Prender gentinha e pessoas comuns é banal. Mas como prender superiores, trancafiar ‘os homens’ e enjaular mandões apadrinhados ao governo?
Uma carta do meu amigo Richard Moneygrand, o emérito brasilianista da Universidade de New Caledônia, reafirma o que, para ele, seria a maior meditação sobre o personalismo elitista brasileiro: a Teoria do Medalhão, escrita por Machado da Assis para a “Gazeta de Notícias”, em 1881.
De fato, ela foi fundamental quando escrevi sobre o “Você sabe como está falando?” como um “rito de autoridade” e, nesta reflexão — publicada como uma capítulo central do meu suplantado “Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro”, em 1979 —, eu afirmava que a questão central do nosso sistema era uma ambiguidade que tomava ora a hierarquia, ora a igualdade como elemento englobador de nossos conflitos sociais, levando o sistema ao que seus interpretes antigos e modernos viam como instabilidade, infantilidade ou erro.
Embora a igualdade seja um valor formal e legal, a desigualdade advinda da velha aristocratização continuava a ser um ideal pouco politizado entre nós. Ora, é justamente isso que Machado nos apresenta na sua na Teoria do Medalhão. No fundo, o medalhão como a “grande figura” (o “gente boa”, o “número um” etc...) é o tipo ideal que congrega na sua ambiguidade o nosso cinismo ideológico tão difícil de politizar e legalizar. O medalhão é, pois, o sintoma de nossa alergia ao “homem comum” com o qual nenhum de nós quer ser confundido.
Mas eu não estou aqui para falar das minhas superficiais teorias do Brasil. Eis a carta de Moneygrand, um um professor estrangeiro que, por definição, sabe muito mais que eu:
“Caro Roberto,
Eis que vocês revivem novamente mais um drama promovido pelo vosso sistema de privilégios ou distinções (como diria o bom Bourdieu) com a prisão dos mensaleiros mais distinguidos, todos atores centrais deste governo lulopetista que prometia tornar o Brasil menos injusto. Como — eis a questão — prender deputados, tesoureiro, presidente e chefe da Casa Civil da Presidência, o cabeça do esquema; o qual, ademais, incluía como operadores pilantras igualmente medalhões se todos foram cabalmente condenados? Um esquema, digo de passagem, testado também com o PSDB em Minas Gerais. Prender gentinha e pessoas comuns é banal. Mas como prender superiores, trancafiar “os homens” e enjaular mandões apadrinhados ao governo?
“Não tenho tempo para mencionar nomes e detalhes porque em meia hora devo me apresentar à corte do meu condado para finalizar o divórcio com a minha quarta esposa, a queridíssima Susan, já que caí de amor por Ellen (três anos mais jovem e com um doutorado em antropologia ontológica) neste último verão.
“Mas revisitei o ‘velho’ Machado e o encontrei mais novo do que nunca. Como você há de lembrar, a ‘teoria’ se faz em plena passagem de um dia pra outro e como um presente de aniversário para um filho rico e idiota, no momento em que um pai sábio e realista assinala que ser ‘medalhão’ é o papel social mais importante da cena brasileira. Entre todas as carreiras, diz a portas fechadas, o ideal no Brasil é ser um medalhão. E quais são as características dos medalhões?
“A primeira é a atitude ou a forma. A gravidade: esse mistério do corpo mas que, neste seu Brasil, manifesta-se pela seriedade rabugenta e pela ausência de riso. Encontrei muitos brasileiros assim: sérios e sempre prontos a darem uma bronca dos fracos e a beijarem o rabo dos fortes.
“A segunda é não ter ideias. Sobretudo, ideias novas. Até hoje os medalhões continuam falando em defender o povo pobre, em combater a violência e proteger os vulneráveis (esse novo conceito para os fracos e os subordinados), mas sem apresentar nenhuma novidade porque não arriscam ter uma opinião individualizada e fazem parte de uma turma ou partido. Seguem a mediocridade geral.
“A terceira é trivial e vossos administradores públicos são pródigos em exibi-la. Refiro-me a usar as locuções convencionais, as fórmulas consagradas e incrustadas na memória coletiva. Seguir a inércia geral com frases feitas é básico na construção do medalhão.
“A quarta é a publicidade. Oferecer jantares e obséquios, distribuir comendas e diplomas, produz a propaganda e engendra a imagem da ‘boa gente’ do sujeito relacional e ‘boa-praça’. Essa é a marca da vida pública brasileira feita mais de fortunas pessoais roubadas ao povo por meio de ‘irmandades’ confundidas com partidos políticos, do que de políticas públicas efetivamente transformadoras.
“A quinta é não ter opinião. Ou seja: mesmo pertencendo a um partido ideologicamente cheio de opinião, jamais infringir as regras e as obrigações estabelecidas, como o dar-para-receber.
“A sexta, taxativa, é ser vulgar. Declares, como fez Maduro outro dia, que os comunistas roubam tanto quanto os capitalistas. Ou como os medalhões mansaleiros que você é um ‘preso politico’ e não uma exceção que confirma a regra: políticos que estão (mesmo contra a vontade) tentando prender!
“A vulgaridade que impede embate de ideias e as decisões que resgatam a virtude formam o centro dos governos de coalização que vocês tanto admiram e que nós, nesses Estados Unidos(?), não conseguimos realizar. Essa cisão e essa conjunção entre ser ideologicamente preciso e pessoalmente impreciso são a base no medalhão.
“Como medalhão, você tem que ser igualitário no discurso público, mas desigual na vida caseira. Há muito mais em Machado, mas um divórcio e um juiz que não ri e uma mulher zangada me esperam. O certo, porém, é que seguindo essa teoria vai ser um problemão prendê-lo no Brasil.
