Ouvir e mostrar que se importa com o que ouve
No seu primeiro ano de governo, enfrentou tentativa de golpe, revolta estudantil contra o aumento de passagens, CPI na Petrobras, revolta de produtores agrícolas afetados pela queda de preços no mercado internacional e sindicatos inquietos com a escalada da inflação.
Dos quatro presidentes eleitos entre as duas ditaduras do século passado, Juscelino Kubitschek foi aquele que chegou ao poder com o menor número de votos (35,6%). Venceu em 15 Estados e perdeu em nove.
JK propôs anistia aos militares que o ameaçaram com golpe e abriu o Palácio do Catete para estudantes rebelados, udenistas, cafeicultores e sindicalistas. Foi o único dos civis daquele período a concluir o mandato.
Dilma é a presidente mais minoritária (41,6% no 1o turno e 51,6% no segundo) desde o golpe que abreviou a geração de Juscelino. Assim como JK, também venceu em 15 Estados, mas perdeu em 12 - nos dois turnos.
Antes de o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lhe dizer ontem que precisa se abrir para os que não a elegeram, outro aventureiro já havia lançado mão da mesma advertência.
Numa passagem desapercebida de seu discurso na eleição à Presidência da Câmara, o deputado Eduardo Cunha distinguiu a vitória eleitoral de Dilma do que chamou de "hegemonia eleitoral" e disse que só esta lhe daria "hegemonia política".
A hegemonia pressupõe consentimento de interesses mais que a soma de votos. Mas o presidente da Câmara não recorre a Gramsci. Dá sua própria explicação para a ausência de hegemonia que conforma o poder da presidente: "Quando Lula e Dilma ganharam as eleições anteriores foi uma vitória tão grande que não deu margem a contestações. Desta vez o resultado foi muito mais apertado. Esses 28 partidos da Câmara são decorrência da falta de hegemonia eleitoral da presidente e do PT, que só tem 13% dos assentos da Casa".
Não se trata de um golpista. Seu projeto está condicionado à permanência da presidente no poder. Mais do que a relação entre Dilma e Lula, é aquela entre os presidentes da República e da Câmara que moldará o segundo mandato.
Cunha ganhou a eleição da Câmara com o apoio desses partidos cuja existência debita na ausência de hegemonia eleitoral da presidente. Na falta de uma polaridade no Congresso que reproduza o resultado da eleição presidencial, busca galvanizar os deputados que estão na base do governo, mas cujos eleitores não marcaram 13 para presidente.
A esse movimento de expansão de Cunha contrapõe-se o acanhamento da presidente na dificuldade de ampliar as bases de sua legitimidade. Para ficar apenas nas quatro últimas nomeações de seu governo: Secretaria de Assuntos Estratégicos, Autoridade Pública Olímpica, Caixa Econômica Federal e Petrobras.
Mangabeira Unger reforça a imagem de um governo sem talento para as ambiguidades. Edinho Silva é um tesoureiro de campanha no comando do evento internacional de maior vulto do segundo mandato. Miriam Belchior marcou sua despedida do Conselho da Petrobras com o voto contrário ao balanço que derrubou Graça Foster. Aldemir Bendine é a demonstração de que o mercado desconfia de seus próprios conceitos, como o de governança.
As escolhas sinalizam as dificuldades em se convencer a presidente a ouvir, mostrar que se importa com o que ouve e é capaz de acreditar que a grande maioria dos brasileiros, mesmo aqueles que não a escolheram, querem que cumpra seu mandato até o fim. Sem essa ausculta, pode até apelar a João Santana mas, no máximo, vai conseguir ampliar a comunidade de surdos para além do Planalto.
Age como quem parece ter gastado sua cota de concessões com a escolha de Joaquim Levy. No conjunto da obra, o ministro da Fazenda aparece como a garantia de que, resguardada a base monetária, o voluntarismo continue em voo livre.
Os dois ministros mais bem aparelhados para a negociação política, Jaques Wagner e Aldo Rebelo, foram alocados em pastas periféricas enquanto o coração do governo, a Casa Civil, continua nas mãos doministro com quem a presidente toca de ouvido a sonata do autismo.
