"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 12 de julho de 2016

PARA ALÉM DA DERROTA DO PT

A reconstrução nacional terá de passar também pela reforma dos Três Poderes da República


Não há dúvida de que o Brasil vive a mais grave crise do período republicano. O país aguarda a conclusão do processo de impeachment para iniciar o longo e penoso processo de reconstrução nacional. O PT esgarçou os tecidos social e político a um ponto nunca visto. Transformou o Estado em correia de transmissão dos interesses partidários. E desmoralizou as instituições do estado democrático de direito.

O projeto criminoso de poder deixou rastros, por toda parte, de destruição dos valores republicanos. Transformou a corrupção em algo rotineiro, banal. A psicopatia petista invadiu, como nunca, o mundo da política nacional. Mesmo com as revelações das investigações dos atos criminosos que lesaram o Estado e os cidadãos, o partido e suas lideranças continuaram a negar a existência do que — sem exagero — pode ser considerado o maior desvio de recursos públicos da história da humanidade.

Não há qualquer instância do Estado sem a presença petista. Por toda parte, o PT foi instalando seus militantes e agregados. Transformou o governo em mero aparelho partidário — e isso sem que tenha chegado ao poder pela via revolucionária. Esta é uma das suas originalidades. Usou de todas as garantias da democracia para solapá-la. Desprezou a Constituição e todo o arcabouço legal. Considerou-os mero cretinismo jurídico. Jogou — e até agora, ganhou — com a complacência da Justiça. Nada justifica, por exemplo, que a Lei 9096/96, que trata do registro dos partidos políticos, até hoje não tenha sido aplicada nos casos envolvendo o PT e os desvios de recursos públicos. Como é possível ter dois tesoureiros sentenciados — e outro processado — sem que o partido tenha o registro cassado, como dispõe o artigo 27 da citada lei?

A reconstrução nacional terá de passar também pela reforma dos Três Poderes da República. O petismo levou ao máximo a crise de representação política, da administração pública e do funcionamento da Justiça. Não é tarefa fácil. Pode levar várias gerações. Mas é inexorável. E urgente. A indignação popular é dirigida ao conjunto dos poderes da República. Nada funciona de forma eficaz. Por toda parte, o cidadão encontra corrupção e injustiça. É como se o país fosse uma república de salteadores. E quem cumpre as leis faz papel de idiota.

Enfrentar este estado de coisas não é uma tarefa de um poder. É evidente que o novo governo que vai surgir da aprovação do processo de impeachment tem de fazer a sua parte, aquela que cabe ao Executivo. Mas os outros dois poderes também estão podres. Ninguém confia nas representações parlamentares. Mas também ninguém confia na Justiça. Se o Parlamento é patético, o que podemos dizer do STF que considerou “grave ameaça à ordem pública” o boneco representando o ministro Ricardo Lewandowski?

Há uma fratura entre os cidadãos e a Praça dos Três Poderes, em Brasília. Toda aquela estrutura cara e carcomida por ações antirrepublicanas de há muito não representa os sentimentos populares. A crise é muito maior do que se imagina — e se fala. Se a grave situação econômica pode ser enfrentada e vencida pelo novo governo a partir do ano que vem, se a aprovação de uma legislação mais severa pode coibir os atos de corrupção, se alguma reforma eleitoral pode melhorar a qualidade da representação popular, a tarefa mais complexa será a do enfrentamento de uma nova realidade social produzida nas metrópoles, por um Brasil desconhecido, pouco conhecido e que não faz parte das interpretações consagradas, como aquelas dos anos 1930, como “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, que ainda retratava um país rural. De um Brasil que necessita ser desvendado, de dilemas complexos e que precisam ser compreendidos para serem enfrentados. E que não passa pela fraseologia barata de fundir citações de letristas de canções populares com velhos explicadores da “civilização brasileira.”

Vivemos um momento novo. O terrível é que as instituições estão velhas. E não há intérpretes que consigam desenhar cenários do que somos e para onde poderemos ir — as universidades perderam a capacidade de exercer o papel de consciência crítica; hoje, não passam de instituições corporativas, sem papel relevante.

A edificação da democracia, com a promulgação da Constituição de 1988, ignorou as profundas contradições sociais que foram gestadas com a urbanização selvagem que se intensificou nos anos 1980. Foi elevado um edifício moderno tendo como base uma antiga estrutura que se manteve intocada. E, pior: com o desconhecimento do solo social. E deu no que deu, numa crise sem fim.

Derrotar o projeto criminoso de poder foi uma grande vitória. Ele agravou as mazelas brasileiras. Ou melhor, foi consequência do rápido apodrecimento das instituições. O desafio será enfrentar a herança maldita do leninismo tropical que, além de tudo, desmoralizou a democracia. E isto é grave, especialmente em um país com a nossa triste tradição autoritária. Por isso, processar, julgar e condenar — pois os crimes são evidentes — o chefe do petrolão terá um enorme (e benéfico) papel pedagógico, uma demonstração inequívoca que o crime não compensa e que a lei é igual para todos.

O impeachment de Dilma Rousseff — que é muito importante — precisa ser complementado por ações que levem a uma reestruturação do Estado, das suas instituições e, principalmente, de suas práticas. Não podemos continuar a ser um país que parece que está de cabeça para baixo, onde as imagens vivem se confundindo, onde passamos, em instantes, do claro ao escuro, da verdade ao engano, do sublime ao patético.



12 de julho de 2016
Marco Antonio Villa, O Globo

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