O que a rainha preferia esconder se escancara, deixando à mostra suas falhas mais insanáveis
O País está farto de constatar que a rainha está nua, e não estamos falando apenas das rainhas de bateria. Aliás, a nudez das rainhas de bateria é menos óbvia, embora muito mais explícita, e se reveste de interesse público incomparavelmente superior.
O País está farto de constatar que a rainha está nua, e não estamos falando apenas das rainhas de bateria. Aliás, a nudez das rainhas de bateria é menos óbvia, embora muito mais explícita, e se reveste de interesse público incomparavelmente superior.
Nas curvas espiraladas das passistas que sorriem enquanto arrastam a sandália em passos miudinhos, temos mais a aprender sobre o nosso tempo.
Em seus braços suspensos, abertos em cálice, de onde se dependura o busto sacolejante, repousam mistérios menos chapados a desafiar a imaginação da cidadania já tão cansada de política.
Pensemos, então, sobre essas moças em apoteose rítmica, sem quase nada de roupa sobre a pele, que fizeram do próprio corpo sua fantasia mais aprimorada.
Uma delas, célebre pela pujança equatorial de sua anatomia, admitiu ter-se submetido a uma cirurgia plástica. O fato foi noticiado com destaque, naturalmente. As formas arredondadas que a enfeitam, perfeitas na combinação de seus excessos imperfeitos, não foram um presente da natureza, mas buriladas com dor e sacrifício. Nessa matéria, os sacrifícios abundam. Algumas dançarinas de Momo aderem a dietas de baixa caloria e alta penúria. Outras se torturam em sessões de musculação que nunca terminam. Existem as que tomam injeções de anabolizantes que seriam reprovados em exames antidoping e há, ainda, as que aumentam seus volumes com o préstimo de silicones mais ou menos tóxicos e de bisturis treinados para não deixar cicatrizes. Por um caminho ou por outro, essa forma de nudez se confecciona ao custo de privações e provações. É uma roupa que se veste a golpes de faca.
Outras indumentárias carnavalescas não cobram preços tão extorsivos, ainda que não saiam de graça. Há casacões multicoloridos que demandam centenas de horas de costureiras esmeradas, com pontos microscópicos de linhas invisíveis. Há maquiagens que se estendem por um dia inteiro e também requerem elevadas doses de martírio. Os adereços mais vistosos pesam algumas arrobas sobre as costas de senhoritas de aspecto frágil e são carregados feito cruzes sobre-humanas na peregrinação de requebros e cansaço. Sob qualquer ponto de vista, a exuberância dos desfiles é feita de uma carga considerável de autoflagelação e também de fé, a fé que caracteriza os mais pios pagadores de promessa. No desfile ritual das escolas, a gente assiste à sagração de amuletos pagãos forjados por uma força de vontade quase santa. Mas quando se trata de sofrimento, nenhuma beleza é tão exigente quanto essa da fantasia chamada nudez. Nenhuma é tão tirânica.
E nenhuma é tão universal. Em alguma medida, cada um de nós paga o preço dessa fantasia, com ou sem carnaval. Na batalha de fazer o pobre corpo se enquadrar nos padrões mais cruéis, padrões a que chamamos de "estéticos", há homens que depilam as costas, enquanto implantam fios novos no cocuruto desértico. O tingimento capilar tornou-se tão corriqueiro quanto a escovação dos dentes, que também requerem branqueamentos sazonais e favores de uma ortodontia que mescla ciência, tecnologia e artesanato. Cortam-se gengivas de uns, enxertam-se gengivas em outras, reformatam-se caninos e molares. Há quem arranque costelas. O aspecto físico dos senhores e das senhoras obedece às ordens de modelos que vêm de fora para dentro. Sem ter como escapar, cada um vai moldando a si mesmo segundo seu poder aquisitivo, numa mania social que transformou a cirurgia plástica num sonho de consumo. Tudo para que, ao despir-se - na praia, na Marquês de Sapucaí ou na cama, diante dos(as) amantes - a pessoa (qualquer pessoa) possa sentir-se deslumbrante no seu traje mais dispendioso: a própria nudez.
Na nossa era, em que a nudez é a fantasia mais cara, o sujeito deseja para si a forma que viu no corpo do outro. Essa moderna modalidade de feitiço - que se transmite pelo olhar e se consuma quando a humanidade se olha no espelho - não poupa ninguém. Das modelos e atrizes na passarela do samba aos rapazes viris de bíceps de fora, do funcionário público de camisa pálida ao padre de ar compungido, todos estão enfeitiçados. Os políticos dedicam boa parte de seu tempo útil a construir para si a aparência de quem não liga a mínima para aparência. Renderam-se ao mesmo feitiço.
Entre tantas fantasias que competem entre si, a nudez é a que alcança o valor mais alto. E por quê? Não é difícil entender. Ela talvez seja o primeiro e o último recurso para fugirmos da infelicidade, para escondermos o que somos, num tempo em que pouca coisa resta aos seres humanos além de perambular por aí como se desfilassem numa escola de samba em tempo integral.
Diante disso, é claro, não há o menor interesse em torno da constatação de que a rainha está nua. Sua nudez é sem graça. É uma nudez de outro tipo, ressalvemos desde logo. Sua nudez não resulta de uma sucessão milionária de cirurgias plásticas, mas da falência de todas as possíveis cirurgias políticas. Resulta da transparência involuntária e desastrosa das pompas com que ela pretendia cobrir-se. Aquilo que ela teria preferido esconder acabou se escancarando aos olhos dos súditos, deixando à mostra suas misérias, suas vulnerabilidades e suas falhas mais insanáveis.
