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A relação entre Norman Mailer e Jack Abbott, o
presidiário-escritor
por ALEJANDRO CHACOFF
Em O Dorminhoco, ficção científica dirigida
por Woody Allen, há um momento em que o protagonista, interpretado pelo próprio
diretor, diz a um cientista: “Norman Mailer doou seu ego para a Escola de
Medicina de Harvard.” Se houvesse um critério oficial para definir um passaporte
nova-iorquino, acho que seria esse: ser alvo de uma piada de Woody Allen. Em
1973, quando o filme foi lançado, Mailer já era Mailer. Mulherengo, briguento,
falastrão, bebum – com um time de adoradores e outro, igualmente forte, de
inimigos. Depois do sucesso de seu primeiro romance, Os Nus e os
Mortos, em 1948, o escritor havia publicado livros, ensaios, reportagens,
biografias, filmes, entrevistas. Com Joan Didion, Tom Wolfe e Truman Capote, era
uma das principais figuras do novo jornalismo americano, movimento influente que
acolhia e incentivava o uso da subjetividade e técnicas de narrativa ficcional
em textos jornalísticos. Em 1969, Mailer havia concorrido à prefeitura de Nova
York. Sua campanha tinha como plataforma a secessão da cidade, que constituiria
o 51º estado da União. Perdeu feio, mas até alguns de seus detratores passaram a
admirá-lo.
Mailer gostava de cartas. Quando conversei com seu biógrafo oficial e amigo
de toda a vida, J. Michael Lennon, em março passado, ele me disse que havia em
torno de 45 mil cartas no acervo do escritor. Lennon está selecionando a
correspondência para um livro a ser lançado pela editora Random House ainda este
ano. Das cartas que li, minha preferida é um bilhete que enviou a seu ídolo de
juventude, Ernest Hemingway, em junho de 1955.Mailer tinha acabado de terminar seu terceiro romance, Parque dos Cervos, e resolveu mandar o manuscrito a Hemingway, acrescentando as seguintes linhas: “Porque finalmente, após todos esses anos, estou profundamente curioso para saber o que você acha disso. Mas se não me responder, ou se responder com o tipo de baboseira que dirige a escritores que não são profissionais, a charlatões, puxa-sacos etc., então vai se foder, e eu nunca mais vou tentar entrar em contato com você. E como suspeito que você seja até mais vaidoso do que eu, já vou avisando que na página 353 há uma referência a sua pessoa, que você pode ou não gostar.”
Hemingway nunca recebeu o pacote. Na época ele vivia em Cuba, e a correspondência retornou ao remetente dez dias depois de enviada, com o carimbo “NÃO ENTREGUE”. Mas nem por isso Mailer desistiu de escrever cartas. Segundo Lennon, no começo da carreira Mailer havia recebido uma força de escritores como Sinclair Lewis e John dos Passos, e sentia a mesma obrigação moral em relação aos mais jovens. “Se você fosse uma pessoa séria, dedicada, e decidisse enviar uma carta a Norman Mailer, havia boas chances de receber uma resposta”, disse o biógrafo. “Lembro que ele se correspondia com garotos do Texas de 16 anos, que mandavam contos pelo correio. E, no leito de morte, ele ajudou uma enfermeira que queria ser escritora.”
Durante boa parte da década de 70, Mailer trabalhou no livro que viria a ser a sua obra-prima, A Canção do Carrasco, um catatau de mil páginas que em 1980 lhe valeu um prêmio Pulitzer. O livro conta a história de Gary Gilmore, um detento do estado de Utah que ganhou fama por exigir o direito de ser executado, após uma série de decisões judiciais ameaçarem atrasar sua punição. Para entender a história de Gilmore, Mailer coletou milhares de entrevistas com familiares e amigos do condenado, e empreendeu uma longa pesquisa sobre a vida carcerária. O livro foi um marco. Estilisticamente, Mailer evitou as intromissões de seu ego e fez uso de uma prosa seca para contar a história. Junto com A Sangue Frio, de Truman Capote, A Canção do Carrascos e transformou num dos maiores romances de não ficção, estudado hoje tanto em cursos de literatura como de jornalismo.
Ao longo de sua pesquisa, o escritor recebeu farta correspondência de outros presos. Norris Church Mailer – a mais duradoura das seis mulheres de Norman Mailer – conta em suas memórias, A Ticket to the Circus, que as cartas eram todas parecidas: “Por que você está gastando tanto tempo com aquele bosta do Gilmore se a minha história é muito melhor?”
Em fevereiro de 1978, chegou a Mailer a carta de um sujeito chamado Jack Henry Abbott. Em princípio, não diferia muito das outras. Abbott havia descoberto que Mailer estava escrevendo sobre Gilmore e queria ajudá-lo a entender como era a vida na prisão. Aos 11 anos, fora enviado a uma instituição penal para menores e, desde então – com exceção de algumas saídas breves e uma fuga –, sempre retornava à cadeia. Abbott era o que ele próprio definia como um state-raised convict – um detento criado pelo Estado. Na época, cumpria pena na penitenciária de Marion, no estado de Illinois, uma prisão construída para substituir Alcatraz.
O que chamou a atenção do escritor foi a qualidade da prosa do detento. Anos depois, Mailer diria que a primeira carta que recebeu de Abbott foi “intensa, direta, sem firulas”, que o rapaz tinha “uma voz única”. Lennon me contou que ninguém escreveu tanto a Mailer como Jack Henry Abbott: ao todo, são mais de 2 mil páginas, hoje guardadas no centro de pesquisa Harry Ransom, na Universidade do Texas, em Austin. As cartas e as descrições de Abbott – a relação com os guardas, os códigos na prisão, a experiência na solitária – foram fundamentais para Mailer completar sua obra. No fim de 1979, quando o livro foi lançado, Lennon, então professor na Universidade de Illinois em Springfield, foi buscar Mailer no aeroporto e o levou até a penitenciária de Marion. O escritor queria dar um exemplar para Abbott, em agradecimento; era também a primeira vez que os dois se encontrariam. O professor esperou o amigo em um corredor vigiado por guardas. Quando Mailer saiu da sala, depois de uma hora de conversa, ele ainda estava com o livro. Não o deixaram entregar ao preso. Mais tarde, entre um drinque e outro, Mailer confessou que havia gostado muito de Jack.
A correspondência entre os dois durou muitos anos. Quanto mais Abbott o impressionava com sua prosa, mais Mailer se sentia no dever de divulgar suas habilidades literárias. No começo de 1980, Robert B. Silvers, cofundador e editor da New York Review of Books (cargo que mantém até hoje), resolveu publicar algumas das cartas na revista. Jason Epstein, editor-chefe da Random House, mostrou a página a Erroll McDonald, outro editor da casa. “O que me tocou foi a voz dele”, McDonald me disse quando conversamos na sede da editora, um prédio luxuoso, mas de fachada discreta, na Broadway. “Não sabia que tipo de livro surgiria dali, mas era evidente o talento literário daquele cara.”
