O Mercosul faz 25 anos, em meio a bons resultados agregados, ao lado de críticas e ceticismo em relação ao período recente. Tem pela frente o grande desafio da renovação e da adaptação a um cenário internacional cada vez mais competitivo e instável.
A crise que atingiu a região nos últimos anos não diminui a importância do projeto de integração. Ao contrário, torna urgente recuperar o dinamismo perdido, com vistas ao nosso desenvolvimento e projeção externa.
É no contexto desses desafios que abordamos a questão da transmissão da presidência pro tempore do Mercosul para a Venezuela. A presidência do bloco, atualmente a cargo do Uruguai, é exercida semestralmente, em base alfabética. Ocorre que as circunstâncias políticas na Venezuela, bem como o estágio em que se encontra o cumprimento por esse país das obrigações que assumiu ao aderir ao Mercosul, impõem considerações e cuidados que levaram o Brasil a sugerir a postergação da próxima transmissão, que seria em julho, até o próximo mês de agosto.
Todos nós acompanhamos com preocupação os desdobramentos da crise política, econômica e humanitária na Venezuela. O debate sobre o funcionamento de sua democracia reflete uma realidade de polarização e acirramento retórico, que se tem mostrado de difícil superação. O conflito entre Executivo e Congresso paralisa o país, e a ação do Judiciário é objeto de sério questionamento. Rumores de que setores ligados ao governo querem o fechamento da Assembleia Nacional dão a medida da turbulência. Há denúncias de prisões arbitrárias, crescente violência nas ruas e uma gravíssima crise de desabastecimento de alimentos e remédios, que vem afetando drasticamente a população, sobretudo a mais pobre.
O Brasil aposta no diálogo entre as principais forças políticas venezuelanas para o encaminhamento da crise. Mas é forçoso reconhecer que, no momento, o cenário é de grande instabilidade, e falta vontade política para levar adiante a construção de pontes pelo lado do governo.
Ao Mercosul e a seu funcionamento institucional, incluindo o exercício da presidência pro tempore, interessa também o efeito das indefinições e pendências no processo de incorporação de normas pela Venezuela.
A entrada do país nesse bloco, em julho de 2012, deu-se em circunstâncias exóticas que, agora, quatro anos depois, cobram a sua fatura. O artifício foi o seguinte: o ingresso de um novo membro exigia, como exige, consenso; como o Paraguai se opunha à entrada da Venezuela, alegando, com razão, falta de cumprimento de requisitos prévios, os demais governos-membros o suspenderam do bloco, sob pretexto de que a demissão do então chefe de governo paraguaio, Fernando Lugo, embora seguindo normas constitucionais, fora antidemocrática. Desse modo, sem a necessidade de apoio do Paraguai, os outros sócios aprovaram, precipitadamente e com base em critérios político-ideológicos, o protocolo que viria a reger a adesão da Venezuela ao Mercosul.
Esse protocolo, ao contrário do que seria correto, autorizou a entrada imediata da Venezuela, deixando apenas para depois, com um prazo de quatro anos, a obrigação do país de incorporar o acervo legal do Mercosul. Esse prazo vence no próximo dia 12 de agosto. Trata-se de um conjunto de mais de 1.100 normas, além de cerca de 50 tratados internacionais, negociados no âmbito do bloco. São regras que definem a identidade, a forma, o funcionamento do Mercosul. Não é um tema menor. Antes, é o que confere ao bloco conteúdo e identidade.
Até o momento, a Venezuela incorporou pouco mais da metade dessas normas. Ou seja, falta ainda um expressivo conjunto de preceitos técnicos e tratados a serem incorporados, incluindo aí documentos essenciais, como o “Protocolo de Assunção sobre o Compromisso com a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos no Mercosul (2005)”, o “Acordo de Residência do Mercosul (2002)” e o “Acordo de Complementação Econômica nº 18, no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi)”. Esse último, no qual estão refletidas as principais disciplinas comerciais do bloco, constitui a espinha dorsal do Mercosul comercial.
A não incorporação dessas normas faz da Venezuela um sócio incompleto, inadimplente em relação a deveres que são fundamentais, como regras de origem, que definem se um produto pode ingressar nos demais parceiros sem pagar imposto de importação, cooperação judicial e regulamentos técnicos sobre meio ambiente, alimentos, direitos do consumidor e requisitos fitossanitários, entre outros.
No momento em que os países da região, e o Mercosul com eles, voltam a conferir o devido valor à previsibilidade e à segurança jurídica, a expectativa de que a Venezuela cumpra com as obrigações assumidas é exigência lógica e requisito incontornável. Ao propor a postergação da transferência da presidência, o Brasil age com prudência, abrindo espaço e tempo para avaliar com serenidade o melhor caminho a seguir.
O Mercosul não se pode deixar paralisar. Ao lado dos demais sócios, estamos determinados a modernizar o bloco, a derrubar os entraves que ainda impedem o total livre fluxo de comércio dentro do próprio bloco, a negociar matérias pendentes como investimentos e compras governamentais, a concluir novos acordos com parceiros extrarregionais e integrar-nos de maneira cada vez mais competitiva e proveitosa com o resto do mundo.
A Venezuela é um parceiro importante nesse processo. As potencialidades do país são imensas. Mas as bases para o nosso desenvolvimento conjunto precisam ser lastreadas em instituições respeitadas, comportamento previsível e regras claras. O futuro do Mercosul depende disso.
