A linguagem política e ideológica vive de lugares-comuns, cuja significação é indefinida. Em agrupamentos nos quais imperam os slogans, o discurso é sempre equívoco. Nos debates jornalísticos e acadêmicos dos últimos dias, um signo retorna com força. Refiro-me ao apelativo "fascismo". Antes, faço uma pequena digressão.
Os slogans importam porque integram as técnicas de poder. Como enuncia uma psicanalista, "toda prática linguística repetitiva veicula uma potência de hipnose que leva o indivíduo rumo a comportamentos sociais ou mentais estereotipados" (Shoshana Felman). A cultura política conhece a fina observação de Thomas Hobbes: na maioria das pessoas "o costume tem um poder tão grande que, se a mente sugere uma palavra inicial, o resto das palavras segue-se pelo hábito, e elas não são mais seguidas pela mente. É o que ocorre entre os mendigos quando rezam seu paternoster.
Eles unem tais termos com os que aprenderam de suas babás, companhias ou professores e não têm imagens ou concepções na mente para responder às palavras que enunciam. Como aprenderam, ensinam a posteridade" (The Elements of Law).
A ética expõe formas de pensamento e de ação que se tornaram automáticas. Uma vez prescrito e interiorizado, certo modo de ser é repetido sem maiores reflexões. Caso a pedagogia se fundamente em valores positivos, a vida pública se beneficia. Se ocorre o contrário e o ensino segue parâmetros corruptos, os indivíduos e associações que os assumem arruínam a sociabilidade. Gritar um lugar-comum entra no rol dos automatismos éticos desprovidos "de imagens ou concepções".
Com o domínio do slogan, um religioso grita "fascismo" sempre que prerrogativas ou privilégios de sua grei são postos em dúvida. Se um conservador enfrenta críticas sobre as tradições a que se apega, logo ergue o grito de "fascismo" contra os oponentes. Quando as esquerdas não conseguem controlar setores opostos aos seus alvos, a palavra que vem aos lábios dos militantes é... fascismo. E assim por diante.
George Orwell, atacado por todas as facções políticas de sua época, tem um instrutivo escrito sobre o tema. Ele inicia com o mais óbvio: "A leitura atenta da imprensa mostra que, praticamente, nenhuma categoria de indivíduos deixou de ser qualificada de fascista". O mais relevante, no meu entender, encontra-se na seguinte tese do autor: "Mesmo os que lançam a palavra 'fascista' para todos os ventos lhe atribuem, no mínimo, um significado emocional. Por 'fascismo' eles entendem, grosso modo, algo cruel, sem escrúpulos, arrogante, obscurantista, antiliberal e contrário à classe operária".
Termina Orwell indicando ser impossível encontrar uma definição do fato que seja aceita por todos. "É impossível definir o fascismo de modo satisfatório sem admitir certas coisas que nem os próprios fascistas, nem os conservadores, nem os socialistas de todas as cores estão dispostos a admitir. Tudo o que podemos fazer, agora, é usar a palavra com certa circunspecção, e não, como se faz geralmente, rebaixá-la ao nível da injúria" (What is Fascism?, 1944).
Pouco antes, os intelectuais da França alertaram os europeus contra o terror fascista. E fizeram um diagnóstico preciso do fenômeno. O fascismo, disseram, "suprime todas as liberdades; retira dos indivíduos toda possibilidade legal de exprimir livremente sua opinião. As liberdades de reunião, de associação são anuladas. Não mais existe liberdade de ensino nem de imprensa. Tais liberdades não são respeitadas por nenhuma ditadura. Mas a fascista se caracteriza por uma técnica aperfeiçoada de opressão, completa, metódica e implacável.
Nos primeiros tempos da ditadura os golpes, os assassinatos, o terror são os principais meios de controle. Mas os meios legais rapidamente se desenvolvem, sempre sancionados, aliás, por uma repressão ignóbil" (O que é o Fascismo?, Manifesto de intelectuais em 1935. O documento original pode ser lido em Gallica.bnf.fr/).
Orwell e os intelectuais franceses, embora empenhados na luta contra o terror fascista, refletiram sobre ele sem cair na repetição automática do nome, à guisa de exorcismo ou injúria. As coisas "que nem os próprios fascistas" e seus adversários admitiriam vieram com o Holocausto, a morte industrializada sob comando de burocratas movidos por slogans. O fascismo, até no seu nome de batismo, é ameaça demasiado terrível e não deve ser admitido na luta política democrática. A banalização do uso atenua a sua essência, dissimula seu advento.
No Brasil, em vésperas de eleição decisiva para todos nós (em todos os matizes ideológicos), ensaiemos a forma e o conteúdo democráticos. Não existem, numa sociedade civilizada, inimigos políticos a serem perseguidos ou injuriados, mas seres que refletem e divergem quanto aos fins e aos meios na edificação do bem comum.
Ao falar do fascismo no prefácio do amaríssimo Animal Farm, o mesmo Orwell proclama: "Se a liberdade tem algum sentido, ela significa o direito de dizer ao povo o que ele não quer ouvir". Assim opera o pensamento político. O uso da propaganda para exterminar inimigos é a via reta para os fascismos. Os povos dominados por aqueles movimentos e partidos só ouviram os seus mestres. As sociedades desfeitas pelas injúrias foram tragadas pelas palavras imprudentes ou por slogans gastos nas batalhas pelo poder.
O fascismo não admite distinções entre esquerda e direita, pois exige obediência absoluta às palavras de ordem do partido único. Quem perde a liberdade de enunciar "o que o povo não quer ouvir" é visto como besta-fera a ser perseguida. Fantasmas invocados costumam atender às preces dos aprendizes de feiticeiro, trazendo pesadelos coletivos.
Circunspeção diante da palavra e da coisa!
17 de novembro de 2013
Roberto Romano, O Estado de S.Paulo
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