Vejo Leilane Neubarth entrevistando o governador Pezão, do Rio de Janeiro, na Globo News. O tema é bala perdida. Mais de 30 atingidos só no mês de janeiro.
De vez em quando alguma coisa faz o Brasil lembrar da maior guerra do mundo ... que é precisamente a sua. Outro dia assisti, na mesma Globo News, um chororô de uma das apresentadoras da tarde encima dos "orfãos do Ebola". Mostrava-se indignada com o pouco que o mundo tem feito por eles, apesar da ONU ter alguns programas em curso para isso e de gente como os Gates, da Microsoft, ter investido alguns milhões para conter a praga.
Fui ao Google. O ebola, desde que começou, contaminou uns 15 ou 16 mil e matou cinco mil e poucos. Dez vez menos do que o Brasil mata a tiro por ano.
E o Estado Islâmico, que horroriza o mundo?
Fui ao Google de novo. Em outubro passado a ONU fez um levantamento "completo" e publicou um relatório que o mundo inteiro, a imprensa brasileira inclusive, chamou de "aterrorizante". Nos 10 meses até aquele momento, o EI tinha matado entre 9 e 10 mil pessoas. Cinco, quase seis vezes menos do que o Brasil mata a tiro por ano...
Socorro, ONU! Socorro, Bill Gates! Nós somos cinco, seis Estados Islâmicos, com tiro de fuzil calibre 308 na cabeça de bebê, "micro ondas" e o diabo!!!
O nosso é um país muito doente. Talvez o mais doente do mundo porque nós somos como os bêbados, como os drogados: não admitimos; quase não percebemos que estamos doentes.
E volto pra Leilane Neubarth. Ela e Pezão vão emendando as frases um do outro:
"Não adianta só polícia.; tem de criar um ambiente favorável à paz. Tem de ter um esforço nos tres niveis de governo, municipal, estadual e federal. Escolas, comunidades, tudo tem de ser mobilizado. Escola em tempo integral. Trancar todo mundo o dia inteiro na escola. Fechar as fronteiras do Brasil ao armamento pesado. Mudar o Estatuto do Menor que mata e não paga e mata de novo"...
Todos esperam tudo do governo. O próprio governo espera tudo do governo...
E rola a mentira. Metade mentira, metade perplexidade.
E quem é que quer ficar o dia inteiro nas escolas que temos? Quem ainda engole as escolas que temos é quem já não vai mesmo pegar no fuzil. Não é exatamente quem tem; é quem, apesar de tudo, ainda insiste em ser família.
E a família? A instituição família? O que é que restou da família? Quem é que está destruindo a família? O quê é que está destruindo a família? O que é que não "tanto faz" nesse Brasil que sobrou? O que é que não é "tudo bem"; "normal"?
Ninguém põe a mão na própria consciência, a começar pelas TVs. Fechar as fronteiras às armas é impossível. Tem 40 vezes mais fuzil por habitante na Suíça e nada. Ou até nos Estados Unidos com aqueles louquinhos super "hype". O que nós precisamos é fazer mais gente achar que não vale a pena viver do fuzil. Não é só punir quem usa o fuzil que resolve a coisa.
É principalmente punir quem faz tanta gente no Brasil achar que nesta merda só mesmo vivendo do fuzil. Quem prova todos os dias ao Brasil que aqui só se vence pela força. Ou arrumando uma têta no governo. É tratar de fabricar as provas de que aqui se vence pelo esforço. De que quem "faz" paga, desde lá de cima. A começar por quem "faz" com o dinheiro público, com o dinheiro dos miseráveis, inclusive pra dispensar a família até de ser família.
O que nós precisamos é tratar de criar e vender um outro horizonte ético; um outro ideal de ser que não seja a assimilação do canalha e a louvação da canalhice de todas as novelas que o brasileiro traga desde que nasce onde não ha ninguém que não traia a tudo e a todos; onde não ha ninguém que não seja canalha mas nem por isso pode ou deve ser apontado como tal. O que nós precisamos é descontaminar nossas escolas da estruturação "científica" da canalhice empurrada covardemente, dolosamente, goela abaixo de crianças virgens por "professores" consciente e deliberadamente acanalhados.
Não vai parar...
Nossa doença é sistêmica. Pega-nos de cabo a rabo. Requer um tratamento sistêmico. Uma reforma das linguagens e das sensibilidades. E nessa ordem. Uma reforma; um realinhamento semântico do Oiapoque ao Chuí. As sensibilidades não se reformarão, nem antes, nem independentemente da linguagem.
É preciso tomar a linguagem como um remédio. É o primeiro e o mais importante dos remédios. Se já nos esquecemos como é; se não conseguimos mais sentí-lo natural e espontaneamente, é preciso teatralizar o escândalo e o choque; produzi-los artificialmente e encena-los diante do que é escadaloso e chocante até que se restabeleça num novo encadeamento de causas e efeitos.
Recusar; policiar-se para recusar adotar, no jornalismo e na vida, a linguagem e a lógica dos bandidos apenas porque são os bandidos que ganham sempre, apenas porque são eles que se tornaram a norma É preciso voltar a ser Quixote, obrigar-se a voltar a ser Quixote. Fazer disso uma disciplina até que voltemos a tomar como normal a normalidade.
Senão, não nos iludamos: a maior guerra do mundo não vai parar nos 56 mil mortos por ano.
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