A rainha está nua e essa é a notícia mais aborrecida que poderíamos ter. Ela está nua. E daí? Ela está nua. Que coisa mais chata.
Dizem que no Brasil o ano só começa depois do carnaval. Estão enganados. O que começa depois do carnaval é a Quaresma, esse período estranho feito de tentações acabrunhadas e de introspecções subnutridas. Portanto, ainda é cedo para dizer "feliz ano-novo".
Uma delas, célebre pela pujança equatorial de sua anatomia, admitiu ter-se submetido a uma cirurgia plástica. O fato foi noticiado com destaque, naturalmente. As formas arredondadas que a enfeitam, perfeitas na combinação de seus excessos imperfeitos, não foram um presente da natureza, mas buriladas com dor e sacrifício. Nessa matéria, os sacrifícios abundam. Algumas dançarinas de Momo aderem a dietas de baixa caloria e alta penúria. Outras se torturam em sessões de musculação que nunca terminam. Existem as que tomam injeções de anabolizantes que seriam reprovados em exames antidoping e há, ainda, as que aumentam seus volumes com o préstimo de silicones mais ou menos tóxicos e de bisturis treinados para não deixar cicatrizes. Por um caminho ou por outro, essa forma de nudez se confecciona ao custo de privações e provações. É uma roupa que se veste a golpes de faca.
Outras indumentárias carnavalescas não cobram preços tão extorsivos, ainda que não saiam de graça. Há casacões multicoloridos que demandam centenas de horas de costureiras esmeradas, com pontos microscópicos de linhas invisíveis. Há maquiagens que se estendem por um dia inteiro e também requerem elevadas doses de martírio. Os adereços mais vistosos pesam algumas arrobas sobre as costas de senhoritas de aspecto frágil e são carregados feito cruzes sobre-humanas na peregrinação de requebros e cansaço. Sob qualquer ponto de vista, a exuberância dos desfiles é feita de uma carga considerável de autoflagelação e também de fé, a fé que caracteriza os mais pios pagadores de promessa. No desfile ritual das escolas, a gente assiste à sagração de amuletos pagãos forjados por uma força de vontade quase santa. Mas quando se trata de sofrimento, nenhuma beleza é tão exigente quanto essa da fantasia chamada nudez. Nenhuma é tão tirânica.
E nenhuma é tão universal. Em alguma medida, cada um de nós paga o preço dessa fantasia, com ou sem carnaval. Na batalha de fazer o pobre corpo se enquadrar nos padrões mais cruéis, padrões a que chamamos de "estéticos", há homens que depilam as costas, enquanto implantam fios novos no cocuruto desértico. O tingimento capilar tornou-se tão corriqueiro quanto a escovação dos dentes, que também requerem branqueamentos sazonais e favores de uma ortodontia que mescla ciência, tecnologia e artesanato. Cortam-se gengivas de uns, enxertam-se gengivas em outras, reformatam-se caninos e molares. Há quem arranque costelas. O aspecto físico dos senhores e das senhoras obedece às ordens de modelos que vêm de fora para dentro. Sem ter como escapar, cada um vai moldando a si mesmo segundo seu poder aquisitivo, numa mania social que transformou a cirurgia plástica num sonho de consumo. Tudo para que, ao despir-se - na praia, na Marquês de Sapucaí ou na cama, diante dos(as) amantes - a pessoa (qualquer pessoa) possa sentir-se deslumbrante no seu traje mais dispendioso: a própria nudez.
Na nossa era, em que a nudez é a fantasia mais cara, o sujeito deseja para si a forma que viu no corpo do outro. Essa moderna modalidade de feitiço - que se transmite pelo olhar e se consuma quando a humanidade se olha no espelho - não poupa ninguém. Das modelos e atrizes na passarela do samba aos rapazes viris de bíceps de fora, do funcionário público de camisa pálida ao padre de ar compungido, todos estão enfeitiçados. Os políticos dedicam boa parte de seu tempo útil a construir para si a aparência de quem não liga a mínima para aparência. Renderam-se ao mesmo feitiço.
Entre tantas fantasias que competem entre si, a nudez é a que alcança o valor mais alto. E por quê? Não é difícil entender. Ela talvez seja o primeiro e o último recurso para fugirmos da infelicidade, para escondermos o que somos, num tempo em que pouca coisa resta aos seres humanos além de perambular por aí como se desfilassem numa escola de samba em tempo integral.
Diante disso, é claro, não há o menor interesse em torno da constatação de que a rainha está nua. Sua nudez é sem graça. É uma nudez de outro tipo, ressalvemos desde logo. Sua nudez não resulta de uma sucessão milionária de cirurgias plásticas, mas da falência de todas as possíveis cirurgias políticas. Resulta da transparência involuntária e desastrosa das pompas com que ela pretendia cobrir-se. Aquilo que ela teria preferido esconder acabou se escancarando aos olhos dos súditos, deixando à mostra suas misérias, suas vulnerabilidades e suas falhas mais insanáveis.
A rainha está nua e essa é a notícia mais aborrecida que poderíamos ter. Ela está nua. E daí? Ela está nua. Que coisa mais chata.
Dizem que no Brasil o ano só começa depois do carnaval. Estão enganados. O que começa depois do carnaval é a Quaresma, esse período estranho feito de tentações acabrunhadas e de introspecções subnutridas. Portanto, ainda é cedo para dizer "feliz ano-novo".
Quanto à Quaresma, não há como desejar que ela seja feliz. Seria impróprio. Que ela seja apenas Quaresma, sem mais qualificativos.
Que ela nos abra os olhos para uma nudez e para outra. Ambas requerem providências diferentes e igualmente difíceis.
20 de fevereiro de 2015
Eugênio Bucci, O Estado de S.Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário