Lá vou eu tentar mostrar que zen-budismo não é a mesma coisa que zé bundismo
Guimarães Rosa escreveu, em “Tutaméia”: “não confunda sorvete com Nirvana”. Essa frase (cito-a de memória) me vem à mente toda vez que ouço alguém se declarar “espiritualizado”, com um orgulho mal contido pela própria espiritualidade. Os espiritualizados estão por toda parte. É um verdadeiro suplício. Ligo a televisão e está lá a celebridade se dizendo espiritualizada, em plena vulgaridade de programa de auditório, com roupas de grife, a profundidade intelectual de uma poça e um verniz de penitência no rostinho ao pronunciar a palavra-fetiche. Não tenho prazer em botar água no incenso de ninguém, mas tenho um compromisso com a interpretação da realidade, então lá vou eu tentar mostrar que zen-budismo não é a mesma coisa que zé bundismo.
A declaração de “espiritualidade” manifesta antes um traço revelador de classe do que uma prática existencial autêntica. Explico. É que, para os “espiritualizados”, quem tem religião são as camadas populares. Religião é “coisa de pobre”. Esses evangélicos que votam no Crivella e no Feliciano, esses católicos que vêm de ônibus para a Jornada Mundial da Juventude. Religião é “coisa de alienado”, esses pobres coitados que acreditam num Deus de monoteísmo, são explorados pelo dízimo e perseguem gays. As camadas médias e os ricos não querem se confundir com essa gente. Eles não têm preconceitos de sexualidade (o calo aperta é na hora da produção de igualdades sociais). Eles votam na Marina, em cujas sofisticação intelectual e engajamento ambiental veem uma espécie de purificação ou autenticação da religiosidade (e estão certos quanto a Marina, mas não têm, eles mesmos, nem a sua força intelectual nem a seriedade do engajamento).
A espiritualidade recusa a religião, mas acaba reproduzindo a alienação da religiosidade meramente formal, agora sob a forma de atitude existencial fake. Pois espiritualidade, aí, não designa cultivo moral e intelectual (a “vida do espírito”), mas um valor difuso, uma fetichização do vago, de inspiração oriental, cujo significado é mais sociológico que existencial, e tão inautêntico quanto os yuppies budistas que pretendem conciliar o Nirvana ao mercado financeiro. É precisamente a isso que se referiu Zizek tantas vezes, ao interpretar esse espiritualismo new age (sobretudo o alto valor do budismo na Europa e nos EUA, os grandes centros do capitalismo no Ocidente) como uma válvula de escape que permite às pessoas, em vez de transformar suas vidas e a da coletividade, repetir e até intensificar as suas práticas, só que esvaziadas de culpa. A espiritualidade cumpre, assim, as funções de álibi para o materialismo superficial da vida contemporânea, e de obstáculo para que o sujeito e o mundo se coloquem em crise radical. É por isso que Zizek a chamou de “mais perfeito suplemento ideológico” do capitalismo, em vez de atuar como sua contraideologia. Em outras palavras, ao invés de abraçarem o budismo para se oporem à realidade, transformando-a, os ocidentais utilizam o budismo como uma espécie de válvula de escape moral e existencial, que lhes permite melhor conviver com a experiência capitalista.
Zizek propõe ainda uma diferença entre o conceito clássico de sintoma e a noção de objeto-fetiche. Como se sabe, o sintoma é o resultado de um recalque, é a manifestação indireta de algo que, insuportável, foi suprimido da consciência, a fim de tornar a realidade tolerável. Já o fetiche não é caracterizado por essa negatividade (a supressão constitutiva do recalque), mas sim por um princípio positivo: elege-se um objeto que viabilize a realidade, que ajude a viver com as dificuldades impostas por ela, sem precisar encará-las como tais, isto é, como realidades. O budismo tibetano — referência maior da “espiritualidade” contemporânea — seria esse objeto-fetiche para o Ocidente.
A espiritualidade é, assim, apenas a versão classe média da religiosidade alienada. Nada tem da autêntica vida do espírito dos intelectuais, nem tampouco da autêntica experiência religiosa, com suas exigências drásticas de renúncia ao mundano, seus caminhos de crises e conversões, suas radicais práticas ascéticas (que na versão espiritualizada sobrevive na “semana da dieta do Detox”, em que a purificação fisiológica não deixa de ser investida ideologicamente por um sentido maior, “espiritual”). Essas formas de espiritualidade oriental instantânea são feitas sob medida para uma época de subjetividades preguiçosas, época sem épica existencial, mais para psicotrópicos do que para psicanálise, mais para ansiedade do que para angústia, mais para autoajuda que para alta ajuda.
