No cenário delineado pela queda do Muro de Berlim e pela dissolução do socialismo real, a famosa operação judicial desvendou boa parte da intrincada rede de corrupção no país que fora uma das fronteiras mais "quentes" da guerra fria. Ruía assim, estrepitosamente, a "Tangentopoli", a cidade da propina, que mantinha azeitado um poderoso sistema de poder, sustentado, ainda por cima, pela relação de forças internacionais típica do período.
Os democratas-cristãos dirigiram o Estado e o próprio processo de modernização do país, administrando de modo "transformista" - cooptando e recrutando para funções em geral subalternas - forças moderadas da esquerda, como o tradicionalíssimo PSI. O principal partido de oposição, com toda a sua progressiva "heresia" em relação ao monolítico mundo soviético, era o PCI. Um partido de cultura política e intelectual acima do comum, participante ativo da modernização, especialmente por administrar com espírito plural algumas das regiões mais ricas e por protagonizar embates como o do divórcio e o dos direitos reprodutivos da mulher. E, apesar disso, condenado a uma situação "eternamente" minoritária e oposicionista.
Mais além dos escandalosos casos de malversação do dinheiro público e do comprometimento entre máfias, lojas maçônicas suspeitas e altas esferas da política e da economia, esta era a raiz de "Tangentopoli": a interdição da competição democrática, com o veto - contrário à legalidade, mas amparado pela "constituição material" do país - à presença de uma importante força popular na área de governo, fosse ainda nas condições do cauteloso "compromisso histórico" pactuado entre dirigentes da envergadura de Aldo Moro e Enrico Berlinguer, para fazer referência à conjuntura de meados dos anos 1970, anterior às "mãos limpas".
Como não pode deixar de ser, entre o mundo de ontem e o nosso mundo há todo um enredo tecido de continuidades e descontinuidades. Para apontar um dado de total descontinuidade, caíram por terra, mesmo na turbulenta América Latina, os vetos que impediam à esquerda, em sentido lato, aceder aos governos e conquistar vistosas bancadas parlamentares, além de buscar a correspondente implantação social. Uma novidade "epocal", que passou a legitimar, de uma só vez, todos os atores que se dispusessem a jogar o jogo das instituições, articulando a partir desse terreno privilegiado propostas, concorrentes entre si, de reforma do Estado e da sociedade.
Só personagens egressos da guerra fria, que, deixados a si mesmos, guardariam até uma certa bizarrice, podem atribuir aos sucessivos governos petistas a intenção de "implantar o comunismo", mediante programas como o Bolsa Família, abençoados por instituições financeiras globais. Inversamente, só os ideologicamente alucinados podem detectar nas dificuldades enfrentadas pelo regime chavista a mão pesada do "império", como se houvesse algum termo de comparação possível entre os males que afligiram ou afligem os bolivarianos Hugo Chávez e Nicolás Maduro e as sangrentas vicissitudes que derrubaram Salvador Allende.
Mas continuidades também existem e não é anedótico ou irrelevante, por exemplo, que um dos governos petistas - para não mencionar a "sociedade civil" que sustenta esse partido - tenha acolhido controverso personagem da esquerda armada italiana dos anos 1970, aparentando escassa compreensão da pacífica circunstância eleitoral que o trouxe ao poder de Estado a partir de 2003. Ao mesmo tempo, a solidariedade com os regimes ditos bolivarianos, nos quais a alternância parece um verbete cancelado, faz temer que no cerne do petismo também operem categorias de uma esquerda atrasada, para a qual as dinâmicas institucionais contam pouco - e tudo se resolve em "disputa política" na qual estão franqueados golpes abaixo da linha da cintura.
Segundo os parâmetros dessa luta, e a exemplo das realidades bolivarianas, constrói-se agressivamente uma resposta à questão clássica de um arquiconservador: "Quem é meu inimigo?". O inimigo seria a social-democracia à moda do PSDB, travestida pura e simplesmente de neoliberal, assim como outrora stalinistas estigmatizavam social-democratas como "social-fascistas". E assim como, entre nós, "neoliberais" ou "golpistas" serão todos os adversários - Marina, Aécio ou quem quer que se apresente como ameaça eleitoral.
O problema com categorias anacrônicas é que se chocam com as exigências da política em situações complexas. Imaginando interditar o funcionamento natural das instituições, possibilitam a interpretação de que, em outra época e latitude, se tenta armar um sistema de poder espraiado pelos organismos de Estado e pelo sistema de empresas públicas, como na Itália antes das "mãos limpas".
Lá, a investigação judicial teve como alvo um sistema que girava em torno de democratas-cristãos e socialistas (dos tempos de Bettino Craxi), ao passo que, no núcleo duro da esquerda, havia um agrupamento que, não sem contradições, elaborou o lema (atualíssimo!) da "democracia como valor universal". Aqui, desgraçadamente, pode-se conjeturar que o eixo central girou, ou gira, em torno do principal partido de esquerda, como a confirmar que tentações autoritárias desconhecem cor ideológica. Faltando freios legais, a sedução do poder é fatal: não há quem dela se esquive, ainda que com doce constrangimento e dose maciça de sofismas.
15 de fevereiro de 2015
Luis Sergio Henriques, O Estado de S. Paulo
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