No dia 11 de março de 1967, nascia em Niterói meu filho Renato e eu, inocente e amarrado ao aqui e agora, ouvia, na aldeia de Mariazinha dos índios apinaiés, a narrativa que segue, contada pelo meu guia e amigo Aldírio, um sertanejo semianalfabeto que foi o homem mais talentoso que jamais conheci.
E olha que eu conheci muita gente de talento e pelo menos dois gênios, um santo indubitável, bem como um f.d.p. absolutamente autêntico e profissional. Coisa tão rara de encontrar quanto uma alma verdadeiramente pura.
Mas eram todos especializados, ao passo que o Aldírio caçava, lidava com animais e motores, guiava-me pelo sertão arenoso de Goiás, chamava os índios de senhor e senhora, fabricava tamboretes e tinha premonições - ele me disse que alguma coisa importante estava acontecendo comigo naquele 11 de março.
Foi dele que ouvi essa história: "Há uma região desconhecida nas matas do rio Araguaia onde habitam enormes macacos orangotangos muito parecidos com o homem. Um dia, uma moça foi roubada por um desses macacos e com ele conviveu. Tiveram um filho monstruoso: uma mistura de mulher com macaco. Numa das vezes em que o orangotango saiu para caçar, a raptada ouviu o barulho de um motor. Chamou pelo barco, contou o que lhe havia acontecido e pediu que a tirassem dali. Quando o barco se afastava para a margem segura do rio, porque os macacos não sabiam nadar, ouviram um urro horripilante. Olhando para trás, viram o orangotango chamando a mulher com gestos desesperados. Os homens perguntaram se ela queria voltar, mas a moça mandou que se afastassem. Viram, então, que o bicho foi à cabana e de lá saiu com o menino nos braços. Acenou com a criança, mas vendo que nem assim a mulher voltava, ele tomou a criancinha pelas pernas e a rasgou ao meio. De longe, todos viram o sangue do inocente batizar o corpo peludo do orangotango".
Gravei o relato e, dias depois, recebi a notícia do nascimento do meu filhinho. Vivi as angústias inesperadas sobre as quais antropólogos profissionais nada dizem nos seus livros, pois nas ditas "ciências sociais" não cabem saudade ou amor, objetos da literatura e do romance.
Alguns anos depois, encontrei na página 47 do livro de Afonso Arinos de Mello Franco O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa, publicado em 1937 pela José Olímpio Editora, a seguinte história:
"(...) conta Jean Mocquet (no livro 'Voyages en Afrique, Asie, Indes Orientales et Ocidentales', Paris, 1616) uma história dramática que procura estabelecer um paralelo entre a fidelidade amorosa de um índia e a falta de sentimentos de um suposto civilizado, no caso um inglês por quem se apaixonou uma jovem filha da terra, e a qual o 'bárbaro branco' (como os índios costumavam chamar os ingleses), prometia sempre uma indissolúvel ligação. Juntos habitavam, juntos viajavam longamente. Chegados a um porto onde se encontrava um navio inglês, nele embarcou o branco, tendo vergonha de levar consigo sua companheira. Furiosa e abandonada, a pobre, que teria sido capaz de morrer mil vezes pelo ingrato, pegou o filhinho que também era dele, despedaçou o corpinho tenro com uma sanha feroz e atirou metade do cadáver ao mar, em direção ao navio, enquanto apertava, soluçando com o resto sangrento que lhe ficara entre as mãos. Como os marinheiros perguntaram ao inglês o que significava aquela cena horrenda, este se limitou a dizer que a mulher era uma selvagem e que o caso não merecia nenhuma atenção".
Fiquei tonto com essa prova de como as relações de afinidade - os casamentos entre seres diferenciados e seus rebentos se repetem em variantes trágicas, com significativas permutações de papéis e funções.
Se o leitor achar que isso não tem nada a ver com o Brasil, pense em substituir o orangotango pelo governo (que já foi gorila), a moça pelos santos ativistas ou pelo povo inocente; e as grandes empresas, como a Petrobrás, pela criança - fruto de uma aliança matrimonial impossível entre as demandas democráticas e o poder pelo poder que, na sua hipocrisia, vai além do que pode presumir a nossa moralidade.
