RIO DE JANEIRO - Quando a ouvi pela primeira vez, num comercial de desodorante, a palavra me caiu mal: "refrescância". Achei-a artificial, mal-ajambrada e desnecessária. Afinal, já havia fresco, frescor, frescura e outros dez sinônimos, todos --perdão, ouvintes-- ainda frescos para uso. Mas, numa língua em que as pessoas "agregam", saem para a "balada" e começam qualquer frase com "então...", vale tudo.
Há meses, num centro de triagem dos Correios, em Niterói, funcionários foram acusados de descuido no manuseio de encomendas, jogando-as de qualquer jeito para os lados e se arriscando a danificar os produtos. No jargão interno, chama-se isso de "basquetear" a correspondência. "Não, madame", defendeu-se o encarregado, "aqui ninguém basqueteia a correspondência". Talvez, não --mas quem os impede de basquetear a língua?
E embatuquei recentemente quando alguém me disse que estava "negativado" no banco --com a conta no negativo. "Negativo!", apitei. "Essa construção não existe." Deve ter sido inventada pelos mesmos que dizem que o jogador "se personalizou" em campo --ou seja, adquiriu personalidade durante o jogo e resolveu a parada. A língua se presta a essas flexões, mas não haverá um limite para a capacidade de uma palavra se submeter via tortura a um novo significado?
Bem, para isso servem os dicionários --para oficializar as criações do grande inventa-línguas, o povo. "Refrescância" já está na praça há anos, em vários contextos, e até ganhou o "Houaiss". E "negativar" é "tornar (-se) negativo", o que a abona para definir contas no vermelho.
"Basquetear" e "personalizar-se" ainda não chegaram lá, mas, se as pessoas as continuarem usando, também entrarão na legalidade. O problema de uma língua não está nas palavras que ela incorpora, mas nas que são abandonadas e morrem a cada dia.
18 de novembro de 2013
RUY CASTRO, FOLHA DE SP
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