Enquanto movimentos petistas acusam um golpe, o STF pode passar por cima da Constituição conclamando "eleições diretas".
O Supremo Tribunal Federal perdeu todos os freios. Mais. Já anda dizendo em alto e bom som que é protagonista, sim, da vida pública brasileira. E quando se fala em protagonista, deve-se levar a palavra ao pé da letra: ator principal, personagem central, herói (ou vilão), enfim, o cara da história, sedento por um Oscar por sua atuação grandemente destacada. Já expliquei isso noutro artigo, o qual recomendo que leiam aqui. A nova forma de ativismo é a campanha pelas eleições diretas.
Agora, em meio ao pandemônio instalado no Brasil, o STF tem a chance de, mais uma vez, puxar os holofotes para si e dar a sua solução para o problema. E essa chance atende pelo nome de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 5.525, ajuizada pelo Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, em 16/05/2016.
O caso veio agora à tona depois que o relator, ministro Luís Roberto Barroso, liberou o processo para ser julgado, o que significa que já tem seu voto pronto. Cabe agora à presidente da Corte, ministra Carmem Lúcia, colocar em pauta.
Na ação, o Procurador-Geral da República pretende, dentre outros pedidos, que seja declarada a inconstitucionalidade dos §3º §4º do artigo 224 do Código Eleitoral quanto ao Presidente e Vice-Presidente da República. Esses dispositivos foram introduzidos pela Minirreforma Política aprovada em 2015 (Lei 13.165, de 29 de setembro de 2015), e dizem o seguinte:
“Art. 224. Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias.
(…)
3oA decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados
4o A eleição a que se refere o § 3ocorrerá a expensas da Justiça Eleitoral e será:
I – indireta, se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato;
II – direta, nos demais casos.”
O argumento do PGR para afastar a aplicação deste dispositivo ao Presidente e ao Vice-Presidente da República é que para estes já existe regra específica, constante no artigo 81, §1º da Constituição Federal:
“Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.
1º Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.
Certíssimo! A Constituição é clara quanto à disciplina do caso de vacância da Presidência e Vice-Presidência da República: eleições diretas se ocorrer nos dois primeiros anos do mandato presidencial; e indireta se ocorrer nos dois últimos anos. Ponto final.
Porém, nesta mesma ADIN 5.525 apareceu um novo ator a defender tese contrária, totalmente atentatória à Constituição Federal, e que só interessa ao petismo e seus auxiliares, que foram expulsos do poder com o impeachment de Dilma Rousseff, estão atolados em crimes e acusações das mais graves, mas andam por aí a defender a convocação de ilegítimas eleições diretas para tentar voltar ao poder de qualquer jeito.
Após os trâmites de praxe, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, admitiu como amicus curiae a seguinte entidade[1]: Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Clínica UERJ Direitos (http://uerjdireitos.com.br/), que veio para o processo para defender a tese contrária à do PGR.
A entidade, que já defendeu outras bandeiras esquerdistas no mesmo STF ao lado, inclusive, do PSOL[2], sustenta que o artigo 224, §3º do Código Eleitoral é, sim, constitucional, e aplica-se também em caso de vacância da Presidência da República, mesmo que o artigo 81, §1º da Constituição Federal já trate do caso específico do cargo máximo da nação.
O reconhecimento da tese da Clínica UERJ Direitos implica na aplicação do §4º do mesmo artigo 224 do Código Eleitoral, que diz que as eleições serão indiretas apenas quando a vacância se der nos 6 (seis) últimos meses do mandato; e diretas nas demais hipóteses. Bingo! Um trecho em particular da tese é bastante elucidativo[3]:
“No atual cenário, confirmada a possibilidade de cassação pelo TSE da chapa que elegeu Dilma Rousseff e Michel Temer, qualquer tentativa de solução da grave crise político-institucional do país por meio de eleições indiretas – realizadas por um Congresso Nacional, d. v., fortemente desacreditado perante a opinião pública –, poderia debilitar ainda mais a legitimidade do nosso regime político aos olhos do povo. Se essa solução for imposta pelo STF como uma exigência da Constituição – a despeito até da vontade contrária do legislador –, a crença social na legitimidade da Carta de 88 é que poderia entrar em grave crise.”
A pretensão é explicita e casuística, sem qualquer firula. Poderia perfeitamente ser lida nas manifestações do PT… Ao fim da peça[4], a entidade pede que o STF não afaste a aplicação do artigo 224, §3º e §4º do Código Eleitoral quanto ao Presidente e Vice-Presidente da República e, assim, sejam realizadas eleições DIRETAS em caso de cassação da chapa Dilma-Temer pelo TSE, passando por cima da Constituição e, claro, do Congresso Nacional.
