Existem boas razões para acreditar que o Brasil não repetirá a Itália, onde os políticos conseguiram se livrar das condenações. Mas a pressão da sociedade precisa ser permanente
UM QUADRO DE CORRUPÇÃO sistêmica emerge das investigações da Lava-Jato. Hoje, sabe-se que o pagamento de propinas para participar de obras públicas era visto cinicamente pelas empreiteiras como "pedágio" para tomar parte em contratos públicos. O volume de recursos movimentado e a sofisticação usada para sua ocultação escancaram a magnitude da corrupção. Além de propinas, todas as outras formas de corrupção ocorreram de maneira sistemática, como troca de favores, compadrio, fraudes contábeis e eleitorais, apropriação indevida do dinheiro público, sonegação de impostos, tráfico de influência. A certeza da impunidade produziu esse manual de condutas criminosas, que agora vem à luz com as investigações.
Além dos custos éticos, sociais e políticos, a corrupção gera enormes custos econômicos. Afetado por parasitas, o organismo econômico se debilita, o que leva à queda da produtividade e à consequente redução do crescimento. Nos investimentos em infraestrutura, desaparece a competição e encastelam-se cartéis que produzem obras superfaturadas e de baixa qualidade, fruto de projetos que favorecem interesses privados. Apenas parte dos recursos públicos chega ao seu destino, ficando o restante no caminho minado pela corrupção, o que afeta negativamente a qualidade dos investimentos, das transferências aos mais pobres e dos serviços públicos, como saúde e educação. Nesse ambiente de incerteza e ineficiência, retraem-se os investimentos privados, e o país se fecha às inovações, sofrendo um processo de esclerose precoce.
Para voltar a crescer, o Brasil tem de reduzir, permanentemente, a corrupção. As perspectivas são favoráveis e trazem esperança. Estamos dando ao mundo um exemplo de como fazer uma investigação, dentro do mais completo respeito às leis, e com uma eficiência que causa espanto aos acostumados com a impunidade. Mas riscos existem, e é bom ficarmos atentos. Ao ameaçar um grande número de políticos, a Lava-Jato enfrenta um momento delicado. A perspectiva de condenação exacerba nos legisladores envolvidos a tentação de alterar as leis e instituições que os ameaçam. Diálogos gravados entre líderes políticos não deixam dúvidas a respeito. Argumentos de que é preciso "voltar à normalidade" são defendidos sob o disfarce de "acordos de salvação nacional" - e que são meras tentativas de salvar a pele dos investigados.
A Itália sucumbiu nesse ponto. A Operação Mãos Limpas, realizada entre 1992 e 1998, e que, pelo porte e pela qualidade dos métodos investigativos, guarda semelhanças com a Lava-Jato, fornece lições valiosas. A reação do sistema politico, liderada por um dos principais acusados, o empresário da área de construção e comunicações Silvio Berlusconi (que se tornou primeiro-ministro), mutilou leis para proteger os corruptos e dificultar a identificação e a punição dos seus crimes. Conhecemos o resultado, e basta abrir um jornal italiano para ver casos de corrupção sendo por vezes protagonizados pelos mesmos indivíduos condenados no passado. Como diz o magistrado italiano Piercamillo Davigo, a espécie predada se fortaleceu. A Itália continua a ser um dos países da Europa com maior índice de corrupção — e crescimento econômico medíocre. O exemplo mais recente ocorreu na semana passada, quando se realizou a Operação Labirinto, que prendeu 24 pessoas, entre elas um político próximo do primeiro-ministro. É a prova de como quase nada mudou na Itália. Mas não estamos fadados a reiterar a história italiana. Ao contrário, o exemplo nos motiva a não repetir os erros lá cometidos.