McDonald é um homem negro, magro e de careca lisa, que não aparenta seus 60 anos. Hoje é um dos principais editores do grupo Penguin Random House. No começo da década de 80, então um jovem em ascensão no meio literário nova-iorquino, depois de consultar Epstein, ele decidiu publicar as cartas de Abbott. Assim como Mailer, o editor foi várias vezes à penitenciária para combinar detalhes práticos da publicação. Determinaram que McDonald selecionaria as cartas, com o escopo de criar uma espécie de narrativa fragmentada. “Meu trabalho foi praticamente copiar e ordenar as cartas, e depois mostrei o conjunto a Norman”, ele disse. “A questão era descobrir quais cartas combinavam com quais. Naturalmente, a qualidade dos textos variava.” E concluiu: “A publicação de livros de correspondência costuma interessar por motivos documentais. Nós queríamos que o de Abbott tivesse um certo momentum narrativo.”
In the Belly of the Beast: Letters from Prison foi lançado no outono de 1981 e conquistou imediato sucesso de crítica e de público. Saíram resenhas positivas nos principais jornais e revistas do país: The New York Times, Time, The Washington Post, The Los Angeles Times. Parecia um milagre que alguém que passara a vida na cadeia pudesse escrever tão bem. Para além das descrições cruas da violência cometida e sofrida por Abbott, o livro também discorre sobre as posições políticas e filosóficas do autor, suas leituras, os efeitos psicológicos do confinamento solitário. Abbott argumenta – muitas vezes convincentemente – que o sistema carcerário parece ter como premissa a não reabilitação dos detentos. No prólogo, Mailer afirma que Abbott “escreve como o diabo”, e que “é um intelectual, um radical, um líder em potencial”. Em 1981 todos pareciam concordar.
Jack Henry Abbott nasceu em 1944, nos estertores da Segunda Guerra Mundial, em Oscoda, uma cidadezinha no interior do estado de Michigan. Filho de uma prostituta chinesa e de um soldado americano, viveu a infância saltando de um orfanato para outro. Aos 11 anos foi internado na Utah State Industrial School, um instituto de correção para menores. Lá passou vários anos. Pouco depois de completar 18, Abbott assaltou uma loja de sapatos e roubou alguns cheques. Foi então sentenciado a cinco anos de prisão na penitenciária do estado de Utah. Em 1965, esfaqueou e matou um detento, e teve sua pena aumentada. Em 13 de março de 1971, fugiu da cadeia e roubou um banco em Denver. Foi detido no mês seguinte e condenado a mais dezenove anos de prisão. Após muitas transferências, algumas por questões disciplinares, em 1979 finalmente acabou indo parar na penitenciária de Marion. Durante todo esse tempo, sua irmã Frances Amador lhe enviava livros. De autores como Kierkegaard, Schopenhauer, Spinoza, Melville, Marx.
Em 1980, enquanto corriam os trâmites do lançamento de seu livro, Abbott foi convocado para uma audiência na qual seria discutida sua liberdade condicional. Foi então transferido de volta a Utah para se apresentar ao comitê disciplinar que decidiria seu destino. No sistema carcerário americano, permite-se que pessoas próximas ao detento enviem cartas de recomendação ao comitê, em geral provando que ele pode se sustentar e ter uma vida digna fora da cadeia. Norman Mailer escreveu ao comitê de Utah dizendo precisar de um assistente literário, e que Abbott teria esse emprego caso a liberdade condicional lhe fosse concedida; além disso, o escritor argumentou que Abbott tinha talento suficiente para seguir uma carreira literária própria. McDonald, Silvers e Scott Meredith, então agente literário do escritor, também escreveram ao comitê para ressaltar o potencial literário do presidiário.
Certa manhã de sábado do verão de 1981, McDonald recebeu uma ligação em casa. Era Jack Abbott; ele estava em Nova York e queria marcar um café. “Foi um choque saber que ele estava fora da prisão”, McDonald me disse. “Norman não tinha contado que ele estava prestes a sair.” O editor e Abbott se encontraram aquela manhã num café no bairro do Upper East Side, e depois foram caminhar um pouco pelo Central Park.
A experiência de viver em Nova York depois de passar a vida preso abalou Abbott. “Naquela manhã no Central Park ele ficou chocado ao ver mulheres de shorts correndo perto do lago”, McDonald lembrou. “Ele começou a fazer um discurso moralizante, disse que acha-va aquilo nojento. Depois fomos até a loja da Macy’s para comprar algumas roupas, e lá ele se irritou com a demora em conseguir uma calça.” Na segunda-feira seguinte, Mailer, McDonald e Abbott almoçaram num restaurante chinês. O ex--detento foi morar em uma halfway house– um tipo de centro voluntáriopara reabilitação de viciados em drogas e presidiários – no bairro do East Village.
Embora McDonald visse Abbott de vez em quando para discutir a publicação do livro, eles não se frequentaram muito. A família Mailer ficou responsável pela adaptação de Abbott à sua nova vida. O escritor o apresentou a muitos amigos intelectuais, incluindo o filósofo francês Jean Malaquais. Malaquais e Abbott simpatizaram um com o outro logo de cara, graças a afinidades políticas. Parte da empatia entre Mailer e Abbott provinha da admiração mútua por Marx – no prólogo de In the Belly of the Beast, Mailer chega a mencionar a similaridade física entre Lênin e o autor –, mas as posições de Abbott eram muito mais radicais que as de seu mentor. “Mailer queria refinar o pensamento político de Abbott”, Lennon me disse. “Indicava leituras para ele: sugeriu o Talmude e O Capital, entre outros. Ele via potencial intelectual em Abbott, mas também achava que ele tinha uma visão muito simplória do socialismo.”
Já Malaquais era tão radical quanto Abbott. Em suas memórias, Norris Church Mailer descreve um jantar em Nova York em que estavam presentes, além dela e do marido, Abbott, Malaquais, o escritor Dotson Rader e Pat Lawford, irmã do presidente John F. Kennedy. Num determinado momento, Malaquais começou a criticar os Estados Unidos e Abbott subiu o tom, lançando um clichê para atacar o país: “É um buraco do inferno fascista, governado por porcos.” Pat Lawford e Abbott começaram a discutir, até que ela lhe dirigiu outro clichê: “Se você odeia tanto a América, então por que não vai embora?” Abbott respondeu que bem que queria ir para Cuba. Pat, cujo irmão tivera na invasão militar à Baía dos Porcos sua maior derrota política, disse que a ideia era ótima, e que ela até lhe pagaria o bilhete – mas só de ida.