“Calorosas lembranças,
“Dick.”
04 de dezembro de 2013
Roberto DaMatta
De fato, ela foi fundamental quando escrevi sobre o “Você sabe como está falando?” como um “rito de autoridade” e, nesta reflexão — publicada como uma capítulo central do meu suplantado “Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro”, em 1979 —, eu afirmava que a questão central do nosso sistema era uma ambiguidade que tomava ora a hierarquia, ora a igualdade como elemento englobador de nossos conflitos sociais, levando o sistema ao que seus interpretes antigos e modernos viam como instabilidade, infantilidade ou erro.
Embora a igualdade seja um valor formal e legal, a desigualdade advinda da velha aristocratização continuava a ser um ideal pouco politizado entre nós. Ora, é justamente isso que Machado nos apresenta na sua na Teoria do Medalhão. No fundo, o medalhão como a “grande figura” (o “gente boa”, o “número um” etc...) é o tipo ideal que congrega na sua ambiguidade o nosso cinismo ideológico tão difícil de politizar e legalizar. O medalhão é, pois, o sintoma de nossa alergia ao “homem comum” com o qual nenhum de nós quer ser confundido.
Mas eu não estou aqui para falar das minhas superficiais teorias do Brasil. Eis a carta de Moneygrand, um um professor estrangeiro que, por definição, sabe muito mais que eu:
“Caro Roberto,
Eis que vocês revivem novamente mais um drama promovido pelo vosso sistema de privilégios ou distinções (como diria o bom Bourdieu) com a prisão dos mensaleiros mais distinguidos, todos atores centrais deste governo lulopetista que prometia tornar o Brasil menos injusto. Como — eis a questão — prender deputados, tesoureiro, presidente e chefe da Casa Civil da Presidência, o cabeça do esquema; o qual, ademais, incluía como operadores pilantras igualmente medalhões se todos foram cabalmente condenados? Um esquema, digo de passagem, testado também com o PSDB em Minas Gerais. Prender gentinha e pessoas comuns é banal. Mas como prender superiores, trancafiar “os homens” e enjaular mandões apadrinhados ao governo?
“Não tenho tempo para mencionar nomes e detalhes porque em meia hora devo me apresentar à corte do meu condado para finalizar o divórcio com a minha quarta esposa, a queridíssima Susan, já que caí de amor por Ellen (três anos mais jovem e com um doutorado em antropologia ontológica) neste último verão.
“Mas revisitei o ‘velho’ Machado e o encontrei mais novo do que nunca. Como você há de lembrar, a ‘teoria’ se faz em plena passagem de um dia pra outro e como um presente de aniversário para um filho rico e idiota, no momento em que um pai sábio e realista assinala que ser ‘medalhão’ é o papel social mais importante da cena brasileira. Entre todas as carreiras, diz a portas fechadas, o ideal no Brasil é ser um medalhão. E quais são as características dos medalhões?
“A primeira é a atitude ou a forma. A gravidade: esse mistério do corpo mas que, neste seu Brasil, manifesta-se pela seriedade rabugenta e pela ausência de riso. Encontrei muitos brasileiros assim: sérios e sempre prontos a darem uma bronca dos fracos e a beijarem o rabo dos fortes.
“A segunda é não ter ideias. Sobretudo, ideias novas. Até hoje os medalhões continuam falando em defender o povo pobre, em combater a violência e proteger os vulneráveis (esse novo conceito para os fracos e os subordinados), mas sem apresentar nenhuma novidade porque não arriscam ter uma opinião individualizada e fazem parte de uma turma ou partido. Seguem a mediocridade geral.
“A terceira é trivial e vossos administradores públicos são pródigos em exibi-la. Refiro-me a usar as locuções convencionais, as fórmulas consagradas e incrustadas na memória coletiva. Seguir a inércia geral com frases feitas é básico na construção do medalhão.
“A quarta é a publicidade. Oferecer jantares e obséquios, distribuir comendas e diplomas, produz a propaganda e engendra a imagem da ‘boa gente’ do sujeito relacional e ‘boa-praça’. Essa é a marca da vida pública brasileira feita mais de fortunas pessoais roubadas ao povo por meio de ‘irmandades’ confundidas com partidos políticos, do que de políticas públicas efetivamente transformadoras.
“A quinta é não ter opinião. Ou seja: mesmo pertencendo a um partido ideologicamente cheio de opinião, jamais infringir as regras e as obrigações estabelecidas, como o dar-para-receber.
“A sexta, taxativa, é ser vulgar. Declares, como fez Maduro outro dia, que os comunistas roubam tanto quanto os capitalistas. Ou como os medalhões mansaleiros que você é um ‘preso politico’ e não uma exceção que confirma a regra: políticos que estão (mesmo contra a vontade) tentando prender!
“A vulgaridade que impede embate de ideias e as decisões que resgatam a virtude formam o centro dos governos de coalização que vocês tanto admiram e que nós, nesses Estados Unidos(?), não conseguimos realizar. Essa cisão e essa conjunção entre ser ideologicamente preciso e pessoalmente impreciso são a base no medalhão.
“Como medalhão, você tem que ser igualitário no discurso público, mas desigual na vida caseira. Há muito mais em Machado, mas um divórcio e um juiz que não ri e uma mulher zangada me esperam. O certo, porém, é que seguindo essa teoria vai ser um problemão prendê-lo no Brasil.
“Calorosas lembranças,
“Dick.”
04 de dezembro de 2013
Roberto DaMatta
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