"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

AMENIDADES LINGUÍSTICAS ( 4 )

Propina: como uma palavra inocente se afundou no crime

pedro barusco petrobras“Propina”, nossa Palavra da Semana, é um termo mais leve nos dicionários do que na vida real brasileira. Sinônimo de gorjeta, aquilo que se paga a mais por um serviço prestado satisfatoriamente, não tinha sequer registrado até poucos anos atrás, nem no Houaiss nem no Aurélio, o sentido de prática ilícita, suborno.
Isso mudou, felizmente. 

Hoje os dois mais importantes dicionários brasileiros já incorporaram, ainda que como acepções secundárias, aqueles sentidos criminosos que a imprensa mobiliza ao chamar de propina a fortuna – entre 150 milhões e 200 milhões de dólares – que o ex-gerente de Serviços da Petrobras, Pedro Barusco (foto), declarou à Justiça ter sido paga ao longo de dez anos ao tesoureiro nacional do PT, João Vaccari Neto (leia mais sobre isso).
Como foi que nós viemos parar aqui?

O certo é que nasceu inocente a propina, na expressão grega propino, “beber antes”, que acompanhava os brindes com que um anfitrião saudava seu convidado – “Bebo à sua saúde!” – antes de dar um gole e lhe passar o copo. Prova de generosidade, sim, mas também voto de confiança e intimidade.

O verbo passou com sentido semelhante ao latim clássico propinare, ao substantivo do latim tardio propina e daí, já no século XVII, ao português, mas agora com uma importante ampliação de sentido. Não mais restrita à mesa, aos comes e bebes, a propina era assim registrada no início do século XVIII por Rafael Bluteau, o primeiro dicionarista de nossa língua:
Hoje se dá propina em dinheiro, ou em tantas varas de pano, e outras coisas usuais.
Bluteau ainda não falava de corrupção, não como a entendemos hoje, mas a prática de azeitamento das engrenagens burocráticas a que ele se refere é seguramente uma ancestral de nossas mazelas:
…em Portugal se dão propinas aos oficiais da Casa Real, aos tribunais, ao reitor, chanceler, lentes, licenciados, bedéis etc. da universidade.
Foi daí que saiu, por um lado, o sentido moderno de propina na terra de José Saramago, já oficial e expurgado de qualquer conotação escusa: “Quantia que se paga ao Estado a fim de se poderem realizar matrículas, exames ou outros actos escolares” (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).
Mas foi daí que saiu também, pelo lado oposto, o sentido moderno de propina no Brasil, extraoficial e tão carregado de conotações escusas que deveria nos levar – como levou os dicionaristas – a fazer uma pausa para refletir e mudar de rumo enquanto é tempo.

*
Quando publiquei uma primeira versão do texto acima, em julho de 2010, os maiores dicionários brasileiros ainda comiam mosca em suas definições do substantivo “propina”. Evoluímos de lá para cá do ponto de vista lexicográfico, fazendo justiça a um uso que a língua brasileira consagrou há tempos. Pena que nesse mesmo período a cultura da propina, pelo visto, tenha evoluído ainda mais.

15 de fevereiro de 2015
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