"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

GASTO PÚBLICO ERRADO

O Brasil é um país onde, historicamente, nos três níveis de governo, houve irregularidades aos borbotões

No delicioso documentário sobre Vinicius de Moraes, que passou no cinema há uns 3 anos, há uma anedota contada por Chico Buarque, referente à época em que o poetinha ganhava a vida fazendo shows, muitos deles no exterior, quando Chico estava no exílio. Ele foi ver o show do amigo, que, com sua graça particular, começou a contar uma história que fazia a plateia gargalhar sem parar. No meio desse processo, lacrimejando de tanto rir, mas sem captar uma palavra do que o Vinícius dizia numa mistura ininteligível de italiano, português e inglês, um italiano se vira para o Chico e pergunta: “Bravissimo, ma scusi, che língua parla?” (“Espetacular, mas, me desculpe: que língua é essa?”).

Sempre me lembro da frase quando acompanho o debate sobre a “gastança”. Em relação a isto, a crítica de certa forma une tanto a chamada “direita” como a “esquerda”. A primeira tende a considerar que há um processo populista em curso e que um governo mais comprometido com a austeridade poderia rapidamente reduzir a relação entre o gasto público e o PIB. A segunda, por sua vez, tende a considerar que o gasto vai para os “os ricos”, “a elite” ou “os privilegiados”, em vez de ser direcionada para “nós, o povo”.

Somando-se a crítica à “gastança”, quem se deixa levar por esses argumentos toscos se assemelha ao italiano da anedota diante do show do Vinicius: aplaude o argumento, mas não consegue entender o que se passa.

O drama do gasto público é que o pressuposto da crítica — de que o dinheiro está sendo desviado para fins escusos — está equivocado. O Brasil é um país onde, historicamente, nos três níveis de governo, houve irregularidades aos borbotões. Basta ler qualquer jornal. Na época do Getúlio, nos anos JK, com os militares ou nos governos civis que se seguiram, na União, no estado A ou no município B, em qualquer ano ou instância de governo, com o partido X ou Y, qualquer historiador terá material para encher páginas e páginas com os escândalos de cada época. Entretanto, quando se tenta entender por que o gasto primário federal passou de 13,7% do PIB em 1991 para 22,8% do PIB em 2013, não são os escândalos que explicam isso. São todas coisas que estão diante de nosso nariz — e o país teima em não enxergar. A “gastança” é fruto de decisões tomadas com o beneplácito da grande maioria dos parlamentares — quando não da própria população — que, tempos depois, revela o seu impacto financeiro em toda a sua plenitude, com escasso efeito sobre a melhoria de bem-estar do país. É por esse tipo de coisas que, no fim da vida, exasperado pelos absurdos recorrentes década após década em matéria econômica, Roberto Campos concluía que “a burrice nacional não associa o efeito com as causas”.

Um esclarecimento: a despesa federal com pessoal ativo era de 2,7 % do PIB em 1991 — e caiu para 2,3 % do PIB em 2013. O cidadão tem todo o direito de achar que há muitas repartições onde sobra gente, mas, se pagamos mais impostos hoje do que há 20 anos, não é porque há mais gente trabalhando nos ministérios: o peso relativo dessa conta caiu.

O que foi que aumentou? Três coisas. A primeira, as despesas com benefícios do INSS, de 3,4% do PIB em 1991 e de 7,4% do PIB em 2013 — e os aposentados se queixam de abandono. A segunda, as transferências a estados e municípios, que passaram de 2,7% para 3,9% do PIB nesse período — e governadores e prefeitos vivem de pires na mão. E a terceira, o gasto com o “OCC”, as “outras despesas de custeio e capital”, que pularam de 3,9% para 7,3% do PIB nesses 22 anos. Nessa rubrica, há desde o justificado Bolsa Família, inexistente no passado e que hoje consome em torno de 0,6% do PIB, até o inacreditável gasto com seguro-desemprego de 0,5% do PIB em 2003 quando o desemprego do país era de 12% e de 0,9% hoje, quando o desemprego é da ordem de 5%, no que talvez seja um dos melhores exemplos da incúria nacional, passando pelo aumento das despesas da Lei Orgânica da Assistência Social. No dia em que “gestão” deixar de ser bordão de marqueteiro, será preciso fazer um raio X das contas públicas para verificar a quantidade de recursos que estão sendo gastos de forma torpe, na frente de nosso nariz, como se fosse a coisa mais natural do mundo. É tarefa para estadista.



11 de junho de 2014
Fábio Giambiagi, O Globo

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