Peguei o livro novo da Cris Guerra, Moda Intuitiva, para dar uma folheada - e cadê que eu consigo parar de ler? Até parece que não tenho um monte de obrigações urgentes. Ou que a moda está no centro dos meus interesses... Quem me vê não diria isso.
Ou diria? Volta e meia a memória regurgita uma frase do Pitigrilli, autor italiano que ninguém mais lê: elegância é uma questão de esqueleto. Se o chassis não é grande coisa, meu amigo, minha amiga, não adianta você insistir. Penso nisso quando, de boné, me sinto convertido num daqueles saleirinhos brancos e bojudos, com tampa azul, da marca Cisne. Cisne, eu? Me consolo com a amiga Linda, que se sente uma lavadeira mesmo pondo na cabeça o melhor lenço italiano. Ao contrário, reclama, das fulanas que até um pano de prato promove a deusas da elegância.
Aos 18 anos, em plena Idade Média belo-horizontina, apareci em casa com uma blusa vermelha. (Na época, jamais admitiria a relação de causa e efeito, mas obviamente tinha visto o Troy Donahue no Candelabro Italiano). Mamãe morreu, décadas depois, achando que era culpa de uma namorada, disposta a chacoalhar o monótono visual do moço. Porque em nossa casa não eram esses os modos e modas. Blusa vermelha, definitivamente, não era coisa de "gente do nosso meio".
Do nosso meio e da minha geração, na qual os machos estavam desde o berço condenados à sem-graceza do branco, do azul marinho, dos vários tons de cinza - e não estou falando aqui desses livros concebidos para esquentar freguesas mal supridas.
No fundo, como algo inconfessável, eu me permitia não gostar da compulsória mesmice cromática. Não que me lembre, menino, de episódios de insubordinação nesse departamento, mas bem mais tarde a mamãe, como quem falasse de problema superado, soltou duas ou três historinhas de que fui protagonista. Levado para uma consulta, cravei os olhos nos pés do médico, e quase matei de vergonha a minha acompanhante ao indagar afirmativamente, nas barbas (literais) do doutor: "Sapato branco não é de mulher?"
Já crescido, topei com uma foto feita no jardim do Roseiral, a casa da minha avó paterna na fazenda. No centro, claro, galinha cercada de seus pintos, sorri a vovó Dora em meio a uma netaiada (teve meia centena) que transborda da varanda e se esparrama pelo gramado em frente. Reconheci vários primos, e, frustrado, cheguei a achar que não entrara na foto - até que mamãe me apontasse na primeira fila: esta marmotinha aqui. Em seus 4 anos, completados naquele fevereiro, a marmotinha está de cócoras, dificilmente reconhecível por detrás de um adereço improvável para a sua idade: óculos escuros.
Mamãe contou que no meu aniversário, dias antes, pedi três presentes, um dos quais aqueles óculos. Também um "anel de chapinha", de prata, assim chamado por oferecer um espaço ovalado para gravar iniciais. Não só ganhei como, semostrador, me esforcei por exibi-lo na fotografia. Quanto à terceira prenda, meus pais houveram por bem não concedê-la ao aniversariante: um par de muletas. Morbidez? Nem tanto, avalia o pai e avô que vim a ser: eu via as muletas como equipamento lúdico, da mesma família das pernas de pau com as quais a garotada manquitolava alegremente.
Em nossa casa, já contei, havia tanta gente - seis meninos e quatro meninas - que o jeito era recorrer a uma costureira, a gargalhante e hipopotâmica Noézia, encarregada de pilotar por dias, semanas, a Singer da família e converter em roupa o tecido ("fazenda", usava-se dizer) que minha mãe comprava aos metros, peças inteiras, no fuzuê da rua dos Caetés. E tome branco, cinza e azul marinho.
Com o meu primeiro dinheirinho de trabalhador, aos 15 anos, trabalhador de fábrica (fica para outra a história do castigo que me aplicaram por haver levado no colégio uma bomba de vários megatons), comprei, meio por gosto, meio para dar um troco em casa, uma camisa grená que não causou espécie apenas na família: mania de ser diferente, esse menino! O passo seguinte seria a blusa vermelha do Troy Donahue.
Mas que conversa é essa, gente? Deu pano pra manga. Melhor voltar ao delicioso livro da Cris Guerra - assunto, quem sabe, para o domingo que vem, se vier.
17 de novembro de 2013
Humberto Werneck, O Estado de São Paulo
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