Há diferenças importantes entre o caso brasileiro e o italiano conspirando a nosso favor. O mundo mudou. A globalização aumentou a interação entre os países, tornando-os mais dispostos a combater o crime organizado. A ampliação das ações terroristas, da corrupção e do tráfico de drogas levou ao aumento dos controles internacionais sobre as transferências de recursos. Acordos de cooperação foram firmados, criando condições para que as informações financeiras fluam com rapidez entre as nações. Sem contar com tais instrumentos, a Mãos Limpas encontrou enorme dificuldade em conseguir dados sobre contas e valores depositados no exterior. Além disso, na Itália o clima de violência dos anos de chumbo, com ações terroristas e atentados matando dezenas de pessoas, marcou dramaticamente a sociedade. A ação da máfia, que impôs ameaças e a "lei do silêncio", e os suicídios ocorridos entre os investigados contribuíram para assustar a população e minar o apoio às investigações. Outra diferença, importantíssima, a favor do Brasil refere-se à qualidade e à liberdade da nossa imprensa, duramente conquistadas. Na Itália, a situação é diferente, com o Estado e os principais partidos políticos mantendo presença forte nos meios de comunicação.
O exemplo do Chile deveria nos animar. Ao ver familiares e membros do governo envolvidos em corrupção, em 2014, a presidente Michelle Bachelet criou o Conselho Assessor Presidencial, formado por duas dezenas de cidadãos, de profissões variadas. O objetivo foi elaborar propostas para reduzir a corrupção, repensar o financiamento de partidos e regular conflitos de interesse. Eduardo Engel, renomado economista, assumiu a presidência do conselho, que em 45 dias chegou a 236 propostas. Elas foram levadas ao Congresso, que não demonstrou entusiasmo em apreciá-las, já que feriam interesses de políticos corruptos. A saída encontrada por Engel para que o esforço não fosse em vão foi simples e eficaz. Criou o Observatório Anticorrupción, cujo objetivo é acompanhar os avanços das medidas anticorrupção. As informações são atualizadas regularmente no site da organização, que se tornou um termômetro considerado confiável. A popularidade de Engel supera a de adorados jogadores de futebol, e ele foi capaz de incorporar, com maestria e transparência, o papel de guardião do processo anticorrupção. Ao denunciar a iminência de retrocessos, mobiliza a opinião pública e vence a resistência do Congresso em aprovar medidas que ferem privilégios. Houve queda nos casos de corrupção. A população atesta e aprova o avanço.
O Brasil não precisa necessariamente replicar o modelo chileno. A lição crucial a ser aprendida é a importância do apoio da sociedade na luta contra a corrupção. Felizmente, temos exemplos marcantes de mobilização popular e de esforço conjunto das instituições no enfrentamento da corrupção a nos dar esperanças. Foi notável a coleta de mais de 2 milhões de assinaturas em apoio ao projeto de lei das Dez Medidas contra a Corrupção, propostas pelo Ministério Público Federal — ora tramitando, embora lentamente, no Congresso. As manifestações do dia 13 de março, com milhões de pessoas nas ruas, foram as maiores já registradas. Crucial ainda contra a impunidade provocada por infindáveis recursos protelatórios foi a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que alterou a jurisprudência e permitiu a condenação de réus a partir de julgamento em segunda instância, pondo fim a uma venenosa jabuticaba brasileira. Por último, Michel Temer tem declarado total apoio à Lava-Jato. Esperamos que essas conquistas se mantenham. Que se mantenha a prisão com condenação em segunda instância, que o STF voltará a analisar. Que se mantenham os termos da delação, que parlamentares já insinuam limitar, com o objetivo óbvio de dificultar a colaboração premiada. Que se mantenha a liberdade de atuação, dentro da lei, das autoridades policiais e judiciais, pois se fala, no Congresso, em projetos para conter supostos abusos de autoridades.
Apesar das ameaças vindas dos defensores da velha ordem, há motivos para conservarmos o otimismo quanto ao futuro da Lava-Jato e demais investigações contra a corrupção sistêmica no pais. Valorizando mais as oportunidades que as dificuldades do momento, e apoiando o combate à corrupção e o fortalecimento das instituições, construiremos um país mais justo, do qual voltaremos a ter orgulho.
