Uma ignomínia levou-o a dar um tiro na cabeça. O crânio explodiu, imitando o escândalo no qual estava envolvido como membro de um antigoverno.
Fiz um “seppuku”, disse. Pratiquei um suicídio em nome da honra que os governantes deslembraram.
Foi conduzido para o umbral entre a vida e a morte, entre a vergonha e a culpa, entre a admissão da mentira e o falso “fiz tudo dentro da lei”.
Mal se inteirou de sua condição quando foi capturado por um programa de televisão no qual era obrigado a responder a perguntas sobre sua vida. Era curioso vê-lo dizendo verdades na televisão, mas mentindo perante a lei.
Neste estado interrogativo, tão a gosto de uma sociedade na qual a mentira vencia o bom senso, permaneceu por 300 anos espirituais, até que uma entidade do Ministério do Esquecimento fez com que atuasse como personagem de uma novela de 130 mil capítulos.
Ficou feliz porque o programa o colocava em cotejo consigo mesmo, mas a novela era um modo de escapar desse abominável confronto.
Transcrevo alguns dos problemas suscitados pelo seu caso e discutidos pelos mestres espirituais das esferas que tive o poder de alcançar, pois, como sabem os meus confrades, meu alcance não é muito alto. Penso que o leitor, cansado desse entre e sai rotineiro do tabloide, tenha interesse em algo mais transcendental.
E por que não se até o famoso Japonês da Federal é também criminoso, mas está trabalhando na própria polícia que o prendeu?
Quando o policial é preso, mas tem suas prerrogativas policiais, cabe a pergunta: por que não anistiar todo mundo e dissolver de uma vez o Brasil?
Não há sistema que não tenha um elo com uma dada época, de modo que a (i)moralidade que levou o nosso herói ao suicídio é apenas mais transparente do que as outras.
A busca de um código externo não seria a nossa maior carência, precisamente porque não há nenhum norte magnético humano, mas apenas receitas, as quais exigem, além de internalização e cumplicidade, a consciência de que devemos preservá-las?
Se a liberdade abre todos os caminhos, o radicalismo surge como uma âncora. Não seria a crença que torna o sofrimento do mundo mais aceitável? As crenças não seriam os polos nos quais os tênues fios que eventualmente nos suspendem estão ligados?
Mas como seguir normas e regras sabendo que elas são relativas? Aqui, verdade e virtude; debaixo do Equador, quem sabe?
Como tornar-se humano sem esse diálogo com as coisas que existiam antes de nós, que vivem mais do que nós e que, como a morte, não vergam diante do vento, derretem com o calor, congelam com o frio ou desaparecem diante das nossas lágrimas?
A presença da finitude não é a marca da consciência humana?
Essa máquina de comparação que nos faz sofrer (e fruir) justamente porque sabe que tudo passa e, mais que isso, é esquecido?
Antigamente, havia a vergonha. O refrão do Boris Casoy, “É uma vergonha!”, fazia efeito. O individualismo fez nascer a culpa que eventualmente pede perdão. Mas se nós suspendermos a responsabilidade individual e situarmos todos os sujeitos no lado certo da história, suprime-se tanto a vergonha quanto a culpa.
Se eu sou um instrumento do progresso do povo, eu posso tirar o meu — como virou banalidade neste nosso triste Brasil, mantendo viva a crença de que a minha receita está certa. Se eu sei como a lógica da história opera e apenas enxergo o lado satânico do mercado, então não é mais preciso ter vergonha ou culpa. Fico ofendido apenas quando sou acusado. Afinal, eu sou maior do que o sistema.
No silêncio da tenebrosa noite, descobri que só o nada é fixo.
Mas não é justamente por isso que em todos os tempos e lugares nos debatemos pelo governo da lei? Obediência, honra, vergonha, culpa, crença e filiação são simultaneamente hábitos relativamente aprendidos e decisões tomadas em relativa liberdade. Sem isso, não há história.
Quanto mais conscientes nos tornamos, mais dramáticas são essas escolhas que se transformam em identidades.
As escolhas nos diferenciam. Eu roubo milhões e, tendo o dom da negação, durmo o sono justo dos trapaceiros; você ralhou com o filhinho e não dorme...
As regras são como os fios dos equilibristas: finos, oscilantes e perigosos.
E por que não despencamos?
Porque outros fios nos prendem a outras pessoas que, como nós, ousam caminhar no alto. Pois mesmo sendo da planície, somos atraídos pelos fios que nos ligam às montanhas. Aquelas montanhas cuja magia obriga a ver os dois lados.
E a subir e... descer!
PS: Dedico esta medíocre reflexão aos meus queridos alunos do seminário sobre a “Montanha mágica” que um Thomas Mann, difícil de abranger, tem nos irmanado na ignorância e na honestidade.
