Entre 1994 e 2000, Omar Nasiri trabalhou como agente secreto para os principais serviços externos de Inteligência da Europa - incluindo a DGSE (Direction Genérale de la Securité Exterieure), da França, e o MI5 e MI6, da Grã-bretanha. Do submundo das células islâmicas da Bélgica até os campos de treinamento do Afeganistão e as mesquitas radicais de Londres, ele arriscou a vida para derrotar a emergente rede global que o Ocidente viria a conhecer como Al-Qaeda.
Agora, pela primeira vez, em um livro editado pela Editora Record - "Por dentro do Jihad" - (1), Nasiri compartilha a história de sua vida - precariamente equilibrada entre o mundo dos jihadistas islâmicos e dos espiões que os perseguem. Como árabe e muçulmano, ele pôde se infiltrar nos rigidamente controlados campos de treinamento afegãos, onde encontrou homens que mais tarde se tornariam os terroristas mais procurados da Terra: Ibn al-Sheikh al-Libi, Abu Zubayda e Abukhabab al-Masri. Enviado de volta à Europa, Nasiri tornou-se um intermediário de mensagens trocas entre o recrutador-chefe da Al-Qaeda no Paquistão e o clérigo radical de Londres, Abu Qatada.
Em suma, "Por dentro do Jihad" oferece uma perspectiva inteiramente original da batalha que se desenvolve contra a Al-Qaeda. Omar Nasiri, nome fictício, nasceu no Marrocos e atualmente vive na Alemanha.
Eis mais um trecho de "Por Dentro do Jihad":
“Em Durunta (um dos centros de treinamento de guerrilheiros internacionalistas no Afeganistão), começamos o treinamento com explosivos. Havia uma espécie de sala de aula em um dos alojamentos e Assad Allah escrevia fórmulas no quadro negro ou fazia demonstrações em uma grande mesa. Antes de mais nada, ele nos ensinou procedimentos de segurança. Passamos dias nisso, memorizando as temperaturas e umidades adequadas para a estocagem de diferentes componentes e aprendendo sobre os vários equipamentos de segurança – luvas, máscaras contra gazes, óculos – a serem usados com inúmeros produtos químicos e explosivos, Assad Allah também ensinou o que fazer se alguma experiência desse errado.
Ele não se cansava de dar o mesmo aviso:
Vocês têm um visto e devem trazê-lo todos os dias à aula. Mas eu posso tirar o visto a qualquer momento. Se vocês violarem os procedimentos de segurança, eu os mandarei para casa imediatamente. Nós sabíamos que ele não estava brincando.
Nós ficávamos no laboratório ou na sala de aula todos os dias pro cerca de 10 horas. Só parávamos para comer e fazer a salat (1). Trabalhávamos com química e matemática bastante complicadas e tínhamos que ter extrema concentração. Aprendemos a fazer todos os explosivos a partir do zero, Essa era a idéia: para onde quer que fôssemos, nós não teríamos acesso a explosivos de categoria militar ou material industrial. Nós teríamos que nos virar com o que conseguíssemos encontrar.
Aprendemos a fazer as mais diferentes coisas: pólvora, RDX, tetril, TNT, dinamite, C2, C3, C4, Semtex, nitroglicerina e daí por diante. Aprendemos a fazer cada um com produtos que poderíamos encontrar em lojas ou roubar de laboratórios escolares. Xarope de milho, tintura para cabelo, limões, lápis, açucar, café, sal de Epsom, naftalina, baterias, fósforos, tintas, produtos de limpeza, água sanitária, fluido de freios, fertilizantes, areia. Cada um desses contém componentes de diferentes tipos de materiais explosivos. Aprendemos como decompor esses produtos e como transformá-los em bombas. Eu até mesmo aprendi como fazer uma bomba com a minha própria urina.
Nós testávamos os explosivos perto de algumas ruínas na extremidade do campo. Quase sempre usávamos quantidades muito pequenas, mas medíamos a velocidade da explosão para calcular quais seriam os efeitos com cargas maiores. Falamos como e quando usar diferentes tipos de explosivos. Aprendemos quais materiais deveríamos utilizar para explodir um trem, quanto de explosivos precisaríamos e como posicioná-lo nos trilhos para obter o máximo de impacto. Aprendemos a explodir carros e prédios.
