inovações [fossem] apresentadas.”
Dentre essas inovações enganosas incluir-se-ia a liberalização política. “A ‘liberalização’ deveria ser espetacular e impressionante”, escreveu Golitsyn. “Podem ser feitos pronunciamentos formais sobre a redução do papel do partido; seu monopólio será aparentemente reduzido. Uma ostensiva separação de poderes entre o executivo, o legislativo e o judiciário pode ser anunciada. [...] A KGB seria ‘reformada’”. Infelizmente, segundo Golitrsyn, “a “liberalização” seria calculada e enganosa, posto que apresentada e controlada de cima. Ela seria levada adiante pelo partido, através de suas células e de membros individuais no governo [...] pela KGB através de seus agentes...”
Golitsyn nunca recebeu devidamente os créditos pelas várias previsões certas que fez, mas seus insights têm sido confirmados — embora indiretamente. No novo livro de Karen Dawisha, Putin’s Kleptocracy, podemos encontrar uma descrição detalhada do mecanismo ao qual o Partido Comunista da União Soviética contava para continuar a controlar em segredo a economia pós-soviética. É claro que Dawisha não reconhece plenamente que o objeto descrito (a conspiração da KGB que circunda Putin) é um mecanismo de controle secreto usado por um partido governante oculto. Mas ela reconhece sim que esse é um mecanismo majoritariamente composto por agentes da KGB. De acordo com Dawisha, “quando o recém-eleito presidente Boris Yeltsin baniu o PCUS após o golpe fracassado de 1991 contra Gorbachev, a chefia do partido se desfez e o controle sobre a vasta montanha de dinheiro estrangeiro que eles possuíam caiu nas mãos dos agentes da KGB que tinham acesso às operações e contas estrangeiras”.
A afirmação de Dawisha é inocente, claro; pois como ela sabia quem estava no comando? A KGB continuou a existir após 1991. O sistema militar geral da União Soviética, embora diminuto, ainda continuou a existir. Temos testemunhas sobre isso vindo de desertores da KGB, FSB e GRU. Mais que isso: a luta comunista internacional continuou a existir! (Veja este recente vídeo de Cuba.)
Pense: se os comunistas não estivessem ainda no controle da Rússia, por que a Rússia estaria atualmente expandindo sua esfera de influência na comunista Nicarágua conforme documentado por Valeria Gomez Palacios? É fato irrefutável que o presidente Daniel Ortega é comunista. O Partido Sandinista é, com efeito, um partido marxista-leninista que apenas finge ser ‘social democrata’. Os gângsteres que controlavam o partido nos anos 1980 são os mesmos que o controlam hoje. E o jogo político na Nicarágua apresenta um paralelo com o jogo político russo. É evidente que esse jogo implica em colocar uma maquiagem democrática no mesmo velho porco comunista.
Se Moscou agora é russa e não comunista, por que então eles apoiariam Ortega e os sandinistas ao instalar uma base militar russa na Nicarágua? De acordo com Gomez, “Em fevereiro de 2014, mudanças ilegais na constituição da Nicarágua foram aprovadas e, dentro delas, há um novo decreto de autoridade presidencial que muda toda a essência do jogo político. A nova reforma da constituição colocou o povo da Nicarágua numa ditadura legalizada e solapou o resto de democracia que ainda havia no país”. Em outras palavras, uma tomada comunista na Nicarágua foi finalizada e bases militares russas serão construídas lá. Se o PCUS não está ainda hoje governando a Rússia, por que apoiar Ortega deveria ser uma prioridade? E por que os soldados russos marchariam lado a lado com um dedicado comunista? Indo mais direto ao ponto, por que os comunistas nicaraguenses confiariam nos russos se eles não fossem ainda fiéis à causa? Além disso, a Nicarágua de Ortega é agora uma ditadura que faz oposição aos Estados Unidos. É apenas mera coincidência que a Rússia de Putin seja atualmente uma ditadura que faz oposição aos Estados Unidos? Enfim, sejamos realistas. Admitamos o que vem acontecendo desde 1991.
Durante a década de 1990, após a suposta queda do comunismo na Rússia, o Kremlin continuou a mandar suprimentos militares aos comunistas do MPLA em Angola. Mesmo quando os Estados Unidos pararam de apoiar Jonas Savimbi, os aviões russos de suprimento continuaram a levar armas e munição. Se avançar o comunismo global não era mais um objetivo russo, por que então apoiar os idiotas do MPLA? O mesmo vale para a relação russa com a África do Sul governada por Mandela e seus sucessores do partido ANC, que é controlado pelos comunistas, e com Chávez na Venezuela. Mandar navios de guerra e aviões militares à Venezuela não foi uma mera visita amistosa. Foi algo mais.