12 de julho de 2016
José Serra é ministro das Relações Exteriores, O Globo
A crise que atingiu a região nos últimos anos não diminui a importância do projeto de integração. Ao contrário, torna urgente recuperar o dinamismo perdido, com vistas ao nosso desenvolvimento e projeção externa.
É no contexto desses desafios que abordamos a questão da transmissão da presidência pro tempore do Mercosul para a Venezuela. A presidência do bloco, atualmente a cargo do Uruguai, é exercida semestralmente, em base alfabética. Ocorre que as circunstâncias políticas na Venezuela, bem como o estágio em que se encontra o cumprimento por esse país das obrigações que assumiu ao aderir ao Mercosul, impõem considerações e cuidados que levaram o Brasil a sugerir a postergação da próxima transmissão, que seria em julho, até o próximo mês de agosto.
Todos nós acompanhamos com preocupação os desdobramentos da crise política, econômica e humanitária na Venezuela. O debate sobre o funcionamento de sua democracia reflete uma realidade de polarização e acirramento retórico, que se tem mostrado de difícil superação. O conflito entre Executivo e Congresso paralisa o país, e a ação do Judiciário é objeto de sério questionamento. Rumores de que setores ligados ao governo querem o fechamento da Assembleia Nacional dão a medida da turbulência. Há denúncias de prisões arbitrárias, crescente violência nas ruas e uma gravíssima crise de desabastecimento de alimentos e remédios, que vem afetando drasticamente a população, sobretudo a mais pobre.
O Brasil aposta no diálogo entre as principais forças políticas venezuelanas para o encaminhamento da crise. Mas é forçoso reconhecer que, no momento, o cenário é de grande instabilidade, e falta vontade política para levar adiante a construção de pontes pelo lado do governo.
Ao Mercosul e a seu funcionamento institucional, incluindo o exercício da presidência pro tempore, interessa também o efeito das indefinições e pendências no processo de incorporação de normas pela Venezuela.
A entrada do país nesse bloco, em julho de 2012, deu-se em circunstâncias exóticas que, agora, quatro anos depois, cobram a sua fatura. O artifício foi o seguinte: o ingresso de um novo membro exigia, como exige, consenso; como o Paraguai se opunha à entrada da Venezuela, alegando, com razão, falta de cumprimento de requisitos prévios, os demais governos-membros o suspenderam do bloco, sob pretexto de que a demissão do então chefe de governo paraguaio, Fernando Lugo, embora seguindo normas constitucionais, fora antidemocrática. Desse modo, sem a necessidade de apoio do Paraguai, os outros sócios aprovaram, precipitadamente e com base em critérios político-ideológicos, o protocolo que viria a reger a adesão da Venezuela ao Mercosul.
Esse protocolo, ao contrário do que seria correto, autorizou a entrada imediata da Venezuela, deixando apenas para depois, com um prazo de quatro anos, a obrigação do país de incorporar o acervo legal do Mercosul. Esse prazo vence no próximo dia 12 de agosto. Trata-se de um conjunto de mais de 1.100 normas, além de cerca de 50 tratados internacionais, negociados no âmbito do bloco. São regras que definem a identidade, a forma, o funcionamento do Mercosul. Não é um tema menor. Antes, é o que confere ao bloco conteúdo e identidade.
Até o momento, a Venezuela incorporou pouco mais da metade dessas normas. Ou seja, falta ainda um expressivo conjunto de preceitos técnicos e tratados a serem incorporados, incluindo aí documentos essenciais, como o “Protocolo de Assunção sobre o Compromisso com a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos no Mercosul (2005)”, o “Acordo de Residência do Mercosul (2002)” e o “Acordo de Complementação Econômica nº 18, no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi)”. Esse último, no qual estão refletidas as principais disciplinas comerciais do bloco, constitui a espinha dorsal do Mercosul comercial.
A não incorporação dessas normas faz da Venezuela um sócio incompleto, inadimplente em relação a deveres que são fundamentais, como regras de origem, que definem se um produto pode ingressar nos demais parceiros sem pagar imposto de importação, cooperação judicial e regulamentos técnicos sobre meio ambiente, alimentos, direitos do consumidor e requisitos fitossanitários, entre outros.
No momento em que os países da região, e o Mercosul com eles, voltam a conferir o devido valor à previsibilidade e à segurança jurídica, a expectativa de que a Venezuela cumpra com as obrigações assumidas é exigência lógica e requisito incontornável. Ao propor a postergação da transferência da presidência, o Brasil age com prudência, abrindo espaço e tempo para avaliar com serenidade o melhor caminho a seguir.
O Mercosul não se pode deixar paralisar. Ao lado dos demais sócios, estamos determinados a modernizar o bloco, a derrubar os entraves que ainda impedem o total livre fluxo de comércio dentro do próprio bloco, a negociar matérias pendentes como investimentos e compras governamentais, a concluir novos acordos com parceiros extrarregionais e integrar-nos de maneira cada vez mais competitiva e proveitosa com o resto do mundo.
A Venezuela é um parceiro importante nesse processo. As potencialidades do país são imensas. Mas as bases para o nosso desenvolvimento conjunto precisam ser lastreadas em instituições respeitadas, comportamento previsível e regras claras. O futuro do Mercosul depende disso.
12 de julho de 2016
José Serra é ministro das Relações Exteriores, O Globo
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