"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 12 de julho de 2016

GUERRA CIVIL, NOSSA E DELES

Duas autoridades norte-americanas, sendo uma delas o presidente Barack Obama, chegaram perto de definir como uma guerra civil larvar a situação no país, depois de mais dois episódios em que negros são mortos por policiais brancos e, em seguida, cinco policiais são assassinados por um franco-atirador.

Obama disse que os incidentes não são fatos isolados, mas "resultado da falta de confiança entre as forças da ordem e numerosas comunidades".

Coincide David Brown, o chefe da Polícia de Dallas, a cidade em que os policiais foram mortos: "Tudo o que sei é que é preciso acabar com essa divisão entre nossa polícia e nossos cidadãos".

Do outro lado da trincheira, desabafa o músico e compositor Zach Freshley para o sítio "Medium": "Não sei mais o que fazer. Não sei o que fazer em um mundo em que a maior ameaça a mim são pessoas que supostamente devem me proteger".

Os números dessa guerra civil disfarçada falam alto: a chance de um negro ser morto pela polícia é três vezes maior do que a de um branco.

Há um dado adicional a reforçar o ambiente bélico: apenas 13% das vítimas negras não estavam armadas. Claro que o fato de portar uma arma não torna ninguém culpado de um crime, ainda mais nos Estados Unidos, em que há tantas armas quanto cidadãos.

Mas o conhecimento desse fato predispõe o policial a atacar antes, no pressuposto de que pode vir a ser alvejado. Ou, posto de outra forma, os dois lados estão prontos para um combate, mas um deles –o dos negros– entra com o maior número de vítimas.

Horrorizado com essa guerra?

É para ficar mesmo, mas não pense que se trata de um fenômeno apenas norte-americano.

A Human Rights Watch, respeitável ONG de acompanhamento dos direitos humanos, acaba de divulgar seu relatório sobre a violência policial no Rio de Janeiro.

Só em 2015, a polícia do Rio matou 645 pessoas, das quais três quartas partes eram negras.

É o número mais alto desde 2010, quando, segundo o relatório, começou uma tendência de diminuição desse tipo de crimes –agora aparentemente interrompida.

É claro que também morrem policiais, talvez mais do que nos Estados Unidos. Porém, conforme o trabalho da HRW, para cada agente morto em serviço no Rio de Janeiro, a polícia matou 24,8 pessoas, mais do que o dobro do índice da África do Sul [outro país violento e em que o componente racial é importante] e, atenção, três vezes mais do que nos Estados Unidos.

Se há uma guerra civil disfarçada nos Estados Unidos, no Brasil, então, é pior, a julgar pelos números da Human Rights Watch.

É até desnecessário dizer que o cenário por ela descrito não é uma exclusividade do Rio de Janeiro, como é óbvio.

Parece evidente que o componente racial dessa guerra é um triste legado de anos e anos de escravidão, no Brasil como nos EUA, e de apartheid, no caso da África do Sul.

É necessária uma revolução cultural para cravar de fato na agenda, lá como aqui, que "vidas negras importam" –e a de policiais também.



112 de junho de 2016
Clovis Rossi, Folha de SP

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