Dilma Rousseff conseguiu convencer até a alguns de seus mais próximos colaboradores em outubro do ano passado de que ouviria mais quando, uma hora depois de a Justiça Eleitoral informar sua irreversível vantagem, disse aos brasileiros que "queria ser uma pessoa melhor".
Era apenas a presidente dando início ao terceiro turno. Passados mais de três meses do fim daquela campanha, hoje é possível se dar conta de que os termos em que a conduziu, para além dos adversários, foram prejudiciais a si mesma.
Em 2010 a presidente já havia sido apresentada ao trailer da campanha do ano passado. Mas Lula não saía do palanque e a campanha era menos arriscada. Naquele momento, rejeitou as simplificações, por burras e ingênuas.
No miolo, ainda era a mesma Dilma Rousseff que, 40 anos antes, ao deixar a prisão depois de ignominiosa tortura, protegeu-se sob o manto da honestidade intelectual, do rigor e da tarefa cumprida. As medidas ainda eram da heroica guerrilheira, mas foi com elas que entrou no jogo político.
Este manto começou a se rasgar quando Dilma optou, quatro anos depois, pelas verdades seletivas da campanha.
Esgarçou-se mais com o cerco à Petrobras e o vozerio de racionamento, rebaixamento e impedimento. A crise passou a colocar em xeque as virtudes em que se fiou lá atrás para voltar ao jogo e ir pra frente com o Brasil.
Em algum momento será aconselhada a recosturar o manto para pedir desculpas, como Lula o fez, de Paris, quando se escancarou o mensalão.
Tem três anos, dez meses e 15 dias a cumprir. Não é uma sentença. É a missão que o eleitor, livre e soberanamente, lhe conferiu. Não é a primeira nem será a última presidente a começar um mandato sob crise e não há razão objetiva que a impeça de superá-la.
Carlos Araújo, ex-marido e uma das pessoas mais a influenciam, costuma presentear a ex-mulher com livros sobre Getúlio Vargas, brasileiro de sua predileção, mas é Juscelino quem parece faltar à sua cabeceira.
14 de fevereiro de 2015
Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico
Dos quatro presidentes eleitos entre as duas ditaduras do século passado, Juscelino Kubitschek foi aquele que chegou ao poder com o menor número de votos (35,6%). Venceu em 15 Estados e perdeu em nove.
JK propôs anistia aos militares que o ameaçaram com golpe e abriu o Palácio do Catete para estudantes rebelados, udenistas, cafeicultores e sindicalistas. Foi o único dos civis daquele período a concluir o mandato.
Dilma é a presidente mais minoritária (41,6% no 1o turno e 51,6% no segundo) desde o golpe que abreviou a geração de Juscelino. Assim como JK, também venceu em 15 Estados, mas perdeu em 12 - nos dois turnos.
Antes de o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lhe dizer ontem que precisa se abrir para os que não a elegeram, outro aventureiro já havia lançado mão da mesma advertência.
Numa passagem desapercebida de seu discurso na eleição à Presidência da Câmara, o deputado Eduardo Cunha distinguiu a vitória eleitoral de Dilma do que chamou de "hegemonia eleitoral" e disse que só esta lhe daria "hegemonia política".
A hegemonia pressupõe consentimento de interesses mais que a soma de votos. Mas o presidente da Câmara não recorre a Gramsci. Dá sua própria explicação para a ausência de hegemonia que conforma o poder da presidente: "Quando Lula e Dilma ganharam as eleições anteriores foi uma vitória tão grande que não deu margem a contestações. Desta vez o resultado foi muito mais apertado. Esses 28 partidos da Câmara são decorrência da falta de hegemonia eleitoral da presidente e do PT, que só tem 13% dos assentos da Casa".
Não se trata de um golpista. Seu projeto está condicionado à permanência da presidente no poder. Mais do que a relação entre Dilma e Lula, é aquela entre os presidentes da República e da Câmara que moldará o segundo mandato.
