Para muita gente, o conceito de ordem é equivalente ao de um sistema comandado de forma centralizada e racionalmente determinado por alguém. Esta é uma associação de conceitos intuitivamente compreensível mas que, infelizmente, leva a uma acepção de ordem muito limitada e incompleta. Um entendimento que historicamente tem vindo a dificultar a compreensão de um conceito que está na base das ideias liberais.
Não devemos por isso ficar surpreendidos quando quem tem um entendimento da ordem assente na planificação e direcção centralizada estranha a prioridade dada pelos liberais clássicos à liberdade e a considera até estar em conflito com a própria possibilidade de ordenação. Mas este paradoxo assenta num equívoco. A chave para o resolver passa, como muito bem salientou Diogo Costa, por entender os fundamentos e o funcionamento da relação interconstitutiva entre ordem e liberdade. [1] Só a noção hayekiana de ordem espontânea permite compreender a esterilidade da discussão sobre se é a ordem ou a liberdade que deve ter primazia. Não apenas porque nem ordem nem liberdade podem isoladamente servir de princípio orientador global, mas porque a própria natureza imperfeita e parcial do conhecimento humano sugere a inviabilidade de projectos que reduzam a ideia de ordem a uma hierarquia de comando e controle centralizado.
A manifesta impossibilidade de qualquer mente humana – considerada individualmente – dominar e articular de forma plena todo o conhecimento imprescindível para conceber e implementar uma ordem social complexa aponta precisamente para a necessidade de as sociedades livres assentarem num sistema jurídico evolutivo, descentralizado e policêntrico. Quando se restringe a noção de ordem a um sistema deliberadamente imposto por decisores humanos externos (ou hierarquicamente superiores), são os fundamentos da própria liberdade e prosperidade das sociedades que são postos em causa. [2]
O carácter (inevitavelmente) limitado e imperfeito do nosso conhecimento sobre as próprias regras nas quais assenta uma ordem social complexa é bem expresso por Hayek na sua obra Os fundamentos da liberdade:
A maioria destas regras nunca foram deliberadamente inventadas tendo-se antes desenvolvido através de um processo gradual de tentativa e erro em que a experiência de sucessivas gerações ajudou a fazer delas o que são. Assim, na maioria dos casos, ninguém sabe ou alguma vez soube todas as razões e considerações que conduziram a que fosse dada uma determinada forma a uma regra. [3]
Sem ter consciência plena das implicações desta afirmação, que nos remete para os insondáveis limites da mente humana e para a complexidade dos processos sociais de ordem espontânea, é fácil cair no erro de apontar uma (incorrecta) oposição entre ordem e liberdade. Uma falsa dicotomia que pressupõe implicitamente a possibilidade de a ordem social ser gerada de forma construtivista a partir de uma hipotética situação de estado de natureza.
Para além de ignorar que a ordenação de sistemas complexos acarreta necessariamente um processo evolutivo, a oposição entre ordem e liberdade sugere uma leitura profundamente enviesada das origens e desenvolvimento do poder político nas sociedades humanas. Historicamente, muitos dos mais importantes avanços civilizacionais que contribuíram para a emergência e consolidação da ordem alargada da interacção humana resultaram de limitações ao poder político impostas pelos governados e por núcleos de poder descentralizados e alternativos. Perante o argumento falacioso de que a complexidade da sociedade exige a imposição da ordem antes de podermos pensar na liberdade, é essencial ter em conta que é essa mesma complexidade que torna impossível dissociar a ordem da liberdade. O desenvolvimento e a sustentabilidade da “Grande Sociedade”, para utilizar a feliz expressão de Hayek, dependem de uma questão fundamental: a consciência das limitações das nossas próprias capacidades para desenhar e planificar a ordem social.
12 de fevereiro de 2015
* Publicado originalmente em 03/03/2010.
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