Duas autoridades norte-americanas, sendo uma delas o presidente Barack Obama, chegaram perto de definir como uma guerra civil larvar a situação no país, depois de mais dois episódios em que negros são mortos por policiais brancos e, em seguida, cinco policiais são assassinados por um franco-atirador.
Obama disse que os incidentes não são fatos isolados, mas "resultado da falta de confiança entre as forças da ordem e numerosas comunidades".
Coincide David Brown, o chefe da Polícia de Dallas, a cidade em que os policiais foram mortos: "Tudo o que sei é que é preciso acabar com essa divisão entre nossa polícia e nossos cidadãos".
Do outro lado da trincheira, desabafa o músico e compositor Zach Freshley para o sítio "Medium": "Não sei mais o que fazer. Não sei o que fazer em um mundo em que a maior ameaça a mim são pessoas que supostamente devem me proteger".
Os números dessa guerra civil disfarçada falam alto: a chance de um negro ser morto pela polícia é três vezes maior do que a de um branco.
Há um dado adicional a reforçar o ambiente bélico: apenas 13% das vítimas negras não estavam armadas. Claro que o fato de portar uma arma não torna ninguém culpado de um crime, ainda mais nos Estados Unidos, em que há tantas armas quanto cidadãos.
Mas o conhecimento desse fato predispõe o policial a atacar antes, no pressuposto de que pode vir a ser alvejado. Ou, posto de outra forma, os dois lados estão prontos para um combate, mas um deles –o dos negros– entra com o maior número de vítimas.
Horrorizado com essa guerra?
É para ficar mesmo, mas não pense que se trata de um fenômeno apenas norte-americano.
A Human Rights Watch, respeitável ONG de acompanhamento dos direitos humanos, acaba de divulgar seu relatório sobre a violência policial no Rio de Janeiro.
Só em 2015, a polícia do Rio matou 645 pessoas, das quais três quartas partes eram negras.
É o número mais alto desde 2010, quando, segundo o relatório, começou uma tendência de diminuição desse tipo de crimes –agora aparentemente interrompida.
É claro que também morrem policiais, talvez mais do que nos Estados Unidos. Porém, conforme o trabalho da HRW, para cada agente morto em serviço no Rio de Janeiro, a polícia matou 24,8 pessoas, mais do que o dobro do índice da África do Sul [outro país violento e em que o componente racial é importante] e, atenção, três vezes mais do que nos Estados Unidos.
Se há uma guerra civil disfarçada nos Estados Unidos, no Brasil, então, é pior, a julgar pelos números da Human Rights Watch.
É até desnecessário dizer que o cenário por ela descrito não é uma exclusividade do Rio de Janeiro, como é óbvio.
Parece evidente que o componente racial dessa guerra é um triste legado de anos e anos de escravidão, no Brasil como nos EUA, e de apartheid, no caso da África do Sul.
É necessária uma revolução cultural para cravar de fato na agenda, lá como aqui, que "vidas negras importam" –e a de policiais também.
112 de junho de 2016
Clovis Rossi, Folha de SP
Obama disse que os incidentes não são fatos isolados, mas "resultado da falta de confiança entre as forças da ordem e numerosas comunidades".
Coincide David Brown, o chefe da Polícia de Dallas, a cidade em que os policiais foram mortos: "Tudo o que sei é que é preciso acabar com essa divisão entre nossa polícia e nossos cidadãos".
Do outro lado da trincheira, desabafa o músico e compositor Zach Freshley para o sítio "Medium": "Não sei mais o que fazer. Não sei o que fazer em um mundo em que a maior ameaça a mim são pessoas que supostamente devem me proteger".
Os números dessa guerra civil disfarçada falam alto: a chance de um negro ser morto pela polícia é três vezes maior do que a de um branco.
Há um dado adicional a reforçar o ambiente bélico: apenas 13% das vítimas negras não estavam armadas. Claro que o fato de portar uma arma não torna ninguém culpado de um crime, ainda mais nos Estados Unidos, em que há tantas armas quanto cidadãos.
Mas o conhecimento desse fato predispõe o policial a atacar antes, no pressuposto de que pode vir a ser alvejado. Ou, posto de outra forma, os dois lados estão prontos para um combate, mas um deles –o dos negros– entra com o maior número de vítimas.
Horrorizado com essa guerra?
É para ficar mesmo, mas não pense que se trata de um fenômeno apenas norte-americano.
A Human Rights Watch, respeitável ONG de acompanhamento dos direitos humanos, acaba de divulgar seu relatório sobre a violência policial no Rio de Janeiro.
Só em 2015, a polícia do Rio matou 645 pessoas, das quais três quartas partes eram negras.
É o número mais alto desde 2010, quando, segundo o relatório, começou uma tendência de diminuição desse tipo de crimes –agora aparentemente interrompida.
É claro que também morrem policiais, talvez mais do que nos Estados Unidos. Porém, conforme o trabalho da HRW, para cada agente morto em serviço no Rio de Janeiro, a polícia matou 24,8 pessoas, mais do que o dobro do índice da África do Sul [outro país violento e em que o componente racial é importante] e, atenção, três vezes mais do que nos Estados Unidos.
Se há uma guerra civil disfarçada nos Estados Unidos, no Brasil, então, é pior, a julgar pelos números da Human Rights Watch.
É até desnecessário dizer que o cenário por ela descrito não é uma exclusividade do Rio de Janeiro, como é óbvio.
Parece evidente que o componente racial dessa guerra é um triste legado de anos e anos de escravidão, no Brasil como nos EUA, e de apartheid, no caso da África do Sul.
É necessária uma revolução cultural para cravar de fato na agenda, lá como aqui, que "vidas negras importam" –e a de policiais também.
112 de junho de 2016
Clovis Rossi, Folha de SP
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