12 de julho de 2016
Maria Cristina Pinotti, Revista Veja
economista, é sócia da consultoria A.C. Pastore & Associados
UM QUADRO DE CORRUPÇÃO sistêmica emerge das investigações da Lava-Jato. Hoje, sabe-se que o pagamento de propinas para participar de obras públicas era visto cinicamente pelas empreiteiras como "pedágio" para tomar parte em contratos públicos. O volume de recursos movimentado e a sofisticação usada para sua ocultação escancaram a magnitude da corrupção. Além de propinas, todas as outras formas de corrupção ocorreram de maneira sistemática, como troca de favores, compadrio, fraudes contábeis e eleitorais, apropriação indevida do dinheiro público, sonegação de impostos, tráfico de influência. A certeza da impunidade produziu esse manual de condutas criminosas, que agora vem à luz com as investigações.
Além dos custos éticos, sociais e políticos, a corrupção gera enormes custos econômicos. Afetado por parasitas, o organismo econômico se debilita, o que leva à queda da produtividade e à consequente redução do crescimento. Nos investimentos em infraestrutura, desaparece a competição e encastelam-se cartéis que produzem obras superfaturadas e de baixa qualidade, fruto de projetos que favorecem interesses privados. Apenas parte dos recursos públicos chega ao seu destino, ficando o restante no caminho minado pela corrupção, o que afeta negativamente a qualidade dos investimentos, das transferências aos mais pobres e dos serviços públicos, como saúde e educação. Nesse ambiente de incerteza e ineficiência, retraem-se os investimentos privados, e o país se fecha às inovações, sofrendo um processo de esclerose precoce.
Para voltar a crescer, o Brasil tem de reduzir, permanentemente, a corrupção. As perspectivas são favoráveis e trazem esperança. Estamos dando ao mundo um exemplo de como fazer uma investigação, dentro do mais completo respeito às leis, e com uma eficiência que causa espanto aos acostumados com a impunidade. Mas riscos existem, e é bom ficarmos atentos. Ao ameaçar um grande número de políticos, a Lava-Jato enfrenta um momento delicado. A perspectiva de condenação exacerba nos legisladores envolvidos a tentação de alterar as leis e instituições que os ameaçam. Diálogos gravados entre líderes políticos não deixam dúvidas a respeito. Argumentos de que é preciso "voltar à normalidade" são defendidos sob o disfarce de "acordos de salvação nacional" - e que são meras tentativas de salvar a pele dos investigados.
A Itália sucumbiu nesse ponto. A Operação Mãos Limpas, realizada entre 1992 e 1998, e que, pelo porte e pela qualidade dos métodos investigativos, guarda semelhanças com a Lava-Jato, fornece lições valiosas. A reação do sistema politico, liderada por um dos principais acusados, o empresário da área de construção e comunicações Silvio Berlusconi (que se tornou primeiro-ministro), mutilou leis para proteger os corruptos e dificultar a identificação e a punição dos seus crimes. Conhecemos o resultado, e basta abrir um jornal italiano para ver casos de corrupção sendo por vezes protagonizados pelos mesmos indivíduos condenados no passado. Como diz o magistrado italiano Piercamillo Davigo, a espécie predada se fortaleceu. A Itália continua a ser um dos países da Europa com maior índice de corrupção — e crescimento econômico medíocre. O exemplo mais recente ocorreu na semana passada, quando se realizou a Operação Labirinto, que prendeu 24 pessoas, entre elas um político próximo do primeiro-ministro. É a prova de como quase nada mudou na Itália. Mas não estamos fadados a reiterar a história italiana. Ao contrário, o exemplo nos motiva a não repetir os erros lá cometidos.
