"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 19 de março de 2014

À JANELA


 Com as mulheres aprendi a ser homem. Surpreendeu-me, de início, a descoberta. Mas, pensando bem, esta é a única aprendizagem possível. Não são as mulheres e seus caprichos os critérios últimos de nossas ações, angústias e atitudes éticas? Não é com a mulher que aprendemos a ser ternos e amantes, impiedosos e cruéis? Quando o filósofo disse ser o homem a medida de todas as coisas, generalizava, é claro. Fosse mais específico, estaria mais próximo da verdade.

Viajar (o ato físico, o locomover-se) torna-me lúcido, as idéias resvalam ágeis e únicas. Por mais que me inquira, não encontro razões precisas. Aventuro hipóteses: talvez por estar acompanhado e em verdade só. Ou quem sabe por sentir-me rasgando a noite - nunca viajo quando dia - afastando-me a cada minuto dos lugares que habito, numa espécie de desmama, de corte umbelical. E sei que qualquer dia não mais voltarei...

A cidade, amarelecida pelo sol que morre, vai se tornando cada vez menos densa, menos populosa, mais subúrbio. Os passageiros escondem-se em suas golas, afundam seus corpos tensos nas poltronas, como se isto os aquecesse nesta melancólica tarde de julho. O dia faz-se penumbra, a penumbra faz-se noite e na noite os homens calam. Amo este silêncio ruidoso do viajar.

O vento gelado nas faces, os cabelos esvoaçantes, outra possibilidade para explicar meu estado de espírito. Sinto nitidamente os contornos de meu rosto, o vento desenha no espaço as linhas além das quais não existo. Sempre compro um lugar à janela e, por frio que esteja, conservo-a aberta.

- O senhor não se importaria de fechar a janela?

Pois não, cavalheiro, vosso pedido fazia-se esperar. Desde há muito ouço esta pergunta, quase já sei exatamente a temperatura suportável por vossas peles. Isso depende também muito de temperamento. Uma pessoa tímida suporta mais frio que um passageiro de índole agressiva, por exemplo. O cavalheiro estará no rol dos últimos, pois não? Mas não vou cerrá-la de todo, preciso mais da brisa que você de calor. A janela fechada sufoca e o frio, no máximo, enregela. De modo que...

Luzes sonolentas surgem na noite. Multiplicam-se, diferenciam-se, ferem meus olhos, passam e somem na distância. Uma cidade sem nome dorme tranqüila. Quadrúpedes semicalvos e barrigudos abrigam-se desajeitadamente sobre Alvos Lençóis, no Recesso do Lar, o Esteio, após cumprir suas obrigações de estado com a Rainha. Milhares de seres sonham pesadelos mais sinceros que suas ilusões de despertos. Jamais saberão da passagem deste proscrito, tampouco dos juízos que faço. Já vos vi em outros lugares, em circunstâncias por vezes irônicas. Ides às praias, substituir vossa flácida e incolor epiderme. E código algum legisla sobre esta criminosa proximidade entre mar e mortos.

E mais me contraem o sorriso suas ambições antropocêntricas. Três bilhões de centros do universo. "Nossa meta é o homem". Já ouvi isso de louvados e ilustres humanistas e também de vendedores de enciclopédias. "Ama teu próximo como a ti mesmo", e seja anátema não aceitar este slogan fóssil, síntese de vinte séculos de mórbida cultura.

Mas... será vida o vagido destes vermes, cujo engatinhar um incomensurável universo ignora? Como, cavalheiro? Ah, sim, a janela. Mas como sois mesquinho, interrompendo minhas íntimas reflexões.