E olha que eu conheci muita gente de talento e pelo menos dois gênios, um santo indubitável, bem como um f.d.p. absolutamente autêntico e profissional. Coisa tão rara de encontrar quanto uma alma verdadeiramente pura.
Mas eram todos especializados, ao passo que o Aldírio caçava, lidava com animais e motores, guiava-me pelo sertão arenoso de Goiás, chamava os índios de senhor e senhora, fabricava tamboretes e tinha premonições - ele me disse que alguma coisa importante estava acontecendo comigo naquele 11 de março.
Foi dele que ouvi essa história: "Há uma região desconhecida nas matas do rio Araguaia onde habitam enormes macacos orangotangos muito parecidos com o homem. Um dia, uma moça foi roubada por um desses macacos e com ele conviveu. Tiveram um filho monstruoso: uma mistura de mulher com macaco. Numa das vezes em que o orangotango saiu para caçar, a raptada ouviu o barulho de um motor. Chamou pelo barco, contou o que lhe havia acontecido e pediu que a tirassem dali. Quando o barco se afastava para a margem segura do rio, porque os macacos não sabiam nadar, ouviram um urro horripilante. Olhando para trás, viram o orangotango chamando a mulher com gestos desesperados. Os homens perguntaram se ela queria voltar, mas a moça mandou que se afastassem. Viram, então, que o bicho foi à cabana e de lá saiu com o menino nos braços. Acenou com a criança, mas vendo que nem assim a mulher voltava, ele tomou a criancinha pelas pernas e a rasgou ao meio. De longe, todos viram o sangue do inocente batizar o corpo peludo do orangotango".
Gravei o relato e, dias depois, recebi a notícia do nascimento do meu filhinho. Vivi as angústias inesperadas sobre as quais antropólogos profissionais nada dizem nos seus livros, pois nas ditas "ciências sociais" não cabem saudade ou amor, objetos da literatura e do romance.
Alguns anos depois, encontrei na página 47 do livro de Afonso Arinos de Mello Franco O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa, publicado em 1937 pela José Olímpio Editora, a seguinte história:
"(...) conta Jean Mocquet (no livro 'Voyages en Afrique, Asie, Indes Orientales et Ocidentales', Paris, 1616) uma história dramática que procura estabelecer um paralelo entre a fidelidade amorosa de um índia e a falta de sentimentos de um suposto civilizado, no caso um inglês por quem se apaixonou uma jovem filha da terra, e a qual o 'bárbaro branco' (como os índios costumavam chamar os ingleses), prometia sempre uma indissolúvel ligação. Juntos habitavam, juntos viajavam longamente. Chegados a um porto onde se encontrava um navio inglês, nele embarcou o branco, tendo vergonha de levar consigo sua companheira. Furiosa e abandonada, a pobre, que teria sido capaz de morrer mil vezes pelo ingrato, pegou o filhinho que também era dele, despedaçou o corpinho tenro com uma sanha feroz e atirou metade do cadáver ao mar, em direção ao navio, enquanto apertava, soluçando com o resto sangrento que lhe ficara entre as mãos. Como os marinheiros perguntaram ao inglês o que significava aquela cena horrenda, este se limitou a dizer que a mulher era uma selvagem e que o caso não merecia nenhuma atenção".
Fiquei tonto com essa prova de como as relações de afinidade - os casamentos entre seres diferenciados e seus rebentos se repetem em variantes trágicas, com significativas permutações de papéis e funções.
Se o leitor achar que isso não tem nada a ver com o Brasil, pense em substituir o orangotango pelo governo (que já foi gorila), a moça pelos santos ativistas ou pelo povo inocente; e as grandes empresas, como a Petrobrás, pela criança - fruto de uma aliança matrimonial impossível entre as demandas democráticas e o poder pelo poder que, na sua hipocrisia, vai além do que pode presumir a nossa moralidade.
13 de agosto de 2014
Roberto DaMatta, O Estadão
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