Guimarães Rosa escreveu, em “Tutaméia”: “não confunda sorvete com Nirvana”. Essa frase (cito-a de memória) me vem à mente toda vez que ouço alguém se declarar “espiritualizado”, com um orgulho mal contido pela própria espiritualidade. Os espiritualizados estão por toda parte. É um verdadeiro suplício. Ligo a televisão e está lá a celebridade se dizendo espiritualizada, em plena vulgaridade de programa de auditório, com roupas de grife, a profundidade intelectual de uma poça e um verniz de penitência no rostinho ao pronunciar a palavra-fetiche. Não tenho prazer em botar água no incenso de ninguém, mas tenho um compromisso com a interpretação da realidade, então lá vou eu tentar mostrar que zen-budismo não é a mesma coisa que zé bundismo.
A declaração de “espiritualidade” manifesta antes um traço revelador de classe do que uma prática existencial autêntica. Explico. É que, para os “espiritualizados”, quem tem religião são as camadas populares. Religião é “coisa de pobre”. Esses evangélicos que votam no Crivella e no Feliciano, esses católicos que vêm de ônibus para a Jornada Mundial da Juventude. Religião é “coisa de alienado”, esses pobres coitados que acreditam num Deus de monoteísmo, são explorados pelo dízimo e perseguem gays. As camadas médias e os ricos não querem se confundir com essa gente. Eles não têm preconceitos de sexualidade (o calo aperta é na hora da produção de igualdades sociais). Eles votam na Marina, em cujas sofisticação intelectual e engajamento ambiental veem uma espécie de purificação ou autenticação da religiosidade (e estão certos quanto a Marina, mas não têm, eles mesmos, nem a sua força intelectual nem a seriedade do engajamento).
A espiritualidade recusa a religião, mas acaba reproduzindo a alienação da religiosidade meramente formal, agora sob a forma de atitude existencial fake. Pois espiritualidade, aí, não designa cultivo moral e intelectual (a “vida do espírito”), mas um valor difuso, uma fetichização do vago, de inspiração oriental, cujo significado é mais sociológico que existencial, e tão inautêntico quanto os yuppies budistas que pretendem conciliar o Nirvana ao mercado financeiro. É precisamente a isso que se referiu Zizek tantas vezes, ao interpretar esse espiritualismo new age (sobretudo o alto valor do budismo na Europa e nos EUA, os grandes centros do capitalismo no Ocidente) como uma válvula de escape que permite às pessoas, em vez de transformar suas vidas e a da coletividade, repetir e até intensificar as suas práticas, só que esvaziadas de culpa. A espiritualidade cumpre, assim, as funções de álibi para o materialismo superficial da vida contemporânea, e de obstáculo para que o sujeito e o mundo se coloquem em crise radical. É por isso que Zizek a chamou de “mais perfeito suplemento ideológico” do capitalismo, em vez de atuar como sua contraideologia. Em outras palavras, ao invés de abraçarem o budismo para se oporem à realidade, transformando-a, os ocidentais utilizam o budismo como uma espécie de válvula de escape moral e existencial, que lhes permite melhor conviver com a experiência capitalista.
Zizek propõe ainda uma diferença entre o conceito clássico de sintoma e a noção de objeto-fetiche. Como se sabe, o sintoma é o resultado de um recalque, é a manifestação indireta de algo que, insuportável, foi suprimido da consciência, a fim de tornar a realidade tolerável. Já o fetiche não é caracterizado por essa negatividade (a supressão constitutiva do recalque), mas sim por um princípio positivo: elege-se um objeto que viabilize a realidade, que ajude a viver com as dificuldades impostas por ela, sem precisar encará-las como tais, isto é, como realidades. O budismo tibetano — referência maior da “espiritualidade” contemporânea — seria esse objeto-fetiche para o Ocidente.
A espiritualidade é, assim, apenas a versão classe média da religiosidade alienada. Nada tem da autêntica vida do espírito dos intelectuais, nem tampouco da autêntica experiência religiosa, com suas exigências drásticas de renúncia ao mundano, seus caminhos de crises e conversões, suas radicais práticas ascéticas (que na versão espiritualizada sobrevive na “semana da dieta do Detox”, em que a purificação fisiológica não deixa de ser investida ideologicamente por um sentido maior, “espiritual”). Essas formas de espiritualidade oriental instantânea são feitas sob medida para uma época de subjetividades preguiçosas, época sem épica existencial, mais para psicotrópicos do que para psicanálise, mais para ansiedade do que para angústia, mais para autoajuda que para alta ajuda.
04 de dezembro de 2013
Francisco Bosco, O Globo
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