Um troglodita em plena urbe, assim me sinto. Parece-me existirem algumas diferenças psicológicas entre um ser cujo leito foi na infância a grama, e teve por lençóis o orvalho e o luar gelados, e outros que nasceram no asfalto, vivendo em escuros e sufocantes cubículos. Para estes, a claustrofobia é doença. Cães uivando sem razões que eu saiba, ruídos surdos de dentes bovinos triturando a grama, que só ouço se colado ao chão, grilos bordando o silêncio, estrelas cuja visão destrói quaisquer ambições mais altas, eis meu universo mais primeiro, mais bem guardado, e agora, o mais distante. Existirá algum significado nestes milênios de cultura, que tiraram um animal de seu ambiente de magia, para torná-lo um ser frágil, cultural e doente? Claustrofobia, cavalheiro, é saúde.

Outra cidade. De novo, seres tranqüilos, porque inconscientes. Mesmo despertos, não têm angústias e lhes são absurdas e doentias as torturas que me impinjo. Sempre tranqüilos, é incrível, e eu os invejo. Mas não consigo sê-lo. Já saindo, nos subúrbios, uma luzinha vermelha pisca na porta de uma casa onde ainda existem sons. É possível que lá dentro um farrapo de mulher, exausta de sua absurda faina diária, sabiamente olhe o vácuo. Se o faz, é minha irmã. E não saberá, mesmo ouvindo os ruídos que me acompanham, que passei a poucos metros de sua lúgubre morada, e confraternizei com seu desespero silente.

Embaça-se o vidro do arfar das bestas. Também dormem, o próprio motorista talvez esteja dormindo. Subrepticiamente, abro um bocado a janela. E respiro a terra, a noite e os pastos que ela cobre.

Não tenho tempo para amar-vos. Minha carne débil e branca (vossas cidades destruíram sua antiga cor e rijeza e sua docilidade a meus ímpetos) atesta a marcha implacável de retorno ao húmus. Dêem-me a vida eterna, e amar-vos-ei nas horas vagas. Talvez assim até mesmo teça um poema otimista à espécie. Esta ternura irônica que ainda em mim resta, não se origina de vossos compêndios ou ideais, mas dos lamentos frágeis que ouvi de vossas fêmeas insaciadas. No burilamento de meu espírito rude e áspero, a mulher ocupa um lugar cuja importância me intriga.

Aos 15, eu as temia e amava: medo e fascínio do desconhecido. Aos 20, amei-as: acabou-se o mistério. Entreguei-me, mostrei-me qual era, fiz-me vulnerável e ao perdê-las, sofri por tal ingenuidade. Hoje, só conhecem meus gestos exteriores. Apresento-lhes mil faces, deixo-as confusas, conservo meu ego perfeitamente camuflado, faço-as chorar e seu apego à dor me comove. Desta comoção, brota minha quente simpatia por certos seres humanos. Que se extingue, porém, quando reflito sobre a nebulosa de Andrômeda, por exemplo.

O próprio ato amoroso tornou-se-me algo dorido. Ao fazer amor, preciso sair de mim mesmo, estabeleço uma ponte até outrem. Essa concessão machuca-me quase fisicamente.

- A janela, por favor, meu filho está gripado.

Perdão, senhor, ignorava que esse apêndice vivo que sempre carregais em vossas viagens fora atacado por este inquietante e desconhecido vírus. Já fecho a janela, não serei descortês com meus companheiros de viagem. Devo confessar porém que o único motivo que me impede a paternidade é ver-vos carregados com vossas crias, quais membros aleijados de vossos próprios corpos, que não conseguis comandar.

Cerro a janela. No vidro, os contornos difusos de meus traços. Mergulho o rosto no calor ambiente. Mas nem assim adormeço.

Os termos de vosso contrato não me satisfazem. É claro que renuncio às vantagens que me seriam outorgadas. Por algumas, lamento. Mas, no cômputo total, que falta de perspicácia tendes!

Luz já quase dilucular. Vontade de noite, desejos de não chegar.
 
19 de março de 2014
janer cristaldo
terça-feira, março 18, 2014
(primeiro texto literário, escrito talvez em 67, 68)

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