Batalhões de intérpretes vão analisar as consequências mundiais da saída do Reino Unido da União Europeia. Aqui, nos trópicos, essa experiência traumática me conduz a inúmeros caminhos. O que é possível aprender com esse salto no escuro?
Já havia refletido sobre o tema quando li o ensaio de Tony Judt Europa, a Magnífica Ilusão (em Quando os Fatos Mudam, Editora Objetiva). Uma das ilusões que o choque do petróleo, na década de 1970, balançou foi a de um crescimento estável, de uma superação definitiva do passado. O otimismo dos primeiros anos tornou-se mais prudente.
Uma crença importante para mim, e talvez a mais necessária: a ideia da Europa uniu ambições filosóficas e poder administrativo. Para seus admiradores, a União era uma herdeira do despotismo esclarecido do século 18.
Um grande projeto racional levou um tombo. Daí a perplexidade de todos: diante de tantos argumentos a favor, ainda assim os britânicos optaram por sair.
Grande parte dos eleitores era de idosos e eles votaram para retornar ao Estado-nação do século 19. Estava ainda nítido em sua lembrança.
Que condições levam a maioria a optar pela pior saída? Esse é um tema que me interessa aqui. Na Europa, creio que o declínio do Estado de bem-estar social, as crises econômicas e, finalmente, essa grande onda de imigrantes tiveram seu peso.
Desde a década dos 70, partidos de extrema direita cresceram com o discurso nacionalista. Na França, Jean-Marie Le Pen, com sua Frente Nacional, chegou a disputar com Jacques Chirac o segundo turno das eleições presidenciais.
Felizmente, perdeu: seria, de novo, um baque da razão. Mas aí é que entra a minha hipótese: quanto mais grave fica a situação econômica e social, mais possibilidades existem para saltos no escuro, como esse dado no Reino Unido.
O Brasil tem uma conjunção mais desfavorável: a crise econômica será longa e o sistema político está em frangalhos.
Felizmente, as vozes que se voltam para um passado ditatorial são minoritárias e inexpressivas. Ainda assim, a maturidade democrática pode ser abalada por outros fatores.
Um deles observo no Rio de Janeiro, com a quase falência do Estado. Serviços públicos estão entrando em colapso. Aumentam os assaltos e assassinatos. Num clima de grande complexidade, aparecem inúmeras falsas, mas simples, soluções. A pena de morte, no meu entender, é uma delas.
Outro tema europeu que me faz pensar por aqui: a reforma da previdência. O tema passou por inúmeros debates. De um ponto de vista estratégico, considerando a realidade demográfica, as reformas seriam necessárias. Elas, contudo, entram em conflito com as aspirações eleitorais.
Europa e Brasil são diferentes, mas é um conflito comum. Lá as hesitações e mudanças na previdência tiveram seu clímax dramático na Grécia.
Pode ser uma conclusão singela, porém o desenrolar do processo europeu mostra como é equivocada, no Brasil, uma tática do tipo quanto pior, melhor. O quanto pior é pior, uma vez que assim aumentam as possibilidades de decisões equivocadas.
Grandes construções racionais podem e até devem nos mover. É preciso, no entanto, não as confundir com a realidade com suas arestas. E, sobretudo, admitir que milhões não estão tão seguros dessa racionalidade e resolvem retroceder.
Aquela imagem de Tony Judt sobre o despotismo esclarecido herdado do século 18 me impactou de várias maneiras. Até que ponto ele sobrevive num contexto de democracia plebiscitária?
Os defensores dos grandes projetos racionais precisam também da habilidade que às vezes se adquire na cotidiano das lutas minoritárias. A maioria é difícil de alcançar e sempre muito volátil.
Não sei se, tão distante da Europa, posso opinar. Mas a confiança no triunfo racional leva a uma certa superestimação do próprio argumento. O assassinato da jovem deputada trabalhista Jo Cox por um fanático nacionalista chegou a despertar a esperança de que a Europa triunfasse.
Nem sempre a razão em política triunfa. Não se trata de abandoná-la. Mas admitir que estamos sujeitos a inúmeros processos corrosivos, sobretudo a crises econômicas e, no caso brasileiro, às outras dimensões dramáticas.
Teremos consultas populares em 2016 e 2018, ainda com um grande número de desempregados, tensões de toda ordem, sobretudo no serviço público, e um sistema político desintegrado, agora posto a nu pela Operação Lava Jato.
Mesmo confiando na resposta da sociedade, considero que entramos num período de vulnerabilidade. Um período aberto a aventuras, propostas demagógicas.
Nem todos recebem a crise da mesma maneira. A ideia de uma devassa na política e, simultaneamente, a reconstrução econômica parece uma saída racional.
A ação da Lava Jato é majoritariamente aprovada. Já a reconstrução econômica implica vencedores e perdedores, alguns simplesmente empatados. Como seguir um caminho que parece racional, mas às vezes não é majoritário?
A decisão inglesa de sair da União Europeia deu um susto. Mas pode ser até pedagógica se, no futuro, vierem a reconhecer que se tratou de uma decisão equivocada.
Certamente a União Europeia vai seguir o seu caminho. Mas pelo menos ficou claro que a História não tem script, não é um desdobramento triunfante de um projeto cerebral.
Temos de estar preparados para tudo. Para tudo e um pouco mais, como é o caso do Brasil em crise.
Com instituições funcionando, a sociedade informada e algumas medidas certas na economia, o Brasil pode sair dessa, mas a experiência mostra como são traiçoeiros e surpreendentes os caminhos da própria democracia.
