"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

POR SETE DOMINGOS

França não cumpre meta de equilibrar contas. É um círculo vicioso: o governo aumenta gastos, cria benefícios que custam caro


São 48 domingos por ano, assim separados na França, por lei nacional: 43 para descanso total e cinco durante os quais o comércio pode abrir suas lojas, com horário limitado. Para um país que não cresce há anos, em que a taxa de desemprego não cai abaixo dos 10%, parece óbvio que abrir o comércio mais vezes movimenta a economia e pode gerar mais vagas de trabalho, certo?

Parece, mas não para os franceses ou para boa parte deles. Tanto é assim, que o governo do presidente François Hollande precisou recorrer a um tipo de decreto-lei para mudar a regra e determinar que as lojas podem abrir não todos, mas 12 domingos por ano. Apenas sete domingos a mais — e ainda assim foi necessário o recurso a um instrumento excepcional, decreto que se torna lei sem a aprovação da Assembleia Nacional, não utilizado há nove anos e reservado para questões, digamos, graves.

E pode haver questão mais grave do que o trabalho aos domingos? — questionaram parlamentares de diversos partidos, inclusive do Socialista, ao qual pertence o presidente Hollande. Resultado: o governo corre o risco de um voto de desconfiança por causa do tal decreto, publicado na última terça.

Claro que não são apenas sete domingos. O decreto inclui outras medidas como a redução de barreiras para a entrada em algumas carreiras (notários e farmacêuticos, por exemplo) e a liberação dos serviços de... ônibus interurbanos. Trata-se de uma agenda que cabe na categoria de liberalizante, mas, vamos reparar, é mais do que modesta — embora mais do que necessária para uma economia que sofre com estagnação e perda de competitividade, num ambiente de elevados custos tributários e trabalhistas. Pois acreditem: o debate parlamentar tomou mais de 200 horas, terminando sem a formação de uma maioria.

É verdade que a agenda vai além disso. Mas está longe de representar a destruição dos benefícios sociais e da forte proteção ao trabalho — como denunciam parlamentares da esquerda e da direita. “Abaixo a austeridade alemã" — tal é o mote.

E a resposta dos governistas é mais ou menos assim: caramba, pessoal, é preciso trabalhar um pouco mais e atrapalhar menos as empresas que querem investir e gerar emprego.

Faz parte de um futuro pacote a eliminação de uma lei que impõe a formação de comitês de trabalhadores, com poderes para arbitrar e regular, em todas as empresas com mais de 50 empregados.

Um número simples mostra o efeito contrário dessa lei: para cada empresa com 50 empregados, há duas com 49. Está na cara: muitas firmas evitam crescer para escapar de uma regra que tolhe e embaraça a atividade.

Não se pode dizer, portanto, que os problemas franceses decorram do excesso de austeridade ou de liberalismo. Há anos que a França não cumpre a meta de equilibrar as contas públicas. É um círculo vicioso: o governo aumenta os gastos, cria benefícios que custam caro (como jornada de trabalho de 34 horas e aposentadorias aos 50 anos) e depois aumenta impostos e impõe regras para obrigar as empresas a um comportamento “mais social".

Verdadeiras reformas liberalizantes foram feitas na Alemanha, isso há mais de dez anos, no governo do social-democrata Gerhard Schroder. Angela Merkel, da Democracia Cristã, que governa desde 2005, beneficiou-se do impulso econômico afinal providenciado pelas reformas que, ao contrário, haviam derrubado Schroder. Não é curioso que Merkel tenha sido eleita com um programa que, na ocasião, poderia ser chamado de antiliberal e antiausteridade?

Não é curioso que um socialista francês possa cair acusado de liberalismo e austeridade?

Não é curioso que a proposta antiliberal e antiausteridade reúna as extremas esquerda e direita?

Tudo isso para dizer o seguinte: em toda parte e toda vez que os políticos procuram maneiras de fugir de algumas verdades, o resultado é a confusão do debate e a trapaça com os eleitores.

Os governos gregos, de socialistas a conservadores, vêm tomando empréstimos e recebendo ajuda econômica de seus pares europeus há décadas. Nesse período, gastaram por conta, alimentaram déficits nas contas públicas e externas, enquanto distribuíam benefícios e vantagens para a clientela eleitoral. E agora vêm dizer que é tudo culpa da austeridade alemã.

Não há política de austeridade que seja leve. Mas também nenhum país precisa de austeridade se não tiver feito uma lambança antes. E se tiver feito, a austeridade sempre vem, por bem ou por mal, mais ou menos dolorido, conforme o tamanho da gastança anterior.

Ou alguém acha que o ministro Joaquim Levy precisaria aumentar impostos e cortar gastos se não tivesse havido a lambança anterior de Guido Mantega. Mas mesmo Levy, com toda sua autoridade e credibilidade, não conseguirá avançar se não tiver apoio e respaldo do resto do governo, a começar pela presidente Dilma, dona da política anterior.

É até mais complicado do que sete domingos.


20 de fevereiro de 2015
Carlos Alberto Sardenberg, O Globo

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