Karen Dawisha sugere que a atual liderança russa, que provém da KGB, está focada no auto-enriquecimento. Ela não vê um partido comunista nesse grande esquema, a despeito das várias estátuas de Lênin que ainda estão em pé por toda a Rússia (assim como ainda estavam na Ucrânia até um ano atrás). Por que não derrubar as estátuas? Por que não enterrar Lênin? Por que ameaçar as pessoas que derrubaram as estátuas de Lênin na Ucrânia? Essas questões todas são minimizadas, mas não deveriam. Se esses supostos governantes da KGB não fossem comunistas, mas apenas criminosos gananciosos, como explicar o comportamento suicida de provocação à América nos dias de hoje? Como explicaríamos seus virulentos ataques? Como explicaríamos a anexação da Crimeia, a beligerância em relação aos Estados bálticos e à OTAN? Com efeito, se eles tivessem como plano aproveitar seus desonestos ganhos em paz, eles iam apenas subornar os governantes ocidentais e se apresentar como pessoas que não significam qualquer ameaça e que eram apenas “amigos” com armas nucleares que queriam acesso ao sistema financeiro, e não derrubadores de aviões civis e anexadores de territórios de países vizinhos. Que maneira melhor teria do que evitar conflitos? Por que construir bases militares na América Central? Por que enviar bombardeiros estratégicos voarem ao longo da costa da Califórnia? Que tipo de homem arriscaria uma Terceira Guerra Mundial para adquirir 80 bilhões em vez de 40? Isso não é ganância. É uma anormalidade psicológica, um defeito sintomático de um comunista desajustado.
Oh sim, Putin e sua gangue são criminosos. Como mostra Karen Dawisha, os líderes ocidentais sabiam disso há muito tempo. Agora o rótulo “criminoso” substituiu a ameaçadora marca “comunismo”. Eis que tivemos uma distração embrulhada dentro de um álibi, açucarado com a promessa de uma parceria lucrativa. A distração alcançou seus objetivos, o álibi foi aceito sem suspeitas e a parceria foi uma farsa. Mostrando sua verdadeira face hoje, Putin dá rosnadas ameaçadoras enquanto caminhamos para além da fase final do grande engano: rumo àquilo que Anatoliy Golitsyn chamou de “um só punho fechado”. O perigo de guerra aumenta; Os treinos militares russos têm se tornado mais frequentes; Bases são preparadas na Nicarágua; ISIS avança no Iraque; Coreia do Norte se prepara para a guerra; e a China também se prepara para uma “guerra regional”.
No livro de Karen Dawisha lemos sobre a quantidade maciça de riqueza controlada pelo presidente russo e seus associados. Essas pessoas possuem posições chave nas finanças globais, de maneira que é possível a eles (nas palavras de Dawisha) “solapar [...] instituições financeiras ocidentais, bancos, mercado de capitais, mercado imobiliário e companhias de seguro...” Políticos ocidentais proeminentes foram corrompidos (e.g. Silvio Berlusconi) e as grandes companhias foram comprometidas (e.g. Banco de Nova York). O novo sistema russo controla o desenvolvimento político e econômico não apenas da Rússia, pois ele se entrelaçou e persuadiu a política e o comércio ocidental. De acordo com Dawisha, “a KGB moveu as vastas reservas do PCUS para o estrangeiro e para longe do controle do presidente Mikhail Gorbachev, fazendo com que seu regime se enfraquecesse”. Mas o dinheiro não foi transferido para o estrangeiro para debilitar Gorbachev. Ele foi transferido para o estrangeiro com o fim de infectar o Ocidente. Dawisha precisa perceber que uma estratégia estava em curso. Ela não percebe os sofisticados métodos e táticas do PCUS e sua Espada e Escudo (a KGB); ela precisa reconhecer um processo que já estava em ação em 1991. Quando Lev Pavolovsky alertou que Putin pertencia a uma “camada muito extensa, porém invisível, de pessoas que [...] buscavam uma ‘revanche’ diretamente ligada à queda da União Soviética”, ele talvez estivesse se referindo ao Partido Comunista da União Soviética, que ainda continua a existir. E sim, ele ainda controla as coisas, pois ainda podemos rastrear seu projeto maior (que é completamente Vermelho). Incrivelmente, Dawisha chega muito perto de ver esse quadro maior. Ela reconhece que as músicas favoritas de Putin são soviéticas, entretanto ela tende a dar maior ênfase na ganância de Putin. Quando Putin estava alocado na Alemanha Oriental, explica Dawisha, “ele obrigava os líderes de facção do Exército Vermelho Alemão [...] a roubar aparelhos de som pra ele quando eles tivessem um momento livre em meio a suas campanhas de terror”.