Falávamos bastante sobre aviões. Estes eram difíceis de explodir devido à segurança nos aeroportos. Ficamos sabendo que Semtex era o mais fácil de levar à bordo, por ser quase impossível de detectar. Mas o Semtex era difícil de se obter, Assad Allah lembrava-nos. Também aprendemos sobre explosivos líquidos.
Fazíamos anotações sobre tudo nos cadernos pequenos que ganhamos no campo. Mas, no fim, eles esperavam que soubéssemos tudo de cor. Quando chegasse a hora de usar os explosivos, nós não teríamos um manual diante de nós. Assim, passávamos pelas fórmulas infindáveis vezes até conseguirmos repeti-las durante o sono. E Assad Allah nos submetia a provas todos os domingos, para se assegurar que havíamos aprendido.
Certa ocasião, Assad Allah falou sobre um incidente que ocorrera durante seu próprio treinamento em explosivos. O seu grupo estava aprendendo a fazer nitroglicerina e um dos irmãos não prestava atenção. Ele deixou os materiais esquentaram mais do que o permitido. Felizmente, o instrutor viu o termômetro bem a tempo de evitar que os materiais explodissem. Havia mais 7 pessoas no laboratório e todas poderiam ter morrido.
- Vai explodir! – ele gritou para o irmão.
Havia uma pia cheia de gelo bem ao lado do recruta e ele deveria ter jogado o material ali para esfriar. Mas, em vez disso, ele correu para a porta com a bomba-relógio líquida nas mãos. Assim que saiu, a mistura explodiu. A explosão arrancou os dois braços na hora e destruiu um dos olhos.
- O irmão sobreviveu? – perguntei.
- Sim – Assad Allah responde – Ele vive agora em Londres e prega nas mesquitas. Seu nome é Abu Hamza.
Na época eu não tinha idéia de quem era esse homem e nem a importância que ele viria a ter em minha vida.
Um dia, Abdul Kerim e eu entramos em uma mesquita e vimos alguém pendurado nas vigas pelos tornozelos. Seus olhos estavam vendados e ele gritava. Havia vários irmãos parados ao redor. Eles gritavam com o prisioneiro e um apontava uma arma para a sua cabeça.
Senti calafrios. É isso que fazem com espiões, pensei. Isso é o que vai acontecer comigo, se eu for pego. Meu estômago revirou, mas não tive muito tempo para pensar nisso porque Abu Mousa veio por trás e nos tirou da mesquita.
- O que está acontecendo? – perguntei.
- Eles são do outro campo – falou. – Um dos irmãos vai numa missão. Os outros estão preparando-o para o interrogatório, no caso de ser pego. Não sabemos o que ele vai dizer. Ele pode revelar alguma coisa sobre sua missão e vocês não devem saber nada sobre ela..
Ele deve ter percebido nossa decepção e, logo depois, passou a ler um livro, em voz alta, escrito em árabe, sobre interrogatórios. Desde as primeiras frases o livro era fascinante, e incrivelmente detalhado. Começava listando os diferentes estágios de um interrogatório: da prisão, passando pelas perguntas iniciais, até as ameaças e a tortura. E, aí, vinha a série de todas as diferentes coisas que os interrogadores poderiam fazer: pendurá-lo de cabeça para baixo em sua cela, espancá-lo com as mãos, cassetetes ou fios elétricos, deixá-lo nu por vários dias, arrancar as unhas, queimar a pele com cigarros ou fogo, atacá-lo com cães, acertá-lo na virilha ou dar choques nos genitais. A lista não tinha fim e Abu Mousa disse que todas essas técnicas haviam sido empregadas em irmãos em diferentes países.
A primeira lição era simples: um mujahid (2) deve guardar tudo para si mesmo. A melhor maneira de impedir a revelação de segredos era, antes de mais nada, não os ter. Percebi que era por isso que, desde o primeiro dia, nós recebemos ordens de nunca falar com outros sobre nossa vida fora dos campos. Não era apenas porque tinham medo de espiões. Era porque queriam se assegurar de que nenhum dos irmãos pudesse revelar muita coisa se cedesse sob pressão.