02 de julho de 2016
Fernando Gabeira, O Estado de S. Paulo
Já havia refletido sobre o tema quando li o ensaio de Tony Judt Europa, a Magnífica Ilusão (em Quando os Fatos Mudam, Editora Objetiva). Uma das ilusões que o choque do petróleo, na década de 1970, balançou foi a de um crescimento estável, de uma superação definitiva do passado. O otimismo dos primeiros anos tornou-se mais prudente.
Uma crença importante para mim, e talvez a mais necessária: a ideia da Europa uniu ambições filosóficas e poder administrativo. Para seus admiradores, a União era uma herdeira do despotismo esclarecido do século 18.
Um grande projeto racional levou um tombo. Daí a perplexidade de todos: diante de tantos argumentos a favor, ainda assim os britânicos optaram por sair.
Grande parte dos eleitores era de idosos e eles votaram para retornar ao Estado-nação do século 19. Estava ainda nítido em sua lembrança.
Que condições levam a maioria a optar pela pior saída? Esse é um tema que me interessa aqui. Na Europa, creio que o declínio do Estado de bem-estar social, as crises econômicas e, finalmente, essa grande onda de imigrantes tiveram seu peso.
Desde a década dos 70, partidos de extrema direita cresceram com o discurso nacionalista. Na França, Jean-Marie Le Pen, com sua Frente Nacional, chegou a disputar com Jacques Chirac o segundo turno das eleições presidenciais.
Felizmente, perdeu: seria, de novo, um baque da razão. Mas aí é que entra a minha hipótese: quanto mais grave fica a situação econômica e social, mais possibilidades existem para saltos no escuro, como esse dado no Reino Unido.
O Brasil tem uma conjunção mais desfavorável: a crise econômica será longa e o sistema político está em frangalhos.
Felizmente, as vozes que se voltam para um passado ditatorial são minoritárias e inexpressivas. Ainda assim, a maturidade democrática pode ser abalada por outros fatores.
Um deles observo no Rio de Janeiro, com a quase falência do Estado. Serviços públicos estão entrando em colapso. Aumentam os assaltos e assassinatos. Num clima de grande complexidade, aparecem inúmeras falsas, mas simples, soluções. A pena de morte, no meu entender, é uma delas.
Outro tema europeu que me faz pensar por aqui: a reforma da previdência. O tema passou por inúmeros debates. De um ponto de vista estratégico, considerando a realidade demográfica, as reformas seriam necessárias. Elas, contudo, entram em conflito com as aspirações eleitorais.
Europa e Brasil são diferentes, mas é um conflito comum. Lá as hesitações e mudanças na previdência tiveram seu clímax dramático na Grécia.
Pode ser uma conclusão singela, porém o desenrolar do processo europeu mostra como é equivocada, no Brasil, uma tática do tipo quanto pior, melhor. O quanto pior é pior, uma vez que assim aumentam as possibilidades de decisões equivocadas.
Grandes construções racionais podem e até devem nos mover. É preciso, no entanto, não as confundir com a realidade com suas arestas. E, sobretudo, admitir que milhões não estão tão seguros dessa racionalidade e resolvem retroceder.
Aquela imagem de Tony Judt sobre o despotismo esclarecido herdado do século 18 me impactou de várias maneiras. Até que ponto ele sobrevive num contexto de democracia plebiscitária?
Os defensores dos grandes projetos racionais precisam também da habilidade que às vezes se adquire na cotidiano das lutas minoritárias. A maioria é difícil de alcançar e sempre muito volátil.
Não sei se, tão distante da Europa, posso opinar. Mas a confiança no triunfo racional leva a uma certa superestimação do próprio argumento. O assassinato da jovem deputada trabalhista Jo Cox por um fanático nacionalista chegou a despertar a esperança de que a Europa triunfasse.
Nem sempre a razão em política triunfa. Não se trata de abandoná-la. Mas admitir que estamos sujeitos a inúmeros processos corrosivos, sobretudo a crises econômicas e, no caso brasileiro, às outras dimensões dramáticas.
Teremos consultas populares em 2016 e 2018, ainda com um grande número de desempregados, tensões de toda ordem, sobretudo no serviço público, e um sistema político desintegrado, agora posto a nu pela Operação Lava Jato.
Mesmo confiando na resposta da sociedade, considero que entramos num período de vulnerabilidade. Um período aberto a aventuras, propostas demagógicas.
Nem todos recebem a crise da mesma maneira. A ideia de uma devassa na política e, simultaneamente, a reconstrução econômica parece uma saída racional.
A ação da Lava Jato é majoritariamente aprovada. Já a reconstrução econômica implica vencedores e perdedores, alguns simplesmente empatados. Como seguir um caminho que parece racional, mas às vezes não é majoritário?
A decisão inglesa de sair da União Europeia deu um susto. Mas pode ser até pedagógica se, no futuro, vierem a reconhecer que se tratou de uma decisão equivocada.
Certamente a União Europeia vai seguir o seu caminho. Mas pelo menos ficou claro que a História não tem script, não é um desdobramento triunfante de um projeto cerebral.
Temos de estar preparados para tudo. Para tudo e um pouco mais, como é o caso do Brasil em crise.
Com instituições funcionando, a sociedade informada e algumas medidas certas na economia, o Brasil pode sair dessa, mas a experiência mostra como são traiçoeiros e surpreendentes os caminhos da própria democracia.
02 de julho de 2016
Fernando Gabeira, O Estado de S. Paulo
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