Passagens semelhantes, em que a retórica política de Abbott lembra o fervor de um adolescente recém-apresentado às ideias marxistas, pululam no livro In the Belly of the Beast. Abbott também tem a mania pueril de desprezar categoricamente certos filósofos – ele nutre um desgosto particular por Jean-Paul Sartre, o que não deixa de ser irônico, uma vez que Sartre, assim como Mailer, ajudou a promover o potencial literário de um detento – no caso do francês, o dramaturgo Jean Genet. Mas o livro apresenta pontos fortes, com argumentos complexos e momentos hipnóticos. Abbott é intenso e preciso quando descreve os efeitos psicológicos do confinamento solitário e de certas drogas (Prolixin, Haldol, Melleril). Sua análise das relações entre detentos e guardas é esclarecedora. Mesmo quando discorre sobre política, ele por vezes é surpreendentemente sutil: ao evocar o gosto dos comunistas pela saúde e disciplina corporal, faz observações a respeito de pontos comuns entre a direita e a esquerda – convergência que, naquele clima de Guerra Fria, poucos estavam dispostos a aventar.
In the Belly of the Beast é, antes de tudo, um livro profundamente desigual, uma obra que alterna momentos sublimes e banais. Quando perguntei a McDonald se havia certa mão editorial nesse desequilíbrio, ele negou: “É um reflexo de quem ele era: às vezes fazia comentários infantis, às vezes profundos. Não houve nenhuma intenção de criar uma persona.” Outros trechos são mais difíceis de definir. A certa altura, Abbott diz: “Americanos que se chocam e sentem repulsa por assassinatos sem sentido ou crimes de extrema violência reagem como uma puta velha e arrombada que se indigna em relação à ideia de sexo antes do casamento.”
Se saísse da caneta de algum jovem estudante de escrita criativa, essa passagem soaria falsa ou no máximo engra-çada pelo uso da metáfora sexual. Na pena de um detento que passou a vida enfrentando e cometendo abusos físicos e psicológicos, o texto ganha em força.
É impossível ler esse parágrafo sem sentir certa culpa voyeurística. Afinal, por qual outra razão, senão um interesse mórbido, alguém lê um livro como esse?
Mailer mesmo muitas vezes foi acusado de celebrar a violência, com a qual sua relação não era só teórica ou ficcional. Ele praticava boxe e era famoso por se envolver em brigas quando bebia demais. Foi um protótipo mais avançado e exagerado do “escritor machão” que surgira com Hemingway. O incidente mais trágico em que se viu envolvido ocorreu em 1960, quando esfaqueou sua segunda mulher, Adele Morales, depois de uma briga conjugal numa festa. Ela levou duas facadas, uma nas costas e outra perto do coração, mas sobreviveu. Antes de morrer, Mailer contou a Lennon que estava bêbado e chapado naquela noite. Adele às vezes exibia a enorme cicatriz a amigos do casal.
McDonald não foi o único a reparar no estranhamento que Abbott experimentava com a vida em Nova York. Norris Church Mailer conta que ele lhe ligava quase todo dia, e ela o ajudava em tarefas cotidianas, como comprar pasta de dente ou roupa. O ex-detento não gostava da halfway house em que estava instalado. Sempre reclamava que algum outro hóspede lhe tinha roubado os sapatos ou as calças. Abbott tampouco assimilava o jeito brusco dos nova-iorquinos. Certa vez, um guarda em frente ao Metropolitan Museum pediu que ele apagasse o cigarro. Na cadeia, tal ato seria considerado desrespeitoso, e Abbott encarou o guarda até que Norris lhe avisou que aquilo não era pessoal: ninguém podia fumar dentro do museu.
Logo após a publicação do livro de Abbott, organizaram um jantar no Green-wich Village para celebrá-lo. “Naqueles tempos, não eram raros os jantares editoriais”, comentou McDonald com um sorrisinho levemente irônico. “Quero deixar claro que tomamos o vinho branco mais barato que havia no restaurante, não pedimos champanhe.” O comentário diz respeito aos boatos que circularam na imprensa americana, que descreveu o jantar como um banquete dionísico. Além do editor, estavam presentes naquela noite Abbott, Silvers, Epstein, Norman e Norris Mailer, Scott Meredith, o autor polonês-americano Jerzy Kosinski – que também trocara correspondência com Abbott anos antes – e alguns sujeitos do departamento de divulgação da Random House.
Na noite de 17 de julho de 1981, poucas semanas depois do jantar, Abbott saiu para dançar. Por volta das cinco da manhã, resolveu passar no Binibon, um café a uma quadra e meia da halfway house onde morava. Naquela noite, ele estava acompanhado de duas mulheres: Susan Roxas, uma estudante universitária filipina, e a francesa Veronique de St. Andrés. Os três entraram no restaurante, sentaram e imediatamente chamaram o garçom; estavam com fome e queriam um café da manhã. Quando examinavam o cardápio, as mulheres perceberam que Abbott e o garçom começaram a se desentender. Os dois saíram e continuaram o bate-boca na calçada.
O garçom era Richard Adan, um cubano-americano de 22 anos. Adan não era só garçom – era também o gerente noturno do estabelecimento e genro do proprietário, além de aspirante a ator e dramaturgo. A discussão havia começado porque Abbott teria pedido para ir ao banheiro e o outro não havia permitido, alegando que o uso do toalete só era permitido a funcionários. Abbott não gostou. Os dois discutiram na calçada por um tempinho, até que Abbott sacou uma faca. Ele a enfiou no peito de Adan, num golpe certeiro, sem tempo para rea-ção. Após agonizar por alguns minutos, o garçom morreu estirado na sarjeta. De acordo com o testemunho de Susan Roxas à corte de Manhattan, Abbott teria voltado à porta do restaurante e gritado: “Vamos embora! Acabei de matar um homem.” Quando as duas saíram do local, já do lado de fora, Abbott lhes disse: “Vocês não me conhecem.”
Naquela mesma manhã, antes que o crime fosse divulgado, o New York Times publicava a resenha de In the Belly of the Beast. Em texto elogioso, Terrence des Pres descrevia o livro como “brilhante, incrível, perversamente original [...] de um impacto definitivo”.
Nova York não é mais a mesma: é o que dizem por aqui. O Greenwich Village já não é mais o que era. Jack Kerouac e Lou Reed não estão mais entre nós. Foram substituídos por banqueiros e modelos – todos com o olhar fixo no smartphone ou em algum ponto vago do horizonte. Os cafés ainda preservam certo ar boêmio, mas até isso parece um pouco artificial – uma espécie de homenagem a uma essência passada. Lembro-me sempre de um comentário de Fran Lebowitz (uma espécie de Oscar Wilde nova-iorquina, que ganha a vida dando palestras e destilando aforismos) quando ando pelo bairro: “Por uma razão ou outra, você pode ou não gostar de gente endinheirada. Mas não dá para dizer que um lugar onde só tem gente endinheirada seja fascinante. Não é.”
