Maria Lucia Fattorelli diz que o Brasil é explorado pelos bancos
O cenário de crise econômica que se alastra pelo país nos últimos anos vem sendo causado pela política monetária do Banco Central, ponta de lança do processo que está provocando a quebra da economia e os altos índices de desemprego em cadeia nacional. A leitura é da auditora fiscal Maria Lucia Fattorelli, fundadora e coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, movimento que atua em prol da transparência nas finanças públicas.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a auditora destaca a preocupação com a supremacia dos bancos ao longo de diferentes governos, critica o discurso oficial de defesa da reforma da Previdência e sustenta: “Querem deixar o nosso povo acreditando nas sombras. A gente tem que sair da caverna e enxergar nossas potencialidades”.
Dando um panorama da crise econômica atual, quais fatores teriam sido primordiais pra colocar o país nesse caminho?Na nossa opinião, foi a política monetária do Banco Central. A partir de 2013, o BC começou a subir as taxas de juros em todas as reuniões até chegar em 14,25%, que é um absurdo, uma taxa extremamente alta e, quando chegou nesse valor, ficou nesse patamar por mais de um ano. Em março de 2013, estava 7,25%; em abril, foi a 7,50%; em maio, para 8%; em julho, a 8,50%; em agosto, 9%; em novembro, 10%. Em abril de 2014, chegou a 11%. Em janeiro de 2015, já estava em 12,25%; foi a 13,25% em abril; em julho atingiu 14,25%. Veja bem, ficou em 14,25% até outubro de 2016.
Além dos juros altos, o que houve?Demorou muito para cair também. Então, ao mesmo tempo em que o BC começou a acelerar a taxa básica, ele aumentou as “compromissadas”. É uma modalidade de operação de investimento em que o BC vende ou compra títulos públicos com a responsabilidade de recomprá-los ou revendê-los em uma data futura, o que é, na prática, a remuneração da sobra de caixa dos bancos, em que ele enxuga moeda e entrega título da dívida.
Qual o valor dessas operações?
As “compromissadas” atingiram R$ 1 trilhão no início de 2016, então, uma coisa combinada com a outra significou uma escassez de moeda brutal no mercado. E qual a consequência disso? Os bancos, com toda a sobra que têm para emprestar, em vez de financiar indústria, comércio e consumidor, para ativar a atividade econômica do país, preferiram colocar esse dinheiro no BC, porque a taxa de juros estava alta demais e no BC eles não perdem um dia. Então, eles preferiram pôr essa montanha de dinheiro no BC que remunera diariamente, é garantido. Por isso, a indústria, o comércio, todas as empresas que precisam de crédito, começaram a quebrar porque o crédito ficou alto demais.
E os chamados juros de mercado?Os juros de mercado foram para mais de 220%, 300% ao ano, e aí a quebradeira da indústria e de estabelecimentos comerciais jogou o povo no desemprego. Em 2015, tivemos um desemprego recorde. E aí o governo, pra não enfrentar a benesse do mercado financeiro e a política monetária do BC, ainda veio com as desonerações [incentivos fiscais para produtos ou operações], ainda no tempo da Dilma. Isso aí agravou mais porque diminui mais ainda a arrecadação e não resolveu o problema das empresas porque elas precisavam de crédito para financiar sua atividade. A desoneração beneficiou só algumas que já estavam no ponto de vender e distribuir seus produtos. Então, o que provocou a crise aqui no Brasil foi essa política monetária, e ninguém olha pra ela. Ela não é ensinada nas escolas. Enquanto estavam todos os jornais todo dia dando notícias de Lava Jato, de impeachment da Dilma, o BC estava fazendo essa política, que transferiu um valor brutal de recursos pro setor financeiro.
Além desses fatores que você mencionou, tem alguma outra coisa que ajuda a mover a engrenagem da crise econômica?Isso aí é o principal. A partir daí, vai desorganizando. Um outro fator é o modelo tributário no Brasil, que penaliza muito a classe trabalhadora, as classes média e baixa, e são as pessoas que tudo que ganham volta para economia. O salário aqui no Brasil é tão baixo que classes média e baixa têm muito pouca capacidade de fazer poupança. E como que é o nosso modelo tributário? Ele não tributa as grandes rendas, as grandes faixas de renda, e aí isso desorganiza mais ainda a economia, abre mão de uma arrecadação enorme, de arrecadação dos tributos que poderiam incidir sobre o lucro distribuído, sobre as heranças, as fortunas, e isso também desorganiza muito a economia.
