"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 10 de julho de 2016

AFINAL, QUE SE SALVA?


Somos o país do presente excêntrico, em que o absurdo coabita com a normalidade

A política surgiu como disputa de ideias em torno da melhor forma de poder. Pela História afora, porém, governar foi sempre uma guerra pelo poder, com o crime no papel principal. Ou como ingrediente único - Shakespeare já nos mostrou o que se escondia sob os lençóis de reis e rainhas. Na era moderna, a democracia representativa surgiu para que o debate e o diálogo político substituíssem o crime.

Mas o crime tem imensa capacidade de modificar a aparência e - tal qual molusco - se readaptar a qualquer habitat sem deixar de ser o que é. Assim, estamos nós a ver o crime passar como se fosse "a banda" do Chico Buarque. E, com variantes e variações, desde Pedro Álvares Cabral...

Na pobreza atual da política, tudo é fácil. A truculência policial talvez seja o crime maior, pois gera a visão de vingança "contra o Estado", que devia proteger os cidadãos. Mas há um crime mais profundo, disfarçado e quase imperceptível: a recusa dos políticos em debater e dialogar. Ou em pesquisar junto à sociedade inteira.

Em vez de soluções, a politicalha busca votos e se exibe num faz de conta, repetindo lugares-comuns. Os políticos atuam como depositários da verdade. São mansos na fala e, na mansidão, alguns até ocultam a mão que busca a carteira e a bolsa alheias.

Outros são hábeis e o que são nem transparece ou se esconde como o metrô subterrâneo. Há ainda os inábeis e antipáticos donos da verdade, como o PT, que criou o rastro de desconfiança responsável pelo apoio popular ao impeachment de Dilma.

Daí surge a visão de que tudo agora "vai mudar" e "a corrupção terá fim".
Se Dilma sair em definitivo, o governo de "salvação nacional" de Temer nos levará à porta do paraíso!

Mas talvez seja difícil entrar no éden: o novo Ministério está cheio daqueles velhos diabos do PMDB e dos partidos da base alugada que foram ministros de Lula da Silva ou de Dilma. Alguns (como o chefe da Casa Civil e "homem forte" do governo Temer), processados em juízo; outros, citados nas propinas da Lava Jato, da qual o próprio presidente interino se saiu airoso: explicou que os R$ 5 milhões recebidos de empreiteiras da Petrobrás foram doações eleitorais...

A cada dia, um novo escândalo faz esquecer o anterior. Já ninguém se recorda das conversas gravadas entre figurões do PMDB com as tramoias para "parar a sangria" da Lava Jato e impedir que "pegue todo mundo", até Aécio Neves e o PSDB. Ao esquecer, não vemos que o exercício da política virou conspiração com centenas de cúmplices - de grandes empresá- rios a ministros, parlamentares e simples vereadores.

Um protege o outro, os adversários se unem e se solidarizam para apagar os rastros do crime. Tantos são os cúmplices que é difícil identificar o chefão.

O ato de governar pode não ter aparência de crime, mas há muito, entre nós, é um consórcio de interesses difusos para outros usos. As "machadadas" do ex-presidente da Transpetro escancararam o assalto na área federal, mas na estadual (e municipal) é igual - muda quase só o CPF dos beneficiários.

Nos governos Lula e Dilma o PT, o PMDB e a base alugada repartiam o que caía na rede e, em casos extremos, simulavam administrar alguma coisa. Com Temer, idem ibidem. Tudo igualzinho, ainda que Henrique Meirelles tente dar outra impressão num governo com gente envolvida na Lava Jato e do qual Eduardo Cunha é um dos oráculos.

Agora o PT está de fora, mas não nos preocupemos. Com o velho estilo, lá continuam o PP e os alugados de sempre, além de gente do PSDB e do DEM que posava de donzela. O comunista PCdoB pede dinheiro a capitalistas e o "socialismo" do PSB monta empresa fantasma que movimenta R$ 600 milhões.

E todos sob a regência do PMDB, como revelou Sérgio Machado, com a autoridade de ex-senador do PSDB, candidato ao governo do Ceará pelo PMDB e, por indicação dos chefões deste partido, levado por Lula (e Dilma) à direção da bilionária Transpetro. Dos alugáveis, só o PDT não aparece: será que lhe bastaram as falcatruas de R$ 500 milhões no Ministério do Trabalho, sob investigação da Polícia Federal?

Em tempos de bonança todos se deleitam, imunes a protestos, panelaços ou buzinaços, e até seus palhaços parecem de aço. A penúria faz o PT arcar com a culpa sozinho, como se fosse o único consorciado, dono absoluto daquilo que o PMDB maneja tão habilmente, há anos, que está presente apenas nos momentos sem penas. O PP, "partido paulo-malufista", com a tradição engenhosa de seu guia, fez Paulo Roberto Costa levar à Petrobrás a alta tecnologia do assalto.

Isso tudo mostra que Brasil não é só "o país do futuro", como disse Stefan Zweig, repetindo Clemenceau. Somos também o país do presente excêntrico, em que o absurdo surge aos borbotões e coabita com a normalidade. A convivência às vezes é tão próxima e tão íntima que parece, até, tratar-se de inseparáveis irmãos siameses.

Os parâmetros e pontos de referência somem como se nunca tivessem existido. Nossos modelos de vida desapareceram da política, escasseiam no empresariado, são desprezados na ciência, nas artes e nas universidades. As novas igrejas (interessadas no materialismo dos cifrões) já não são refúgio do espírito. Não há modelos sequer no futebol, em que já fomos exemplo para o mundo.

A população inteira anseia por modelos confiáveis, não como messias, mas como honesta referência a que apegar-se na trepidante (e trêmula) sociedade de consumo, que a cada dia nos impinge uma quinquilharia nova como algo eterno. Mas nos deparamos só com está- tuas de areia, que o vento destrói. Ou joias de falso ouro, que enferrujam com o suor.

Nenhuma análise ou interpretação, por mais profunda e sábia que seja, suplanta a descrição sumária dos absurdos de cada dia. Não repetirei o que jornais, TV e rádio contam sobre o conluio corrupto entre políticos e empresários oportunistas.

Os fatos falam por si e a avalanche de escândalos leva a indagar: quem se salva?


10 de julho de 2016
Flávio Tavares, O Estado de S. Paulo
JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA EM 2000 E 2005

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