Comunismo, como observei anteriormente, sempre se tratou da espoliação. Ele sempre esteve infundido de inveja. Comunistas roubam, mentem e matam. Essa é a história do comunismo — seja Rússia, China, Cuba, Venezuela, etc. etc. Os agentes da KGB terem enriquecido a si mesmos com o dinheiro do PCUS não serve como testemunho de anticomunismo. Não devemos nos surpreender com o artigo de Bill Gertz no Free beacon dia 7 de abril intitulado “Putin Corruption Network Revealed” [Revelada rede de corrupção de Putin]. O que deveria nos surpreender são os recentes avanços comunistas em Colômbia, Nicarágua, Equador e dentro dos EUA. A liderança comunista sempre foi gananciosa. Acreditar em sua retórica de exploração da mão-de-obra é uma idiotice completa. Os líderes comunistas jamais deram a mínima para os trabalhadores. Narcisistas perniciosos e psicopatas não ligam para as outras pessoas. Eles ligam para o seu próprio e grandioso lugar no universo enquanto procura eliminar aqueles que ameaçam expor suas verdadeiras insignificâncias.
Em seu excelente delineamento das relações criminosas de Putin, Dawisha presume que essas mesmas ligações nos dizem automaticamente quais as suas funções e quais os seus fins. Ela não parou para pensar que a riqueza é apenas uma das armadilhas do poder, e não o próprio poder. Ela não parou para pensar que se as “elites do Kremlin” definem orientações para trabalhar com estruturas criminosas é porque o principal fim é o engrandecimento estratégico por meio de um apelo ao engrandecimento pessoal. O que permitiu que Anatoliy Golitsyn fizesse tantas previsões corretas sobre a Rússia foi sua habilidade em se manter focado na significância estratégica das ações e eventos. Em sua análise Dawisha quase chega lá. Ela juntou admiravelmente as peças quando citou um promotor espanhol dizendo que “não se pode diferenciar entre as atividades do governo [russo] e dos grupos de crime organizado [na Rússia] [...] A FSB está absorvendo a Máfia russa [e usando-a para operações secretas]”.
Isso é muito importante: a ‘Espada e Escudo’ do PCUS está “usando” a Máfia russa. Não é o oposto. Agora quero retornar a um dos insights mais intuitivamente brilhantes de Dawisha: “que o sistema [russo] se concretizou graças a um projeto consciente”. Poucos percebem o quão sofisticado esse projeto é e o quanto de habilidade intelectual e estudos foram necessários. Não se trata de uma mera rede de crime organizado. Eles não são meros “oficiais corruptos”. A Academia Soviética de Ciências fez sua contribuição. Os maiores peritos soviéticos também deram sua contribuição. A União Soviética moldou-se para um objetivo, uma missão, e o colapso dela não foi o fim da missão, mas um meio de cumpri-la. Novamente, o promotor espanhol que Dawisha cita fala de gravações que mostram que os chefes da Máfia russa “mantêm um nível de contato ‘perigosamente íntimo’ com oficiais russos sêniores”.
Que tipo de sistema possui a Rússia? Quem está por trás do “projeto consciente” que ela fala? “Estou sugerindo que os aspectos antidemocráticos e politicamente iliberais dos planos estavam presentes desde o começo...” De fato, Dawisha está muito próxima da verdade. E o que pode ser mais antidemocrático e politicamente iliberal que o comunismo? Fico imaginando se Dawisha procurou uma outra maneira de discutir a verdadeira situação omitindo a terminologia embaraçosa e démodé da Guerra Fria — mesmo que ainda estejamos nela e estejamos lutando contra o mesmo inimigo. Se o nome de Putin fosse Donald Duck, isso não mudaria o que ele é. Nosso hábito de confundir os rótulos com “a coisa em si” contribuiu para o atual estado de confusão; então é bom ler uma pesquisadora tão astuta como Dawisha.
O que acontece agora no Extremo Oriente, no Oriente próximo, na Ucrânia e na América Central são partes de um mesmo fenômeno. Precisamos pensar estrategicamente. Precisamos perceber que um sistema político anormal e seus líderes anormais não podem se transmutar em algo que não são. Um tigre pode se esconder numa árvore e esperar sua vítima, mas ele não pode mudar suas listras. O que interpretamos como mudança em 1989-91 foi apenas adaptação. O animal continua o mesmo, especialmente no seu interior.

[1] NT: Necessário que o leitor tenha em mente o último capítulo do livro Spetsnaz: The Story Behind the Soviet SAS de Viktor Suvorov e o conceito de “terrorismo cinza” já citado anteriormente.
01 de novembro de 2014
JEFFREY NYQUIST
Tradução: Leonildo Trombela Junior