Se ainda existe uma Nova York antiga, embora não necessariamente nostálgica, ela está na rua East 3rd, número 8. Ali fica o Project Renewal, o centro de reabilitação em que Abbott viveu em 1981 e que visitei numa tarde de março. Na frente do prédio, um grupo de oito ou nove homens, muitos deles tatuados, alguns usando bandanas e bonés, olhava furtivamente para o lado e fumava. Às vezes soltavam um ou outro palavrão, sempre de forma lacônica. O asfalto e a calçada estavam cobertos de maços de cigarro e de pacotinhos azuis cujas embalagens continham um símbolo parecido com uma tatuagem tribal.
Na entrada do prédio, um cartaz apregoava uma mensagem cristã sobre assumir as próprias fraquezas. Entrei na longa fila do detector de metais. Quando chegou a minha vez, um homem alto e negro, corpulento e de cavanhaque ralo, começou a me revistar. Pediu que eu esvaziasse os bolsos.
Em meio à revista, ele perguntou: “Você está internado aqui?” Como se já soubesse da resposta, deu um leve sorriso e notei que lhe faltavam alguns dentes. Outras pessoas em volta assistiam a nossa performance: elas também pareciam saber que eu não pertencia ao lugar. Em voz baixa, expliquei que estava pesquisando a vida de um ex-paciente deles. O rapaz educadamente disse que para esses assuntos eu precisava falar com o dr. Johnson. Na mesma hora, um homem – negro, baixo e gordinho, de olhos esbugalhados – que estava nos observando de uma cadeira próxima pulou e gritou na minha cara: “Eu sou o dr. Johnson! Eu sou o dr. Johnson!”
Ele não era o dr. Johnson. Mas depois disso não desgrudou mais e me acompanhou até o verdadeiro dr. Johnson, um senhor negro de bigode bem aparado e camisa social que estava sentado numa sala anexa. Enquanto o falso dr. Johnson assistia, expliquei ao verdadeiro dr. Johnson que eu havia passado meses pesquisando a vida de Abbott, e que agora queria conhecer o lugar onde ele vivera. Ele me disse para esperar um pouco, foi ao telefone e discou um número. “Tem um rapaz aqui escrevendo uma matéria...” Ele mal conseguiu terminar a frase; ouviu o outro lado da linha em silêncio por alguns segundos e depois desligou. “Não vai dar”, ele disse. “Por favor, vá embora. Você não pode ficar aqui.”
Ivan Fisher é um dos advogados criminais mais famosos dos Estados Unidos. Na época em que Mailer o chamou para defender Abbott da acusação de assassinato, ele já era bem conhecido. Na década de 70 havia sido conselheiro legal de Joseph Bonanno, o “Joey Bananas”, um dos mafiosos mais célebres do país. Também havia trabalhado na defesa de dois casos históricos envolvendo a máfia, os julgamentos da French Connection e da Pizza Connection.
Mais recentemente, Fisher atuou como advogado de Haji Bashir Noorzai, traficante de heroína afegão e ex-militante do Talibã, figura controversa em seu país. Em 2008, Noorzai foi preso em Nova York e condenado à prisão perpétua.
Mesmo com tantos casos notórios, Fisher me disse que a defesa de Abbott foi, de longe, o julgamento em que trabalhou que mais recebeu a atenção da mídia. “Nunca vi nada igual em minha carreira”, ele disse, “eu era o gigante amarrado na terra dos liliputianos. Quase tive um ataque de pânico.”
O julgamento atraiu também atores de Hollywood, como Christopher Walken e Susan Sarandon.
Encontrei Fisher num domingo frio no final de fevereiro. Havia passado semanas tentando contatá-lo, até que um sábado ele me ligou no celular e combinamos de nos ver no dia seguinte, às duas da tarde, no The Benjamin, um hotel perto da estação Grand Central em Manhattan. Quando cheguei à recepção do hotel e citei o nome dele, o concierge adotou uma postura subserviente e me conduziu ao 2º andar.
Fisher havia sido curto e rápido no telefone, e eu resolvi chegar com dez minutos de antecedência. Quando entrei na sala, ele já estava aboletado numa poltrona; na mesinha em frente, havia uma jarra de água e uma tigelinha com rodelas de limão. “Tira esse casaco e senta”, ele falou, “a não ser que você queira que nossa conversa dure cinco minutos.”
Fisher tem 70 anos, quase 2 metros de altura e os ombros largos. É pálido e penteia os cabelos grisalhos para trás. Sua expressão corporal, a fala pausada e o uso constante e expressivo das sobrancelhas lembram o ator Jack Nicholson. Mistura rudeza e humor de um jeito tipicamente nova-iorquino. Não à toa é considerado um dos melhores advogados do país: após cinco minutos de conversa, consegue criar uma redoma de intimidade confessional.
Já falávamos há algum tempo, quando o conciergevoltou. Bateu à porta e, pedindo desculpas, perguntou com sotaque hispânico se podia checar algo perto dos móveis. “Claro David, entre”, disse o advogado, em tom afável. Quando o funcionário do hotel remexeu na estante, Fisher emendou, brincalhão: “É dinheiro ali atrás?”
“Não sei”, o conciergedisse, rindo. “Mas se for eu te aviso.”
Fisher contou depois que, ao conhecer Abbott, se surpreendeu com o vocabulário do cliente. “O que mais me impressionou foi que ele tinha um vocabulário extenso, mas hesitava em dizer certas palavras porque não sabia pronunciá-las. Muitos termos ele só conhecia dos livros. Aquilo me marcou profundamente.” Mas o começo da relação dos dois não foi fácil. Logo após o assassinato de Richard Adan, Abbott passou um tempo foragido. De Nova York ele tomou um ônibus até a Filadélfia, depois passou por Chicago, pelo estado do Texas, e então alcançou a fronteira, onde subornou um guarda para entrar no México. Lá viveu um tempo como andarilho em uma vilazinha na península de Yucatán, até chegar ao porto de Veracruz, onde tentou, sem sucesso, embarcar para o país de seus sonhos, Cuba. Depois voltou aos Estados Unidos e se estabeleceu por alguns dias em Nova Orleans, vendendo cachorro-quente. Quando a polícia finalmente o encontrou, ele estava trabalhando em um campo petrolífero nos pântanos do estado da Louisiana, no município de Morgan City.
