Já não podemos adiar a decisão de uma reforma séria
As manifestações de rua de 2013 davam a impressão de que conseguiriam sensibilizar o universo, hermético e abstrato, de nossos poderes. E me refiro aos três níveis de governo. Raros os políticos naquela quadra que usaram palavras de alta voltagem, com severa autocrítica, dignos de uma Roma em estado terminal. Diziam que todos devíamos assumir, sem distinção, a responsabilidade crescente de nossos erros, que era preciso ouvir as vozes das ruas. Foram poucos aqueles que tiveram a coragem de propor uma reforma política madura e consistente. Não faltaram propostas de interesse pessoal, como os que advogavam candidaturas avulsas, em benefício da trajetória pessoal, como se fossem um deus, que descia de paraquedas, para enfrentar (somente no teatro do mundo, na aparência das coisas), o dragão da velha ordem.
O fato é que desde então não saímos do lugar. Perdemos sem dúvida a oportunidade histórica de uma agenda positiva, essa mesma agenda que permanece ausente do debate eleitoral, assim como os temas que interessam ao país, dentre os quais as reformas agrária e urbana. Sofremos de uma avançada miopia e mesmo assim não usamos as lentes adequadas para o momento, porque enxergamos sempre a equação de vassalagem, redutora, entre governança e formas patrimonialistas de gestão, gerando uma série de consequências deploráveis, visceralmente condenadas pelas ruas.
Precisamos voltar à alta dimensão da democracia, quando se apostem na geração de zonas mais ou menos estáveis de consenso, em vez do tráfico de alianças entre alguns partidos mais densos e diversas legendas de aluguel, sem conteúdo, expressão, ideologia, que esperam a corte e o dote. Uma democracia como nuvem de aglomerados, em detrimento de um campo mais sólido e menos mercurial, que levou justamente a uma crítica excessivamente negativa, por parte dos estudantes, mas oportuna, sobre o papel e o lugar da filiação partidária nas manifestações.
Sem a reforma política, não sairemos da entropia do sistema — dentro do qual respiramos — eticamente invertebrado, politicamente tentacular e patrimonialista, que devora, como Saturno, os próprios filhos, reféns de um processo autossuficiente, de uma lógica que tende a se fazer exausta e cartorial.
Já não podemos adiar a decisão de uma reforma séria, nós que defendemos a democracia brasileira, direta e representativa, com partidos formados por questões programáticas, em torno das quais exista um espectro razoável de coalizões.
Como no filme de Buñuel “O anjo exterminador”, os políticos do establishment assistiram de camarote à ópera das ruas, de libreto aberto, sem diretor definido e protagonista, uma ópera coral, sem maestro, mas que não passou da sinfonia de abertura. Depois disso, o mais longo jantar de nossos caciques teve início naquele 16 de junho de 2013 e ainda hoje mal parece terminar.
As manifestações de rua de 2013 davam a impressão de que conseguiriam sensibilizar o universo, hermético e abstrato, de nossos poderes. E me refiro aos três níveis de governo. Raros os políticos naquela quadra que usaram palavras de alta voltagem, com severa autocrítica, dignos de uma Roma em estado terminal. Diziam que todos devíamos assumir, sem distinção, a responsabilidade crescente de nossos erros, que era preciso ouvir as vozes das ruas. Foram poucos aqueles que tiveram a coragem de propor uma reforma política madura e consistente. Não faltaram propostas de interesse pessoal, como os que advogavam candidaturas avulsas, em benefício da trajetória pessoal, como se fossem um deus, que descia de paraquedas, para enfrentar (somente no teatro do mundo, na aparência das coisas), o dragão da velha ordem.
O fato é que desde então não saímos do lugar. Perdemos sem dúvida a oportunidade histórica de uma agenda positiva, essa mesma agenda que permanece ausente do debate eleitoral, assim como os temas que interessam ao país, dentre os quais as reformas agrária e urbana. Sofremos de uma avançada miopia e mesmo assim não usamos as lentes adequadas para o momento, porque enxergamos sempre a equação de vassalagem, redutora, entre governança e formas patrimonialistas de gestão, gerando uma série de consequências deploráveis, visceralmente condenadas pelas ruas.
Precisamos voltar à alta dimensão da democracia, quando se apostem na geração de zonas mais ou menos estáveis de consenso, em vez do tráfico de alianças entre alguns partidos mais densos e diversas legendas de aluguel, sem conteúdo, expressão, ideologia, que esperam a corte e o dote. Uma democracia como nuvem de aglomerados, em detrimento de um campo mais sólido e menos mercurial, que levou justamente a uma crítica excessivamente negativa, por parte dos estudantes, mas oportuna, sobre o papel e o lugar da filiação partidária nas manifestações.
Sem a reforma política, não sairemos da entropia do sistema — dentro do qual respiramos — eticamente invertebrado, politicamente tentacular e patrimonialista, que devora, como Saturno, os próprios filhos, reféns de um processo autossuficiente, de uma lógica que tende a se fazer exausta e cartorial.
Já não podemos adiar a decisão de uma reforma séria, nós que defendemos a democracia brasileira, direta e representativa, com partidos formados por questões programáticas, em torno das quais exista um espectro razoável de coalizões.
Como no filme de Buñuel “O anjo exterminador”, os políticos do establishment assistiram de camarote à ópera das ruas, de libreto aberto, sem diretor definido e protagonista, uma ópera coral, sem maestro, mas que não passou da sinfonia de abertura. Depois disso, o mais longo jantar de nossos caciques teve início naquele 16 de junho de 2013 e ainda hoje mal parece terminar.
02 de abril de 2014
Marco Lucchesi, O Globo
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