Há diferenças importantes entre o caso brasileiro e o italiano conspirando a nosso favor. O mundo mudou. A globalização aumentou a interação entre os países, tornando-os mais dispostos a combater o crime organizado. A ampliação das ações terroristas, da corrupção e do tráfico de drogas levou ao aumento dos controles internacionais sobre as transferências de recursos. Acordos de cooperação foram firmados, criando condições para que as informações financeiras fluam com rapidez entre as nações. Sem contar com tais instrumentos, a Mãos Limpas encontrou enorme dificuldade em conseguir dados sobre contas e valores depositados no exterior. Além disso, na Itália o clima de violência dos anos de chumbo, com ações terroristas e atentados matando dezenas de pessoas, marcou dramaticamente a sociedade. A ação da máfia, que impôs ameaças e a "lei do silêncio", e os suicídios ocorridos entre os investigados contribuíram para assustar a população e minar o apoio às investigações. Outra diferença, importantíssima, a favor do Brasil refere-se à qualidade e à liberdade da nossa imprensa, duramente conquistadas. Na Itália, a situação é diferente, com o Estado e os principais partidos políticos mantendo presença forte nos meios de comunicação.
O exemplo do Chile deveria nos animar. Ao ver familiares e membros do governo envolvidos em corrupção, em 2014, a presidente Michelle Bachelet criou o Conselho Assessor Presidencial, formado por duas dezenas de cidadãos, de profissões variadas. O objetivo foi elaborar propostas para reduzir a corrupção, repensar o financiamento de partidos e regular conflitos de interesse. Eduardo Engel, renomado economista, assumiu a presidência do conselho, que em 45 dias chegou a 236 propostas. Elas foram levadas ao Congresso, que não demonstrou entusiasmo em apreciá-las, já que feriam interesses de políticos corruptos. A saída encontrada por Engel para que o esforço não fosse em vão foi simples e eficaz. Criou o Observatório Anticorrupción, cujo objetivo é acompanhar os avanços das medidas anticorrupção. As informações são atualizadas regularmente no site da organização, que se tornou um termômetro considerado confiável. A popularidade de Engel supera a de adorados jogadores de futebol, e ele foi capaz de incorporar, com maestria e transparência, o papel de guardião do processo anticorrupção. Ao denunciar a iminência de retrocessos, mobiliza a opinião pública e vence a resistência do Congresso em aprovar medidas que ferem privilégios. Houve queda nos casos de corrupção. A população atesta e aprova o avanço.
O Brasil não precisa necessariamente replicar o modelo chileno. A lição crucial a ser aprendida é a importância do apoio da sociedade na luta contra a corrupção. Felizmente, temos exemplos marcantes de mobilização popular e de esforço conjunto das instituições no enfrentamento da corrupção a nos dar esperanças. Foi notável a coleta de mais de 2 milhões de assinaturas em apoio ao projeto de lei das Dez Medidas contra a Corrupção, propostas pelo Ministério Público Federal — ora tramitando, embora lentamente, no Congresso. As manifestações do dia 13 de março, com milhões de pessoas nas ruas, foram as maiores já registradas. Crucial ainda contra a impunidade provocada por infindáveis recursos protelatórios foi a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que alterou a jurisprudência e permitiu a condenação de réus a partir de julgamento em segunda instância, pondo fim a uma venenosa jabuticaba brasileira. Por último, Michel Temer tem declarado total apoio à Lava-Jato. Esperamos que essas conquistas se mantenham. Que se mantenha a prisão com condenação em segunda instância, que o STF voltará a analisar. Que se mantenham os termos da delação, que parlamentares já insinuam limitar, com o objetivo óbvio de dificultar a colaboração premiada. Que se mantenha a liberdade de atuação, dentro da lei, das autoridades policiais e judiciais, pois se fala, no Congresso, em projetos para conter supostos abusos de autoridades.
Apesar das ameaças vindas dos defensores da velha ordem, há motivos para conservarmos o otimismo quanto ao futuro da Lava-Jato e demais investigações contra a corrupção sistêmica no pais. Valorizando mais as oportunidades que as dificuldades do momento, e apoiando o combate à corrupção e o fortalecimento das instituições, construiremos um país mais justo, do qual voltaremos a ter orgulho.
12 de julho de 2016
Maria Cristina Pinotti, Revista Veja
economista, é sócia da consultoria A.C. Pastore & Associados
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