"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

BONS NO COURO

 
 No Botafogo, dá de tudo, até aleijado (Gentil Cardoso, técnico do Botafogo, ao ver Garrincha se apresentar para um teste em General Severiano)

Quem disse que o Google é infalível ? Procurei lá e não achei uma informação que, antiga embora, insiste em permanecer na minha memória. Já ouviram uma musiquinha que tinha, na letra, a seleção brasileira de 1958, do goleiro ao ponta-esquerda ? Melodia sofrível, o cantor perdido nas esquinas do tempo lascava: Gilmar, De Sordi, Belini, Zito, Orlando e Nilton Santos, Garrincha, Didi, Vavá, Pelé, Zagalo, eis o scratch nacional/Eles jogaram na Suécia/Com amor e decisão/Aí está o meu país/Com o título de campeão.

Ocaso do complexo de vira-lata, a conquista da 1ª Jules Rimet reafirmou a genialidade de uma dupla de compadres alvinegros. Garrincha entortou defesas, Nilton Santos parou ataques e demoliu, com simplicidade, os esquemas táticos rígidos que faziam a cabeça dos técnicos. Quase enlouqueceu Feola ao avançar, bola dominada, peito erguido, e fulminar o goleiro austríaco. “Volta, Nilton, volta !”, gritava desesperado o técnico, antes de enxugar o suor e aplaudir a ousadia do seu lateral-esquerdo. Palmas réquiem para o futebol engessado.

Garrincha e Nilton foram protagonistas de meu Maracanazo particular. 15 de dezembro de 1962, final do campeonato carioca, quase 160 mil torcedores. O Botafogo não toma conhecimento do Flamengo e, pilotado por um Garrincha iluminado, aplica uma goleada impiedosa.
Não adiantou botar o então iniciante Gérson, o Canhotinha, para ajudar Jordan a marcar o Mané. Bailou à vontade, ninguém parava aquele pássaro feliz, no auge de sua criatividade.
O Menino nada tinha a fazer a não ser desligar o rádio, espantar uma lágrima persistente, xingar o fraquíssimo goleiro do Flamengo e esperar por dias melhores. Que, aliás, começariam já em 1963, com um goleiro doutor e um ponta-direita mediterrâneo. Mas isso já são outros quinhentos.

NILTON E GARRINCHA

Como, ora raios, tinha nascido aquela dupla de arteiros que, parafraseando Nilton, era amiga de infância de todas as bolas do mundo?
O Botafogo tinha um jogador chamado Araty, que, para dar uma relaxada, foi à pequena cidade de Pau Grande, interior do Estado do Rio, apitar uma pelada. Deslumbrado, viu aquele estranho personagem de pernas tortas, candidato a aparelhos corretivos e fisioterapeutas, fazer misérias.

Convidou-o a aparecer no Botafogo para fazer um teste. O peladeiro não apareceu. Araty insistiu com a cartolagem e um dirigente desembarcou no campinho de terra e confirmou o fenômeno. Marcou novamente um teste, e desta vez, o sujeito não faltou. Passo a palavra para o Enciclopédia:
“Não é para justificar, até porque o teste dele foi um dia de sorte para mim. Eu estava na semana de despedida de solteiro e andava abusando um pouco.

Então, colocaram aquele cara todo torto e desengonçado na ponta direita. Não fiz muita fé. Quando ele pegou a bola, fui logo desarmá-lo e ele, na maior desenvoltura do mundo, parecia até que já jogava ali, enfiou a bola no meio das minhas pernas e foi buscar do outro lado.
Nessa época, eu estava muito badalado no clube. Todos diziam que eu era o cobrão. Um cara todo torto fazer aquilo comigo é porque era bom. Falei logo: Contratem o homem, não quero passar esse vexame no Maracanã cheio. Fui ouvido, graças a Deus, e daí em diante pude sempre dormir tranquilo. Ele estava do meu lado, coisa que não acontecia com seus marcadores. Tenho muito orgulho de ser seu primeiro João”.