De volta a Nova York para ser julgado, Abbott parecia nervoso. Fisher contou que foi demitido pelo menos oito ou nove vezes. “A história era sempre a mesma. Os guardas saíam da cela e me diziam: ‘O sr. Abbott não quer mais seus serviços.’ Aí o Norman e o Jean [Malaquais] entravam e o acalmavam, e logo depois eu era readmitido. Isso acontecia quase todo dia.”
Abbott havia dito a Fisher que Richard Adan também empunhava uma faca no momento da briga. Pouco antes do início do julgamento, Norman Mailer – que viria a se tornar muito amigo de Fisher após o caso, chegando a ser padrinho de seus filhos gêmeos – e sua mulher foram convidados a jantar na casa do advogado. A certa altura, Norris Church Mailer perguntou qual seria o argumento da defesa. Fischer, que ainda trabalha-va com a hipótese de a vítima portar uma faca, disse que tentaria alegar le-gítima defesa. “Você está louco?”, Norris gritou. “Você quer esse maníaco fora da prisão?!”
O responsável pela captura de Abbott nos pântanos da Louisiana foi Bill Majeski, então um detetive jovem da polícia de Nova York (NYPD). Majeski, que após 28 anos na NYPD hoje atua como detetive particular, é um nova-iorquino diferente de Fisher: discreto, tom de voz baixo, mas firme, olhos claros que nunca piscam. É especialista em polígrafos e estuda neurolinguística. Baixo, de cabelos bem aparados e grisalhos, tem a qualidade paradoxal de um retrato de Edward Hopper: traços marcantes que logo se dissipam, evaporando da memória.
Num café na esquina da West Broad-way com a rua Chambers, em abril, Majeski contou que ao assumir o caso leu In The Belly of the Beast para traçar um perfil psicológico de Abbott. Da leitura, concluiu que o criminoso era muito egocêntrico e por isso não mudaria sua aparência física. Ele estava certo: enquanto esteve foragido, Abbott apenas trocou de nome, adotando o codinome Jack Eastman. Há uma passagem no livro na qual o criminoso explica como enfiar uma faca em uma pessoa para matar logo de uma vez: “Entre o segundo e o terceiro botão da camisa.” Ele agira exatamente assim.
Muitos advogados estavam de olho no caso Abbott: quem quisesse subir na carreira teria uma exposição astronômica. Ivan Fisher, na época com 38 anos, praticava advocacia havia catorze. Ele confessou que, durante o julgamento, fez coisas das quais não se orgulha. “Foram alguns dos meus momentos mais baixos numa corte. Nada justifica a forma como agi, a não ser que eu queria muito ganhar.”
No sistema judicial americano, advogados de defesa podem interrogar os jurados em potencial, visando coibir parcialidades. Uma das perguntas de praxe para selecionar o júri daquele julgamento era: “Você conhece Norman Mailer?” Por ser uma figura pública, o escritor gerava simpatias e antipatias fortes. Fisher percebeu que se discutia muito a imagem do escritor e intelectual. “Durante aquele processo de seleção, tive uma ideia”, Fisher disse. “E se eu fizer o júri pensar que Abbott é um autor respeitável? Passo na Brooks Brothers e compro alguns paletós de tweed, e também um cachimbo. Eu o visto como um autor. Assim, posso eliminar da sala seus 25 anos de cadeia. Eu nunca o descrevi como um autor reconhecido; não precisei dizer nada sobre ele. Apenas o vesti.” Para argumentar a legítima defesa, a ideia do advogado era fazer com que a imagem de intelectual se instalasse sutilmente na psique do júri. “Eu estava intencionalmente enganando o júri. Isso é antiético, claro.”
Mas a estratégia da defesa precisou adotar outra linha. Enquanto trabalhava no caso, Fisher contratou um detetive particular, Charlie Kelly, para localizar a única testemunha que supostamente presenciara o assassinato, um veterano de guerra chamado Wayne Larsen. Desde a noite do crime, Larsen não era visto em Nova York. Kelly conseguiu um endereço, e Fisher e ele foram até um conjunto de apartamentos em Carnegie Hall (“na época, um lugar onde viviam pessoas com inclinações artísticas”), no intuito de encontrar alguma pista. Uma mulher atendeu a porta. Fisher reparou que na mesinha da sala havia um cocaine grinder – um pequeno instrumento para moer cocaína. Larsen estava na Flórida. Segundo a mulher, para manter a testemunha longe do faro de Fisher, o procurador do caso o enviara para lá. O advogado rapidamente contratou um outro detetive para encontrá-lo na Flórida, e Larsen teve que voltar a Nova York para depor.
Kelly prosseguiu com suas investigações e contou a Fisher que Larsen seria recebido no aeroporto por oficiais da NYPD. “Isso era para evitar que a defesa mexesse com ele”, disse Fisher. Kelly designou seus assistentes para ficar na cola de Larsen, discretamente. Segundo o advogado, os policiais saíram do aeroporto e levaram a testemunha para o Café Binibon, para um “ensaio” do crime. Quando deu seu depoimento na corte dias depois, Larsen imitou o barulho do impacto da facada perto do microfone, o que para Fisher era uma prova de que ele treinara sua performance.
O testemunho de Larsen impressionou não só o júri como o próprio Abbott.
A partir daquele momento, o réu mudou seu argumento e sustentou que Richard Adan não portava nenhuma arma. Disse também que queria dar seu testemunho na corte. “Isso causou uma reviravolta em nossa estratégia de defesa”, Fisher contou. “Foi preciso abandonar a história do autor respeitável. Porque, se Abbott testemunhasse, é óbvio que toda a vida dele na prisão viria à tona. Tudo o que eu tentara esconder iria explodir. A coisa boa é que podería-mos contar a verdade.”
A lei criminal de Nova York prevê uma diminuição da pena para crimes cometidos sob condições de estresse emocional extremo (extreme emotional disturbance). Fisher traçou uma estratégia nova, visando provar que Abbott, sob a influência de uma vida inteira entre barras, interpretara erroneamente as ações de Adan na noite do assassinato, lendo-as como ameaças. Provar o caso não foi difícil: Abbott tinha um histórico de paranoia, e sua breve liberdade na cidade havia mostrado que ele entendia qualquer atitude banal como uma afronta. “Na prisão você não tem tempo de considerar se algo é ou não uma ameaça”, Fisher disse. Segundo o advogado, para alguém que passou a vida na cadeia, uma palavra mais brusca ou até uma aproximação física pode ser vista como ameaça de morte. Quando encontrou Abbott pela primeira vez, Fisher havia proposto alegar estresse emocional extremo, mas Abbott tinha se recusado de forma peremptória, optando pela legítima defesa.
