Os deputados representam o povo e têm como função primordial elaborar leis. A função abriga os mais jovens, podendo assumir o mandato cidadãos a partir de 21 anos. Já os senadores, cujo nome deriva do latim senex (velho), tidos como "a voz da experiência", só podem chegar ao Senado após os 35 anos, cumprindo a missão de representar os Estados e revisar os atos da Câmara, embora conservem também a prerrogativa de fazer leis. É o que está na Constituição. Mas as clássicas tarefas das chamadas Câmaras Baixa e Alta passam por interessante metamorfose.
O Senado está, a cada nova legislatura, mais renovado. Expande-se o número de senadores de menos idade, que se somam aos cerca de 20 suplentes que ocupam o lugar de titulares num colegiado de 81 parlamentares. Já a média de idade dos 513 deputados eleitos no último pleito é de 51 anos, a mesma verificada em 2006, tendo a maioria entre 45 e 59 anos. Constata-se, ainda, aumento do número de casados, hoje 384, ante 376 na legislatura anterior. A Casa dos deputados, portanto, exibe mais rebocos. Não é mais tão nova. A mudança mais significativa, porém, refere-se à morfologia da representação dos congressistas em face da intensa organicidade por que passa a sociedade brasileira.
Vale observar inicialmente o princípio básico da Carta Magna, cujo § único do artigo 1.º reza: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos dessa Constituição". O poder dos governantes numa democracia é dado pelo povo e por ele pode ser retirado. E o que é o povo? É a pessoa comum, o sujeito pleno de direitos ou, na expressão de Bobbio, "o conjunto de cidadãos que mantém vínculos políticos e jurídicos com o Estado".
Em 1846 o francês Jules Michelet, em seu clássico O Povo, dizia que ele é o herói, por "criar, com seu trabalho, a riqueza da Nação e exercer sobre a ordem estabelecida uma pressão salutar; são os simples, aqueles que dividem pouco o seu pensamento, pois, não sendo dotados dos mecanismos de análise e abstração, veem as coisas de forma una, inteira, concreta, tal como a vida lhes apresenta". As disciplinas das ciências humanas, a partir da sociologia e da política, contêm vasto painel sobre as significações do termo, sendo referenciais as que estabelecem conexão entre povo e massas.
Ortega y Gasset explica que a sociedade é sempre uma unidade dinâmica de dois conjuntos: minorias e massas, sendo estas constituídas por pessoas não especialmente qualificadas. O que não significa que as massas devam ser entendidas apenas como "massas operárias", como é costume ler. Daí a assertiva acentuada do filósofo de que a massa é "o homem médio", um tipo genérico, não diferenciado de outros. A observação faz-se necessária para caracterizar o objeto da representação dos deputados. Seu foco é o cidadão, esteja ele em qualquer das bandas classificadas por John Stuart Mill: a dos passivos (dóceis, indiferentes, manipuláveis) ou a dos ativos (educados, conscientes, participativos).
A mudança na forma de representação tem que ver com a passagem de uma sociedade de massas para uma sociedade assentada em grupamentos, núcleos, setores, categorias. Se a civilização do século 19 produziu o "homem-massa", como apregoava Gasset, é razoável apontar neste segundo decênio do século 21 a emergência do "homem-cidadão", ator central nos novos circuitos de representação (associações, federações, sindicatos, movimentos, etc.) que chegam a desenvolver uma democracia supletiva em complemento às tarefas das instituições tradicionais da política.
O espectro parlamentar deixa transparecer a nova realidade. Na Câmara tornou-se rotina classificar as bancadas setoriais, como as dos empresários, dos trabalhadores, dos ruralistas, evangélica, entre outras. A contabilidade de organizações que acompanham as atividades congressuais mostra que a bancada de empresários é formada por 273 deputados; a ruralista abriga 220; a sindical de trabalhadores, 75; a evangélica, 63 deputados. E assim por diante. As diferenças numéricas entre bancadas tendem a ser mais estreitas. No Senado, apesar de menos explícita que na Câmara, a divisão também existe.
Ora, a repartição dos conjuntos da representação por setores ou grupos escancara a crescente organicidade social no País, decorrência da conquista de direitos, principalmente pós-Constituição de 1988; da elevação dos padrões educacionais; da ascensão social e econômica de milhões de brasileiros; e da abertura das redomas dos Poderes, com maior acesso das pessoas aos canais do Executivo, Legislativo e Judiciário. Além disso, a falta de respostas das instituições políticas às demandas sociais tem colaborado para a expansão de novos núcleos de poder (as formas associativas). Dessa moldura transparece a hipótese de que a democracia no Brasil recebe o oxigênio das esferas organizadas da sociedade, deixando distante o sonho de políticos de manipular os eleitores. (Na imagem de Stuart Mill, os governantes sonham em converter súditos em cordeirinhos dedicados a pastar capim e a não reclamar, nem quando o capim é escasso.)
O povo não é uma ficção. Faz-se presente na entidade que acolhe a categoria profissional a que pertence ou no movimento que atua como aríete para romper círculos ainda fechados dos vãos do poder. Pouco a pouco começa a entender que sua representação compõe também a elite política, fugindo da firula que alguns procuram engendrar quando execram as elites, pregando a velha luta de classes, pobre contra ricos. A lição do famoso sociólogo norte-americano Wright Mills é clara: "A elite são os que estão no topo das principais hierarquias". Nesse sentido, a morfologia representativa das Casas congressuais ganha as tintas da pluralidade.
O Brasil tem avançado, sim, no campo da representação.
17 de novembro de 2013
Gaudêncio Torquato, O Estado de S.Paulo
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