Cunha ganhou a eleição da Câmara com o apoio desses partidos cuja existência debita na ausência de hegemonia eleitoral da presidente. Na falta de uma polaridade no Congresso que reproduza o resultado da eleição presidencial, busca galvanizar os deputados que estão na base do governo, mas cujos eleitores não marcaram 13 para presidente.
A esse movimento de expansão de Cunha contrapõe-se o acanhamento da presidente na dificuldade de ampliar as bases de sua legitimidade. Para ficar apenas nas quatro últimas nomeações de seu governo: Secretaria de Assuntos Estratégicos, Autoridade Pública Olímpica, Caixa Econômica Federal e Petrobras.
Mangabeira Unger reforça a imagem de um governo sem talento para as ambiguidades. Edinho Silva é um tesoureiro de campanha no comando do evento internacional de maior vulto do segundo mandato. Miriam Belchior marcou sua despedida do Conselho da Petrobras com o voto contrário ao balanço que derrubou Graça Foster. Aldemir Bendine é a demonstração de que o mercado desconfia de seus próprios conceitos, como o de governança.
As escolhas sinalizam as dificuldades em se convencer a presidente a ouvir, mostrar que se importa com o que ouve e é capaz de acreditar que a grande maioria dos brasileiros, mesmo aqueles que não a escolheram, querem que cumpra seu mandato até o fim. Sem essa ausculta, pode até apelar a João Santana mas, no máximo, vai conseguir ampliar a comunidade de surdos para além do Planalto.
Age como quem parece ter gastado sua cota de concessões com a escolha de Joaquim Levy. No conjunto da obra, o ministro da Fazenda aparece como a garantia de que, resguardada a base monetária, o voluntarismo continue em voo livre.
Os dois ministros mais bem aparelhados para a negociação política, Jaques Wagner e Aldo Rebelo, foram alocados em pastas periféricas enquanto o coração do governo, a Casa Civil, continua nas mãos doministro com quem a presidente toca de ouvido a sonata do autismo.
Dilma Rousseff conseguiu convencer até a alguns de seus mais próximos colaboradores em outubro do ano passado de que ouviria mais quando, uma hora depois de a Justiça Eleitoral informar sua irreversível vantagem, disse aos brasileiros que "queria ser uma pessoa melhor".
Era apenas a presidente dando início ao terceiro turno. Passados mais de três meses do fim daquela campanha, hoje é possível se dar conta de que os termos em que a conduziu, para além dos adversários, foram prejudiciais a si mesma.
Em 2010 a presidente já havia sido apresentada ao trailer da campanha do ano passado. Mas Lula não saía do palanque e a campanha era menos arriscada. Naquele momento, rejeitou as simplificações, por burras e ingênuas.
No miolo, ainda era a mesma Dilma Rousseff que, 40 anos antes, ao deixar a prisão depois de ignominiosa tortura, protegeu-se sob o manto da honestidade intelectual, do rigor e da tarefa cumprida. As medidas ainda eram da heroica guerrilheira, mas foi com elas que entrou no jogo político.
Este manto começou a se rasgar quando Dilma optou, quatro anos depois, pelas verdades seletivas da campanha.
Esgarçou-se mais com o cerco à Petrobras e o vozerio de racionamento, rebaixamento e impedimento. A crise passou a colocar em xeque as virtudes em que se fiou lá atrás para voltar ao jogo e ir pra frente com o Brasil.
Em algum momento será aconselhada a recosturar o manto para pedir desculpas, como Lula o fez, de Paris, quando se escancarou o mensalão.
Tem três anos, dez meses e 15 dias a cumprir. Não é uma sentença. É a missão que o eleitor, livre e soberanamente, lhe conferiu. Não é a primeira nem será a última presidente a começar um mandato sob crise e não há razão objetiva que a impeça de superá-la.
Carlos Araújo, ex-marido e uma das pessoas mais a influenciam, costuma presentear a ex-mulher com livros sobre Getúlio Vargas, brasileiro de sua predileção, mas é Juscelino quem parece faltar à sua cabeceira.
14 de fevereiro de 2015
Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico
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