Ao se dirigir ao júri para os argumentos finais, Fisher não sabia bem o que dizer. “O tempo inteiro eu pensava como justificar aquela palhaçada de apresentar o réu nas vestes de um escritor respeitável. Parece incrível, mas resolvi ser direto.” Fisher disse aos jurados que a defesa os havia enganado intencionalmente, e que assim procedera porque de outra forma o réu não receberia um julgamento justo – ele alegou que Abbott sofreria preconceito por seu passado. Depois disso, o advogado defendeu as circunstâncias de estresse emocional extremo, num discurso que ele ainda considera uma das melhores argumentações jurídicas de sua carreira.
O júri acatou o argumento, e o crime de Abbott foi considerado homicídio culposo, e não homicídio doloso, como queria a acusação. Em geral, tal diferença costuma resultar numa redução de pena de aproximadamente dois terços; porém, como Abbott tinha muitos antecedentes criminais, a redução foi bem menor. “Nós ganhamos”, Fisher disse, “mas quando digo nós, não estou me referindo a Jack. Para ele, eu tinha fodido tudo. Porque eliminei qualquer possibilidade de ele sair da cadeia num futuro próximo. Depois disso tivemos momentos muito difíceis.” Fisher acredita que a prisão era o lugar adequado para Abbott, porque ele atingira um ponto tal que os instintos cevados naquele ambiente já eram inerentes a sua personalidade, e era impossível revertê-los. “Afinal, Norris estava certa: poupá-lo mais uma vez da prisão teria sido um ato de loucura.”
Depois do assassinato de Richard Adan, Norman Mailer e o meio literário nova-iorquino foram bombardeados diariamente pela imprensa americana. Os ataques podem ser assim resumidos: seduzidos por psicopata, gran-de autor nacional e seus amigos o tiram da cadeia e causam a morte de rapaz de 22 anos. Mailer, como qualquer um que se expõe demais à mídia, tinha uma relação ambígua com os jornalistas. Por um lado, era fonte inesgotável de histórias e apreciava a adulação; por outro, sua impulsividade o transformava num perfeito saco de pancadas. “A mídia viu uma oportunidade para fritar Norman”, disse Lennon, seu biógrafo. “O engraçado é que ninguém menciona as outras pessoas que Norman ajudou. Ninguém fala de Arnold Kemp, por exemplo.” (Kemp era um ex-presidiá-rio do Harlem que Mailer amparou no fim dos anos 60, e que posteriormente viria a fazer um doutorado em Harvard.)
O que deu gás à narrativa da imprensa foi que Mailer de fato se culpava pela tragédia. Anos mais tarde, ele diria sobre o episódio: “Foi mais um exemplo de situações que vivi e das quais não tenho nada do que me orgulhar.” Boa parte do meio literário ficou na defensiva ante os ataques dos jornais, mas Jerzy Kosinski, o autor polonês-americano que havia se correspondido com Abbott e que estivera presente no jantar editorial em Greenwich Village, fez um mea culpa. Ao romper relações com o criminoso, ele insinuou que os intelectuais se deixaram levar pelas credenciais esquerdistas do detento – se em seu discurso Abbott tivesse substituído Marx e Lênin por Hitler e Mussolini, talvez eles não o tivessem apoiado.
Na manhã do dia do crime, Abbott tentou ligar para Mailer, mas o autor estava trabalhando em seu escritório. Depois passou na casa de Jean Malaquais, onde tomou café da manhã – segundo Majeski, ele foi duas vezes à ca-sa do filósofo aquele dia. Malaquais de-clarou que Jack estava um pouco mais calado que de costume, mas que a conversa daquela manhã girou sobre os assuntos de sempre: literatura e ideias.
O ponto nevrálgico da narrativa propagada pela imprensa é que, diferentemente do que foi sugerido, Jack Abbott não saiu da cadeia por causa de suas habilidades literárias. Fisher, que teve acesso às circunstâncias da liberdade condicional concedida a seu cliente, alegou questões de confidencialidade para evitar discutir o assunto, mas foi categórico: “Você acha que um comitê disciplinar em Utah, um dos estados mais conservadores, vai permitir que um cara saia da cadeia por causa da opinião de um escritor, e mais, de um escritor que esfaqueou a esposa? É absurdo. É uma cretinice. Mas a imprensa adora esse tipo de asneira. Utah não está nem aí para o que pensa a intelligentsia de Nova York!”
Embora não se arrisque a especular sobre as circunstâncias exatas da liberação de Abbott, McDonald concorda com Fisher. “É difícil imaginar que bastam algumas cartas sobre seu suposto talento literário para você se livrar da cadeia.” McDonald também disse que ele, Mailer e Robert Silvers, o editor da New York Review of Books, nunca conversaram sobre a liberação de Abbott. “Eu o visitei na prisão em Marion, e jamais pensei que ele pudesse sair. Era um homem violento.” Quando o veredicto de homicídio culposo foi anunciado, Henry Howard, sogro de Richard Adan e então proprietário do Café Binibon, despejou sua fúria e tristeza nos jornais. Ainda assim, Howard declarou que não imputava a Mailer a morte do genro. Atribuía a culpa às autoridades.
“Jack Abbott não saiu da cadeia porque era bom escritor: ele se safou porque era alcaguete, dedo-duro”, Lennon disse. Em um longo artigo publicado pela revista Life, edição de novembro de 1981, o jornalista Robert Sam Anson argumenta que Abbott delatou vários detentos que participaram de uma das mais longas greves da história carcerária americana. O detetive Bill Majeski concorda em parte com o argumento de Abbott ter sido um dedo-duro, mas sua teoria sobre toda a história é que na verdade o comitê disciplinar de Utah queria “livrar-se de Abbott”. Sem entrar em detalhes, Majeski disse que Abbott envenenara o ambiente da penitenciária, jogando as facções umas contra as outras, e o comitê de Utah viu uma oportunidade de “usar Mailer e o meio literário” para dispensar o detento problemático. Segundo Majeski, “Abbott sabia manipular as pessoas muito bem”.
De volta à cadeia, Abbott continuou a se corresponder com Mai-ler, mas a relação dos dois se deteriorou. A paranoia de Abbott aumentou com os anos, e ele detectava conspirações em toda parte. Mailer, que se incriminava pela tragédia, achava uma covardia interromper a troca epistolar agora que Abbott havia voltado às grades. No entanto, a fre-quência das cartas diminuiu. Segundo Lennon, a última correspondência dos dois foi enviada por Mailer.
Nesse período, Abbott conheceu Naomi Zack, uma filósofa que acabara de terminar seu doutorado na Universidade Columbia, e que na época produzia filmes independentes. Depois de ler In the Belly of the Beast, Naomi escreveu a Abbott, e eles começaram a se corresponder. “Eu queria entender até que ponto ele se sentia responsável pelo que fez”, ela me contou. A relação entre Naomi e Abbott aprofundou-se rapidamente, e ela decidiu visitá-lo na prisão. A partir daí se envolveram num relacionamento amoroso. A filósofa ajudou Abbott a escrever seu segundo livro, My Return, uma com-pilação que contém ensaios, uma peça de teatro intitulada The Death of Tragedy, além de cartas de Abbott a intelectuais americanos.