Nascia ali não apenas uma orquestra de câmara muito bem afinada, mas uma dupla de compadres raríssima no futebol, especialmente nesses tempos de idolatria financeira.
SÓ NO BOTAFOGO

Nilton vestiu a camisa de apenas um clube, dizem que assinava contratos em branco por amor ao Botafogo. Tempos heróicos, quando a ligação com o time se construía aos poucos, dos chamados juvenis aos profissionais, passando por uma espécie de estágio probatório, que era a categoria de aspirantes. Que delícia chegar cedo no Maracanã, assistir a preliminar e identificar os futuros titulares ! Lembro de Germano, um ponta-esquerda do Flamengo que tinha canela fina e chute fortíssimo, nascendo naqueles aperitivos das tardes de domingo.

Nilton manifestou estranheza com esse hábito de jogadores comemorarem gols beijando o distintivo da camisa. Para ele, o ato de demonstrar amor ao clube era invisível e, por isso, muito mais sincero e duradouro. Hoje, as peneiras aleijam os times profissionais, mandando a garotada para fora do país. Ganham os cartolas e os empresários, perde a qualidade dos nossos campeonatos.

Nilton se foi. Era o último remanescente da seleção de 1950, embora não tivesse atuado em nenhuma partida. O técnico Flávio Costa implicou com sua chuteira “de bico mole”. Beque tem que jogar com chuteira apertada, para dar mais força ao chute, alegava Flávio. O tempo mostrou quem estava certo. O jogador elegante, com pleno domínio de todos os fundamentos do futebol, não precisava de artifícios no pé.

Compadre Garrincha já tinha ido embora há 30 anos, abatido pelo alcoolismo, pela decadência precoce (acelerada pelas injeções que tomava no joelho para aliviar dores crônicas), pela solidão. Nilton não conseguiu assistir ao enterro do compadre. Era muita dor. Conta, no entanto, uma passagem poética e perturbadora:

“Ao longo das passarelas da avenida Brasil, pessoas choravam, acenavam com lenços brancos, jogavam flores sobre o carro. Num determinado ponto, alguém soltou uma camisa número sete, da Seleção Brasileira, que foi voando, bailando como se fossem seus dribles, e que acabou por pousar em cima dele. Ficou presa na alça do caixão e manteve-se até Pau Grande. Essa cena, para mim, é inesquecível”.

O MAINÁ

Fiquei arrepiado quando li essa história porque lembrei do amor de Garrincha pelos pássaros. Ficou célebre a história do mainá, pássaro que emite um som parecido com a voz humana. Antes da campanha do bicampeonato no Chile, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, prometeu a Garrincha um mainá se ele trouxesse o caneco pela segunda vez. Gente próxima ao Mané disse que aquele não era um estímulo menor. Caneco na mão, o Corvo presenteou o mainá e as fotos da época mostram a infinita alegria de um menino ganhando um brinquedo.

O fim dessa história não é edificante. Garrincha era totalmente despolitizado, mas sua companheira Elza Soares tinha dado apoio público a Jango, deposto pelos militares. Resultado: a casa dos dois foi invadida em 1964 e os meganhas, depois de humilharem o casal, tiraram o pássaro da gaiola e o estrangularam. Na saída, ameaçaram uma nova “visita” caso abrissem o bico. A imprensa noticiou a morte do mainá, sem esclarecer a causa mortis.

De um jeito todo seu, Nilton e Garrincha esculhambaram as táticas da vida quadrada. O Enciclopédia e o colecionador de Joões voaram mil voos de mainás, pintassilgos, sanhaços, canários e bem-te-vis. Todas as cores em preto e branco. Como bem resumiu Armando Nogueira, falando sobre Nilton, mas rebatendo em outro Santos, o Manuel Francisco dos idem: Tu, em campo, parecias tantos, e no entanto, que encanto ! Eras um só, Nilton Santos. Saudações rubro-negras, figurinhas carimbadas da minha saudade.

04 de dezembro de 2013
Jacques Gruman

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