Por que o Brasil, que é conhecido mundialmente como um país de grandes riquezas, amarga esta crise econômica atual? Que tipo de ideologia econômica nos trouxe a esse processo?Olha, está acima das ideologias conhecidas, acima de qualquer coisa. É uma ganância do mercado financeiro. Isso está acima dos governos, de partidos. Nós temos que ver em que fase da história estamos vivendo, que é a do capitalismo financeirizado. O grande capital está entrando aqui no Brasil de uma forma que há anos domina os diferentes governos que vivemos. Você vê que, no governo do PT, quem dirigia o BC? Era o Henrique Meirelles, banqueiro. Então, não mudou nada. Isso está acima de ideologia e é um domínio, um poder mundial.
Mas não há reação contra isso?É, infelizmente, aqui no Brasil as forças políticas não prestam a devida atenção nisso. Você vê, por exemplo, a pouca atenção que tem a demanda por uma auditoria cidadã da dívida, que é a ferramenta que poderia mostrar, por exemplo, esse escândalo das operações “compromissadas”, porque isso daí tem a dívida por trás. Essa pouca visão, esse turvamento da visão em relação às finanças está fazendo esse domínio financeiro chegar num ponto em que agora eles afirmam que a dívida justifica a contrarreforma da Previdência, justifica a entrega da Casa da Moeda, da Eletrobras, da Petrobras. E querem entregar até Banco do Brasil e Caixa Econômica, criando outro mecanismo, o da securitização de créditos, em que os bancos já vão se apoderar diretamente da arrecadação tributária dos estados e municípios, que nem vai alcançar o orçamento público. Então, ou a população acorda ou não vai ter jeito. Estamos perdendo o país.
A economia nacional iniciou este ano de 2019 sem fôlego e alguns atores sustentam que uma alavancagem só seria possível com a reforma da Previdência. O que tem de armadilha nesse discurso?A reforma da Previdência vai fazer o contrário. Quando o governo fala em fazer uma economia de R$ 1,1 trilhão – que os analistas já falaram que não é isso, e sim R$ 700 bilhões –, que economia é essa? É dinheiro que vai deixar de chegar às mãos da classe trabalhadora através de aposentadorias e benefícios assistenciais. O que acontece quando a população tem menos recursos em suas mãos? Ela não tem recursos pra consumir nem para comprar alimento direito e aumenta até o nível de adoecimento. Então, é um tiro no pé, e mais de 70% dos municípios brasileiros têm a sua economia movimentada pelos recursos da Seguridade Social…
Você mencionou aqui o fato de a população não ter conhecimento sobre o que realmente acontece com a economia do país. Uma educação mais voltada para esse tipo de esclarecimento poderia ser o caminho pra tirar o Brasil desta situação?Sim, e esse tem sido, inclusive, o esforço da Auditoria Cidadã da Dívida ao longo dos anos, popularizando o conhecimento sobre a realidade financeira porque, veja bem, essa propaganda de que o Brasil está quebrado, de que o país não tem saída, junto com esse menosprezo pelo povo brasileiro, com essas piadinhas de mau gosto de chamar o nosso povo de ‘povinho’, colocando no chão a autoestima nacional, essa coisa de não valorizarmos as nossas lideranças que existem no Brasil, de que só sai notícia de corrupção, tudo isso tem uma estratégia por trás de reduzir a autoestima das pessoas, e quem está com autoestima baixa está humilhado, desencorajado e aceita entregar tudo.
Então, o que fazer?A gente tem que fazer o contrário. As pessoas nem sabem o quanto o Brasil é rico, nem sabem das nossas potencialidades, da nossa história, de quanta luta já teve, de quantas pessoas foram desprezadas e desmoralizadas ao longo da história porque traziam essas informações [de esclarecimento]. Querem deixar o nosso povo dentro da caverna, acreditando nas sombras. A gente tem que sair da caverna e enxergar o nosso país, enxergar as nossas potencialidades. Eu espero que esse ataque agora, esse roubo da Previdência Social que representa essa proposta de reforma sirva para sacudir as pessoas.
15 de março de 2019
Cristiane SampaioBrasil de Fato