Hoje professora titular de filosofia na Universidade do Oregon, Naomi raramente fala sobre o assunto. Quando conversamos pelo telefone no final de fevereiro, ela foi enfática em renegar o livro que ajudou a escrever. “Não é um livro bom”, ela afirmou. “Escrevi com Jack debruçado sobre meu ombro, dando instruções.” My Return é, como o próprio título indica, uma obra altamente narcisista. O livro tenta, sem sutileza alguma e com referências excessivas a Nietzsche, provar que Richard Adan portava uma faca no momento do crime. O currículo de Naomi Zack, disponível na página da universidade onde trabalha, está repleto de artigos publicados em prestigiadas revistas acadêmicas. My Return não está listado.
Naomi conheceu Abbott logo depois de um período de confinamento na solitária. “Ele ainda era bonito, tinha charme, sabia atrair as pessoas. Mas também era perigoso.” O enamoramento durou pouco. De volta à comunidade carcerária, Abbott tornou-se mais sombrio e mesquinho. Ele via na filósofa um instrumento pa-ra conseguir coisas fora da prisão. Para Naomi, a grande ironia da vida de Abbott é que ele nunca se libertou da cultura carcerária, embora sua força intelectual estivesse na capa-cidade de criticar essa mesma cultura. Com o tempo, ela, como Fisher, des-cobriu que o ambiente da prisão já es-tava irremediavelmente inculcado na per-sonali-dade de seu então marido.
“É como quando você vai a Los Angeles”, ela comparou. “Você encontra pessoas que começaram como garçons ou faxineiros para tentar a vida de ator. Aí a certa altura essas pessoas de fato viram garçons ou faxineiros, mas nunca admitem isso para si mesmos: na cabeça delas, ainda conservam a identidade de atores.” Para Naomi, Abbott era um detento que tinha fumos de intelectual, e não o inverso. Ele era inteligente e articulado, mas não conseguia sentar-se calmamente e debater diferentes pontos de vista. Tampouco era permeável a opi-niões con-trárias. Pela falta de educação formal, confundia sistemas filosóficos com opiniões pessoais. Ainda assim, Naomi se esforça para desmistificar o estereótipo do psicopata – Abbott não era irascível o tempo inteiro, ela ressalta. “Algumas pessoas pareciam achar que Jack fora criado por lobos, como se fosse retardado ou algo do tipo.”
Naomi e Abbott se casaram, mas não por amor. Ele começara a fazer ameaças a ela e a seus filhos – a professora conheceu Abbott quando tinha 37 anos, já com filhos de um casamento anterior. Casar-se com o detento foi uma forma de “livrar-se dele”, de oferecer um paliativo para acalmá-lo. Outra estratégia de Naomi foi lhe enviar um subsídio mensal de 50 dólares (com o passar dos anos, a quantia chegaria a 100 dólares mensais). “Não parece muita grana, mas para mim na época era bastante; e para alguém na prisão é dinheiro à beça.” Ela se lembra das longas filas de visitantes na penitenciária, “sempre compostas por mulheres”. Sua relação com Abbott durou de seis a sete anos.
Foi um período difícil. “Todo dia eu acordava e pensava a mesma coisa: como vou sair dessa?”
O detetive Majeski é da opinião de que sempre se glamorizou Abbott. Ele fez questão de enfatizar que o criminoso não passava de um covarde, não era a admirável criatura descrita no prólogo de In the Belly of the Beast, livro que ele comenta com certo desprezo. Para encontrar Abbott, Majeski não precisou sair para caçá-lo. Trabalhou praticamente sentado a sua mesa, com o telefone. O detetive falou com muitas pessoas que, embora não admitissem, ainda mantinham contato com Abbott no período em que ele estava foragido. Majeski sempre desligava com a mesma frase sardônica: “Avisa aí pro Jack que eu estou atrás dele.” A paranoia de Abbott dessa vez tinha fundamento: sua fuga durou apenas cinco semanas.
Depois que o time da NYPD o encontrou nos pântanos da Louisiana, levaram-no até o porão de uma corte em Nova York para que o detetive finalmente o conhecesse. Abbott se antecipou a qualquer apresentação: “Você é o Majeski”, disse. “Você estava atrás de mim.”
Majeski é um dos poucos que discorda do veredicto de homicídio culposo. Quando eu lhe contei que era o único dos entrevistados a discordar da sentença, ele disse, em tom educado, sem piscar: “Eu também sou o único que conversou com todas as testemunhas envolvidas.” Mas o detetive não fala com rancor do caso. “Dou todo o cré-dito a Fisher por fazer bem seu tra-balho, mas não tenho dúvida de que Jack Abbott teve intenção de matar
Richard Adan naquela madrugada.” As circunstâncias exatas da discussão entre o criminoso e a vítima nunca foram esclarecidas, mas Majeski acredita que o garçom – por sua personalidade e experiência como gerente do local – levou Abbott para fora do estabelecimento com o propósito de acalmá-lo. Abbott então teria se aproveitado do momento em que o outro estava vulnerável, sem ninguém por perto, e o matou. “Jack Abbott odiava muitas pessoas sem nenhuma justificativa. Era uma pessoa ruim, um covarde.”
Entre as várias contradições do primeiro livro de Abbott,nota-se como o autor mescla argumentos tolerantes e bem informados sobre diferenças étnicas com outras passagens que soam preconceituosas. Quando perguntei a Erroll McDonald, um dos poucos negros no mercado editorial americano, se ele considerava Abbott racista, ele respondeu: “Não exatamente racista, mas colérico.
Sua raiva era palpável.” McDonald me contou algo que nunca divulgou à imprensa americana. Quando acabaram de editar o volume, o título que Abbott sugeriu foi “O Segundo Adão”, numa alusão messiânica que deixou desconfortáveis as outras pessoas envolvidas no projeto. Coube a Mailer convencer Abbott a aceitar um novo título. Parece que o escritor também eliminou passagens de tom antissemita do rascunho original, o que, novamente, não deixa de ser irônico: no fim da vida, Abbott se converteria ao judaísmo.
Outro detalhe que McDonald revelou é que aparentemente algumas cartas que Abbott enviara a Mailer perderam-se antes de o livro sair. Abbott argumentou na época que Judith McNally, então secretária de Mailer, foi a responsável pelo desleixo. Abbott, portanto, teria recriado fragmentos e os enviado a McDonald – pode-se inferir que o autor escreveu parte do livro com a consciência de que aquilo era de fato um livro, uma narrativa. Naomi Zack disse que sempre considerou In the Belly of the Beast “um pouco forçado” – segundo ela, Abbott tentou retratar uma inocência que nunca foi dele.