Mas a fé, e não o segredo, era, de longe, a arma mais importante à disposição do mujahid. Um verdadeiro mujahid pode suportar qualquer coisa se estiver sofrendo por Deus. Ele deve se preparar para o interrogatório e a tortura do mesmo modo que se prepara para qualquer outro tipo de batalha. Abu Mousa foi bastante claro quanto a isso: o interrogatório era uma espécie de guerra psicológica. E assim, como na guerra de verdade, não havia como um irmão pudesse perder. Ou ele derrotava o inimigo ou morria como um mártir.
for capturado, o irmão não deve, jamais, ceder qualquer informação e deve compreender que nenhuma vantagem pode ser conseguida assim. Somente levaria a mais tortura, porque os interrogadores perceberiam que o prisioneiro teria segredos para revelar. Mas os interrogadores jamais o matariam, porque não teria utilidade morto.
Como explicado por Abu Mousa, o interrogatório era uma grande oportunidade para um irmão. Ele poderia aprender mais sobre o inimigo e disseminar contra-informação que ajudasse seu grupo a atingir o objetivo. Esse tipo de manipulação exige habilidade e os irmãos devem praticar isso, assim como treinam para o uso de uma arma. Ele deve aprender a fazer os interrogadores falarem. Quanto mais durar o interrogatório, mais informações os interrogadores revelarão sobre o que sabem e sobre sua estratégia. O irmão pode usar essas informações para delinear suas próprias respostas, para dizer ao inimigo mentiras que pareçam verdades. Para um mujahid, o contra-interrogatório é apenas mais uma batalha tática.
Muitos anos depois eu pensaria novamente nessa lição, quando comecei a aprender mais sobre Ibn al-Sheikh al-Libi e seu papel dentro do que veio a ser conhecido por al-Qaeda. Ibn Shekh continuou a dirigir campos de treinamento no Afeganistão durante os anos 1990 e era próximo a bin-Laden. Ele foi capturado logo após a invasão dos americanos ao Afeganistão depois dos ataques de 11 de setembro, sendo levado de avião para o Egito, onde foi torturado pela CIA. Lá, ele disse aos interrogadores que Saddam Hussein dera à al-Qaeda informações sobre a confecção de armas químicas. Era às informações de Ibn Shekh que George W. Bush e Collin Powell se referiam quando disseram ter provas de que Saddam Hussein tinha conexões com a al-Qaeda. Eles usaram o que Ibn Sheikh lhes contara para justificar a invasão do Iraque.
Mas tarde Ibn Shekh disse que a historia a respeito de Saddam Hussein não era verdadeira. Na verdade, a CIA sabia que a história de Ibn Shekh não era confiável bem antes de Collin Powell se referir a ela em seu famoso discurso na ONU. Mas, quando esse fato emergiu, já não tinha mais importância. A América já estava em guerra.
Muitos dizem que Ibn Shekh mentiu aos captores por desespero, porque estava sendo torturado brutalmente. Eu sei que isso não é verdade. Ela havia sido preparado para interrogatórios, do mesmo modo que o irmão da mesquita estava se preparando. Ele sabia o que fazer.
Não. Ibn Sheikh não cedeu à pressão da tortura. Ele manipulou seus interrogadores com a mesma habilidade com que empunhava sua arma. Ele sabia o que seus interrogadores queriam e ficou contente em dar-lhes. Elequeria ver Saddam derrubado ainda mais do que os americanos. Como ele nos disse em Khaldan, o Iraque era o próximo grande jihad.
Em algum lugar, numa câmara de tortura secreta. Ibn Sheikh venceu sua batalha”.
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(1) Salat ou Salah (árabe:صلاة ) refere-se às cinco orações rituais que cada muçulmano deve realizar diariamente voltado para Meca. É um dos Cinco Pilares do Islão (arkan al-Islam). Em outras línguas estas orações são chamadas de Namaz.
(2) Mujahid - muçulmano envolvido no que ele considera ser uma jihad
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
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