Caso essa tese não prospere, a entidade tem um segundo pedido[5]: que o STF declare que o Congresso Nacional possa abrir mão de sua prerrogativa de eleger indiretamente o Presidente da República e devolver ao povo, por ato legislativo, para que o faça através de eleições diretas. Ou seja, abre espaço para mais casuísmos totalmente contrários ao texto constitucional, e favoráveis às aspirações das forças de esquerda do Brasil.
Quem assina a petição como advogado da Clínica UERJ Direitos é o ilustre constitucionalista Daniel Sarmento, uma referência no país quando se trata de ativismo judicial e direitos fundamentais. Daniel Sarmento é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UERJ, onde também leciona o ministro Luís Roberto Barroso. Sarmento também foi aluno de Barroso na mesma UERJ.
Isso significa que o STF vai acolher essa tese monstruosa? Acredito que não, mas também não quero pagar para ver. O que sei é que em várias oportunidades o STF já desconsiderou a letra fria da Constituição para fazer interpretação totalmente diversa do texto. E para acolher a tese da Clínica UERJ Direitos terá que fazer exatamente isto: rasgar o artigo 81, §1º da Constituição para aplicar uma lei ordinária que atende, casuisticamente, aos desejos daqueles verdadeiros golpistas, capitaneados pelos ex-presidentes petistas Lula e Dilma, responsáveis pela indicação de nada menos que sete ministros do próprio STF, incluindo Luís Roberto Barroso, relator do processo. E para aplicar esse golpe de misericórdia na democracia brasileira será preciso o voto da maioria dos ministros, ou seja: seis votos[6].
A expectativa agora é saber se a presidente Carmem Lúcia irá colocar o processo para votação do plenário do STF antes ou depois do julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE. E, uma vez em pauta, qual será o contexto político que envolverá o julgamento.
Portanto, se o STF quiser terá mais uma chance de golpear a Constituição Federal através do já costumeiro exercício do ativismo judicial. Pior, cometerá a maior de todas as transgressões de suas competências, jogando o país no caos completo e no fundo de um poço que parece cada vez mais fundo.
Notas:
[1] Despacho do relator que admitiu a entidade para defender sua tese na ADIN: “2. Pediu ingresso no processo, na qualidade de amicus curiae, a seguinte entidade: Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Clínica UERJ Direitos. 3. Tendo em vista os critérios de representatividade do postulante, pertinência temática, abrangência e equilíbrio na sustentação de tese contraposta, defiro o ingresso no feito do interessado. Publique-se.”
[2] Trecho da petição da Clínica UERJ Direitos: “Dentre outros casos, a Clínica patrocina a ADPF n. 347, ajuizada pelo PSOL, em que se reconheceu o ‘estado de coisas inconstitucional’ do sistema prisional brasileiro; representa a Educafro na ADC n. 41, em que se discute a validade de cotas raciais nos concursos públicos federais; e o Grupo Tortura Nunca Mais na ADI 5.032 e na ADPF 289, que tratam de limitações à competência da Justiça Militar brasileira derivadas da proteção doméstica e internacional dos direitos humanos.
A Postulante já foi admitida, em nome próprio, como amicus curiae pelo STF no julgamento da ADI 4.650, em que a Corte vedou o financiamento empresarial de campanhas eleitorais. Naquele histórico julgamento, as contribuições ofertadas pela Clínica UERJ Direitos e por seus integrantes foram amplamente consideradas e citadas nos votos de diversos ministros da Corte.”
[3] Link com a íntegra da manifestação da Clínica UERJ Direitos já admitida no processo:
http://uerjdireitos.com.br/defesa-das-eleicoes-diretas-adi-5-525/amicus-adi5525/
[4] Trecho da petição: “Portanto, ainda que se entenda que o art. 81, §1º, da Constituição confere ao Congresso Nacional o poder de eleger indiretamente o Presidente da República mesmo quando a dupla vacância da chapa presidencial, ocorrida na segunda metade do mandato, for decorrente de causa eleitoral, nada obsta que esse mesmo poder seja “delegado” pelo próprio Congresso ao povo. Sendo assim, também por essa razão não pode ser acolhido pedido da PGR, de declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto das regras eleitorais que preveem a eleição presidencial direta nessa hipótese.”
[5] Trecho da petição: “Com efeito, mesmo que se entenda que cabe primariamente ao Congresso Nacional a realização de eleições presidenciais indiretas em tal situação, nada obstaria que a instituição parlamentar, por livre decisão, “devolvesse” essa sua prerrogativa ao titular da soberania – o povo.”
[6] Lei 9.868/99: Art. 23. Efetuado o julgamento, proclamar-se-á a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da disposição ou da norma impugnada se num ou noutro sentido se tiverem manifestado pelo menos seis Ministros, quer se trate de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade.
30 de maio de 2017
Arthur Dutra, senso incomum
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