Truman Capote em A Sangue Frio, Joe McGinniss em O Jornalista e o Assassino, de Janet Malcolm: na sempre tensa relação entre escritores e suas fontes homicidas, o autor leva vantagem histórica. O escritor seduz a fonte e depois a trai de alguma maneira para contar uma boa história. Assassino mas também escritor, Jack Henry Abbott entendia o poder da narrativa. Um dos aspectos mais interessantes do livro é o tom por vezes agressivo que o autor adota nas cartas endereçadas a Mailer – um tom que lembra muito o do jovem Mailer escrevendo ao ídolo Hemingway. Abbott captou uma sutileza: a melhor forma de seduzir um ególatra não é puxando seu saco, mas demonstrar de vez em quando certo desprezo. Na relação entre Mailer e Abbott, os papéis se confundiram o tempo todo. Se Abbott era “a voz do diabo”, Norman Mailer emprestou a ele sua língua.
Com o passar dos anos, Abbott continuou isolado na cadeia. A desconfiança de que tramavam contra ele aumentou. Em 1990, numa batalha judicial em que não aceitou nenhum advogado e representou a si mesmo, perdeu para a viúva da vítima, Ricci Adan, que embolsou uma indenização milionária. Bem antes disso, logo após o assassinato do garçom, os royalties do livro já haviam sido conge-lados por decisão judicial. Fisher contou que na época ele não pôde receber na íntegra os 100 mil dólares estipulados como pagamento por seus honorários, pois parte da quantia que acordara com o agente literário de Mailer se baseava em royalties futuros do livro.
Em 10 de fevereiro de 2002, aos 58 anos, Abbott foi encontrado morto em sua cela na penitenciária de Wende, em Buffalo, ao norte do estado de Nova York. Ele se enforcou com os cordões de seu sapato. O New York Times publicou um artigo breve relembrando como o detento chegara à fama na década de 80. O artigo não repercutiu. A irmã de Abbott, Frances Amador – segundo Naomi, a pessoa que ele mais amou –, declarou ao jornal que não acreditava no suicídio, mas que “não tinha como provar” suas suspeitas.
O comentário de Frances tampouco repercutiu. Àquela altura, o caso já estava enterrado na memória coletiva dos americanos. Embora nunca tenha declarado à mídia nada a esse respeito, Majeski também desconfiou da teoria do suicídio. Suicídio demanda certo grau de coragem, disse. Ao tomar conhecimento da morte de Abbott, Mailer disse ao New York Times que nunca conhecera alguém com uma existência tão trágica, que desperdiçara tantas oportunidades e destruí-ra tantas vidas, incluindo a própria.
No velório do próprio Mailer, em 2008, Ivan Fisher foi convidado a fazer um discurso em homenagem ao amigo de longa data. Quando conversamos em Manhattan, ele se lembrou de uma frase que empregou naquela ocasião, uma frase ambígua que talvez defina o que Mailer pensava quando chamou a atenção da cidade e do mundo para o talento de Abbott: “Cultura... vale um certo risco.”
Naquela tarde de março, quando fui convidado a me retirar do prédio em que Abbott vivera, o falso dr. Johnson me seguiu até a calçada. Dependente químico, seu nome era Glen Johnson e estava internado no centro de reabilitação havia mais de dez anos. Começamos a conversar, mas logo fomos interrompidos por um outro homem. Ele era gordo, carrancudo, tatuado; usava um tênis imenso e uma bandana vermelha. Os dois cochicharam por um tempo, trocaram cigarros, até que furtivamente o homem lhe passou um objeto. Na hora não consegui identificar o que era. Só lembro que pareceu brilhar ao sol. Fiquei tenso e disse que precisava ir embora. Johnson pediu que eu esperasse, queria me dizer uma coisa importante. Continuei tenso. A rua não estava exatamente deserta, mas os únicos presentes eram os outros homens que olhavam para o lado, fumavam e soltavam palavrões lacônicos. Havia também um paralítico às gargalhadas com sua cadeira de rodas, indo e voltando na calçada a uma velocidade surpreendentemente rápida.
O homem foi embora e Johnson se aproximou. Disse que queria me ajudar com a matéria, me deu o nome de algumas pessoas, caso eu quisesse entrar de novo no local. Disse também que eu precisava escrever sobre a vida dele. Aí me puxou e mostrou os pacotinhos azuis com símbolos de tatuagem tribal que estavam espalhados pela rua. “Isso é spice”, ele disse, “o novo crack. Com 5 dólares dá barato em quatro pessoas.” Seus olhos esbugalhados pareciam ainda mais vivos enquanto ele falava.
“Alguém precisa contar essa história. Eu quero que vocês venham aqui, porra; oVillage Voice, seja quem for, alguém tem que explicar por que o governo está escondendo isso, por que ninguém quer falar sobre o que está acontecendo.” Johnson tirou um smartphone do bolso, acessou o dispositivo da câmera e disse: “Eu posso entrar lá no prédio e filmar tudo o que você quiser.”
Continuamos a conversar na calçada, e depois, quando nos despedimos, ele pediu uma caneta para deixar seu telefone de contato. “Porra, isso é uma Montblanc?”, ele exclamou quando lhe dei minha Uniball.
Logo em seguida decidi passar no antigo Café Binibon, que estava a uma quadra e meia. Ao longo dos anos os proprietários foram se sucedendo e hoje o local é um restaurante indiano chamado Heart of India. Naquela tarde eu era o único freguês. Era um daqueles locais que de tanto se preocupar com decorações autênticas se torna paradoxalmente o lugar mais turístico possível. A música indiana de fundo, as imagens de Ganesha, as pessoas passeando calmamente pela calçada: o assassinato ali parecia impossível.
Quando saí e peguei o metrô, comecei a sentir culpa. Ao me despedir de Glen Johnson, eu havia me preparado para lhe dar dinheiro. Mas ele não pediu nada, só queria me ajudar. E antes, enquanto ele conversava com o amigo, me ocorreu que o objeto passado entre eles pudesse ser uma faca. Mas mesmo assim – com tantas analogias – não pensei em Jack Henry Abbott. Lembrei-me das cartas que Mailer recebia de outros admiradores, de outros Abbotts, ou melhor, de outros Johnsons; todos com menos talento literário, mas com a mesma vontade de contar uma história. A vaga humilhação de pedir para ser ouvido.
Ainda com culpa, resolvi que em alguns dias ligaria para Johnson para marcar uma cerveja. Também decidi que levaria o gravador quando nos encontrássemos.
Passaram algumas semanas e minha culpa diminuiu.
Acabei perdendo o papelzinho.
11 de junho de 2014
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