17 de junho de 2016
Roberto DaMatta, O Globo
Fiz um “seppuku”, disse. Pratiquei um suicídio em nome da honra que os governantes deslembraram.
Foi conduzido para o umbral entre a vida e a morte, entre a vergonha e a culpa, entre a admissão da mentira e o falso “fiz tudo dentro da lei”.
Mal se inteirou de sua condição quando foi capturado por um programa de televisão no qual era obrigado a responder a perguntas sobre sua vida. Era curioso vê-lo dizendo verdades na televisão, mas mentindo perante a lei.
Neste estado interrogativo, tão a gosto de uma sociedade na qual a mentira vencia o bom senso, permaneceu por 300 anos espirituais, até que uma entidade do Ministério do Esquecimento fez com que atuasse como personagem de uma novela de 130 mil capítulos.
Ficou feliz porque o programa o colocava em cotejo consigo mesmo, mas a novela era um modo de escapar desse abominável confronto.
Transcrevo alguns dos problemas suscitados pelo seu caso e discutidos pelos mestres espirituais das esferas que tive o poder de alcançar, pois, como sabem os meus confrades, meu alcance não é muito alto. Penso que o leitor, cansado desse entre e sai rotineiro do tabloide, tenha interesse em algo mais transcendental.
E por que não se até o famoso Japonês da Federal é também criminoso, mas está trabalhando na própria polícia que o prendeu?
Quando o policial é preso, mas tem suas prerrogativas policiais, cabe a pergunta: por que não anistiar todo mundo e dissolver de uma vez o Brasil?
Não há sistema que não tenha um elo com uma dada época, de modo que a (i)moralidade que levou o nosso herói ao suicídio é apenas mais transparente do que as outras.
A busca de um código externo não seria a nossa maior carência, precisamente porque não há nenhum norte magnético humano, mas apenas receitas, as quais exigem, além de internalização e cumplicidade, a consciência de que devemos preservá-las?
Se a liberdade abre todos os caminhos, o radicalismo surge como uma âncora. Não seria a crença que torna o sofrimento do mundo mais aceitável? As crenças não seriam os polos nos quais os tênues fios que eventualmente nos suspendem estão ligados?
Mas como seguir normas e regras sabendo que elas são relativas? Aqui, verdade e virtude; debaixo do Equador, quem sabe?
Como tornar-se humano sem esse diálogo com as coisas que existiam antes de nós, que vivem mais do que nós e que, como a morte, não vergam diante do vento, derretem com o calor, congelam com o frio ou desaparecem diante das nossas lágrimas?
A presença da finitude não é a marca da consciência humana?
Essa máquina de comparação que nos faz sofrer (e fruir) justamente porque sabe que tudo passa e, mais que isso, é esquecido?
Antigamente, havia a vergonha. O refrão do Boris Casoy, “É uma vergonha!”, fazia efeito. O individualismo fez nascer a culpa que eventualmente pede perdão. Mas se nós suspendermos a responsabilidade individual e situarmos todos os sujeitos no lado certo da história, suprime-se tanto a vergonha quanto a culpa.
Se eu sou um instrumento do progresso do povo, eu posso tirar o meu — como virou banalidade neste nosso triste Brasil, mantendo viva a crença de que a minha receita está certa. Se eu sei como a lógica da história opera e apenas enxergo o lado satânico do mercado, então não é mais preciso ter vergonha ou culpa. Fico ofendido apenas quando sou acusado. Afinal, eu sou maior do que o sistema.
No silêncio da tenebrosa noite, descobri que só o nada é fixo.
Mas não é justamente por isso que em todos os tempos e lugares nos debatemos pelo governo da lei? Obediência, honra, vergonha, culpa, crença e filiação são simultaneamente hábitos relativamente aprendidos e decisões tomadas em relativa liberdade. Sem isso, não há história.
Quanto mais conscientes nos tornamos, mais dramáticas são essas escolhas que se transformam em identidades.
As escolhas nos diferenciam. Eu roubo milhões e, tendo o dom da negação, durmo o sono justo dos trapaceiros; você ralhou com o filhinho e não dorme...
As regras são como os fios dos equilibristas: finos, oscilantes e perigosos.
E por que não despencamos?
Porque outros fios nos prendem a outras pessoas que, como nós, ousam caminhar no alto. Pois mesmo sendo da planície, somos atraídos pelos fios que nos ligam às montanhas. Aquelas montanhas cuja magia obriga a ver os dois lados.
E a subir e... descer!
PS: Dedico esta medíocre reflexão aos meus queridos alunos do seminário sobre a “Montanha mágica” que um Thomas Mann, difícil de abranger, tem nos irmanado na ignorância e na honestidade.
17 de junho de 2016
Roberto DaMatta, O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário