Argentina vive período de crispação política terrível; é tudo o que o Brasil não precisa importar
Era uma vez um tempo em que os argentinos --principalmente, mas também outros latino-americanos-- usavam a expressão "ruídos de sabre" para designar movimentos pré-golpistas nas Forças Armadas.
Agora que os sabres, felizmente, foram embainhados, e Deus queira que nunca mais saiam da quietude, os ruídos que se ouvem também são de golpe.
É o que está ocorrendo na Argentina como efeito colateral da marcha convocada pelos promotores para pedir o esclarecimento definitivo e cabal da morte de seu colega Alberto Nisman.
É aquele que denunciou a presidente Cristina Kirchner por, supostamente, ter participado de um esquema para encobrir a participação de agentes iranianos no atentado contra uma entidade judaica que causou 85 mortos --o maior atentado terrorista da história latino-americana.
Para os partidários da presidente, reunidos, por exemplo, no coletivo "Carta Abierta", trata-se do ato de um "partido judicial em gestação, que parece cumprir o papel desestabilizador que em outros tempos cumpriram as Forças Armadas".
Rebate, na oposição, por exemplo, o ex-deputado Fernando Iglesias, fundador do grupo "Democracia Global", que, em artigo para "La Nación", diz que o "kirchnerismo combina elementos democráticos com ditatoriais" e emenda que o caso Nisman somou a esses elementos um outro, "característico de toda ditadura: quem desafia o poder morre violentamente".
Não surpreende, pois, que o jornalista Carlos Gurovich, judeu argentino que emigrou para Israel e é produtor da TV "i24 News", compare o momento atual a um mergulho no passado, mais exatamente nos sangrentos anos 70 --anos que os sabres eram desembainhados com notável facilidade e ferocidade.
Como tenho amigos nos dois lados da guerra de ruídos, é sempre desconfortável escrever sobre a Argentina. Mas o sentido comum manda concordar com o promotor Ricardo Sáenz quando ele diz a Mariana Carneiro, desta Folha, que o que está havendo "é uma lógica de amigo e inimigo que não beneficia em nada a sociedade e muito menos o Poder Judiciário". Bingo.
Essa lógica perversa é uma criação do kirchnerismo, em especial de Cristina (Néstor era mais flexível).
Como afirma Gurovich, "Kirchner e seus acólitos não querem aceitar nenhum outro ponto de vista ou realidade que não seja a que criaram, e qualquer um que discorda é acusado de querer destruir o projeto deles para uma nova Argentina".
Como já passei faz tempo da idade da inocência, não acredito mais nem em projetos salvacionistas nem em que a oposição a eles esteja pensando apenas no bem da pátria.
Por esse ceticismo, me surpreende que o Brasil esteja importando essa dualidade "amigo/inimigo", essa ideia de que há um bando disposto a salvar a pátria contra outro que quer enterrá-la, o bem contra o mal.
Essa lógica emburrece, como se viu na recente campanha eleitoral. Lástima é que esteja persistindo mesmo depois dela.
O país já tem problemas demais para agregar a eles uma crispação política absurda.
Era uma vez um tempo em que os argentinos --principalmente, mas também outros latino-americanos-- usavam a expressão "ruídos de sabre" para designar movimentos pré-golpistas nas Forças Armadas.
Agora que os sabres, felizmente, foram embainhados, e Deus queira que nunca mais saiam da quietude, os ruídos que se ouvem também são de golpe.
É o que está ocorrendo na Argentina como efeito colateral da marcha convocada pelos promotores para pedir o esclarecimento definitivo e cabal da morte de seu colega Alberto Nisman.
É aquele que denunciou a presidente Cristina Kirchner por, supostamente, ter participado de um esquema para encobrir a participação de agentes iranianos no atentado contra uma entidade judaica que causou 85 mortos --o maior atentado terrorista da história latino-americana.
Para os partidários da presidente, reunidos, por exemplo, no coletivo "Carta Abierta", trata-se do ato de um "partido judicial em gestação, que parece cumprir o papel desestabilizador que em outros tempos cumpriram as Forças Armadas".
Rebate, na oposição, por exemplo, o ex-deputado Fernando Iglesias, fundador do grupo "Democracia Global", que, em artigo para "La Nación", diz que o "kirchnerismo combina elementos democráticos com ditatoriais" e emenda que o caso Nisman somou a esses elementos um outro, "característico de toda ditadura: quem desafia o poder morre violentamente".
Não surpreende, pois, que o jornalista Carlos Gurovich, judeu argentino que emigrou para Israel e é produtor da TV "i24 News", compare o momento atual a um mergulho no passado, mais exatamente nos sangrentos anos 70 --anos que os sabres eram desembainhados com notável facilidade e ferocidade.
Como tenho amigos nos dois lados da guerra de ruídos, é sempre desconfortável escrever sobre a Argentina. Mas o sentido comum manda concordar com o promotor Ricardo Sáenz quando ele diz a Mariana Carneiro, desta Folha, que o que está havendo "é uma lógica de amigo e inimigo que não beneficia em nada a sociedade e muito menos o Poder Judiciário". Bingo.
Essa lógica perversa é uma criação do kirchnerismo, em especial de Cristina (Néstor era mais flexível).
Como afirma Gurovich, "Kirchner e seus acólitos não querem aceitar nenhum outro ponto de vista ou realidade que não seja a que criaram, e qualquer um que discorda é acusado de querer destruir o projeto deles para uma nova Argentina".
Como já passei faz tempo da idade da inocência, não acredito mais nem em projetos salvacionistas nem em que a oposição a eles esteja pensando apenas no bem da pátria.
Por esse ceticismo, me surpreende que o Brasil esteja importando essa dualidade "amigo/inimigo", essa ideia de que há um bando disposto a salvar a pátria contra outro que quer enterrá-la, o bem contra o mal.
Essa lógica emburrece, como se viu na recente campanha eleitoral. Lástima é que esteja persistindo mesmo depois dela.
O país já tem problemas demais para agregar a eles uma crispação política absurda.
20 de fevereiro de 2015
Clóvis Rossi, Folha de SP
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