Uma das maiores especialistas mundiais em dívida pública é a auditora brasileira Maria Lucia Fattorelli, que trabalhou na Receita Federal por 30 anos e se tornou coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, uma organização sem fins lucrativos que tem se debruçado sobre um pesado jogo de interesses que traz ganhos nababescos a uma minúscula camada do setor financeiro e prejuízo ao povo e às contas públicas. Na Grécia, ela fez parte, com outros especialistas internacionais, do Comitê pela Auditoria da Dívida Grega, trabalho semelhante ao que já havia feito, antes, no Equador, e que foi fundamental para o país reduzir em 70% o estoque de seu endividamento. No Brasil, na Grécia, no Equador, apesar das particularidades, a mesma situação básica: uma dívida pública que suga recursos do país, revoga conquistas sociais e altera a Previdência Social.
Nesta entrevista a Rubens Goyatá Campante, coordenador do Núcleo de Pesquisas da Escola Judicial do TRT-3ª Região, publicada pelo site Carta Maior e enviada à TI pelo advogado João Amaury Belem, a auditora Maria Lucia Fatorelli mostra a realidade da situação da dívida pública brasileira, que em fevereiro cresceu 2,66%, ante uma inflação de apenas 0,33%, com 2,33% de crescimento real.
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DÍVIDA PÚBLICA: UM MEGAESQUEMA DE CORRUPÇÃO
Rubens Goyatá Campante
DÍVIDA PÚBLICA: UM MEGAESQUEMA DE CORRUPÇÃO
Rubens Goyatá Campante
A sra. poderia começar explicando como a dívida pública se formou e como ela se desdobra em dívida externa e dívida interna.O ciclo atual do endividamento brasileiro teve início na década de 1970, na modalidade de dívida externa, e, a partir do Plano Real, ocorreu a explosão da dívida interna. O forte crescimento da dívida externa brasileira, a partir de 1971, decorreu do fim da paridade dólar-ouro nos Estados Unidos, por iniciativa do Banco Central norte-americano (FED), que é privado e controlado por grandes bancos privados. No final da década de 1970, o FED passou a elevar as taxas de juros, que alcançaram 20,5% ao ano no início da década de 1980, provocando a chamada “crise da dívida” de 1982, utilizada como justificativa para a interferência do FMI em assuntos internos do país. Assim, desde 1983, quando assinamos a primeira Carta de Intenções com o FMI, este organismo tem sido um dos grandes responsáveis pelo crescimento da dívida pública brasileira e pela submissão ao modelo econômico que emperra o nosso país e impede o nosso desenvolvimento socioeconômico.
Houve uma CPI da Dívida, em 2010. O que foi investigado?Os contratos disponibilizados à CPI comprovaram apenas uma parte que não chega a 20% do estoque da dívida externa com bancos privados internacionais na década de 1970. A partir de 1983, as dívidas do setor privado (nacional e internacional instalado no país) foram transferidas ao Banco Central do Brasil, mediante contratos firmados em Nova York e regidos pelas leis de NY, em completa afronta à soberania; Em 1992, há forte suspeita de prescrição da dívida externa com bancos privados internacionais, que correspondia a quase 90% de toda a dívida externa brasileira; Em 1994, essa dívida suspeita de prescrição foi trocada por títulos, no chamado Plano Brady, em Luxemburgo, conhecido paraíso fiscal. A partir daí, esses títulos passaram a ser trocados por dívida interna (a juros que chegavam a 49% ao ano!) ou utilizados como moeda para comprar empresas privatizadas a partir de 1996.
E quando a dívida começou a ficar incontrolável?A explosão da dívida interna se deu a partir do Plano Real e ela vem crescendo aceleradamente, principalmente devido à política monetária exercida pelo Banco Central: elevadíssimas taxas de juros (que não servem para controlar o tipo de inflação que existe no Brasil); operações de enxugamento de moeda com farta remuneração aos bancos por isso; a contabilização de juros como se fosse amortização, entre outros que geram centenas de bilhões de reais de “dívida pública”, sem contrapartida alguma! Fica claro, portanto, que a dívida pública, historicamente, não tem funcionado como instrumento de financiamento do Estado, mas como uma engrenagem que promove contínua transferência de recursos públicos para o setor financeiro privado nacional e internacional.
Então, o Brasil está imobilizado pela dívida?O privilégio do gasto com a dívida é revelado na execução orçamentária federal. No ano passado, quase 44 % do orçamento geral da União executado destinou-se ao pagamento de juros e amortizações da dívida. Além de absorver quase a metade do orçamento federal e boa parte dos orçamentos estaduais e municipais, a chamada dívida pública tem sido a justificativa para contínuas contrarreformas, como a da Previdência; privatizações, além de outras medidas de ajuste fiscal, como o aumento da desvinculação das receitas da União (DRU) e dos entes federados (DREM) para 30%, e a Emenda Constitucional 95 que estabeleceu teto somente para as despesas primárias – por 20 anos! – para que sobrem mais recursos ainda para as despesas não primárias, que são justamente as despesas financeiras com a dívida.
O que se pode fazer contra isso?Por tudo isso, a Auditoria Cidadã da Dívida insiste na reivindicação de uma completa auditoria dessa dívida, com participação social, pois sequer sabemos para quem devemos, já que o nome dos detentores dos títulos da dívida pública brasileira é, por incrível que pareça, informação sigilosa!!! É preciso levar essas informações a toda a sociedade que está pagando essa pesada conta. Por isso é importante incentivar a participação de todos na Consulta Nacional sobre Reformas e Auditoria da Dívida (www.consultanacional2017.com.br).
O Brasil passa, atualmente, por um período de reformas do Estado, sob a justificativa de que este enfrenta uma crise financeira profunda. O que a questão da dívida pública tem a ver com isso?A crise atual é uma crise totalmente desnecessária, fabricada principalmente pela política monetária suicida praticada pelo Banco Central, que, além de criar cenário de escassez de recursos, o que impede a realização de investimentos geradores de emprego e renda, gera despesa elevadíssima que sobrecarrega o orçamento público e cria mais dívida pública ainda. Sob o argumento de “controlar a inflação”, o Banco Central do Brasil tem aplicado uma política monetária fundada em dois pilares: adoção de juros elevados e redução da base monetária, ou seja, do volume de moeda em circulação. Na prática, tais instrumentos têm se mostrado um completo fracasso.
Por que não deu certo?Além de não controlar a inflação, os juros elevados têm afetado negativamente não só a economia pública, provocando o crescimento exponencial da dívida, que exige crescentes cortes em investimentos essenciais, mas também tem afetado negativamente a indústria, o comércio e a geração de empregos. Por sua vez, a redução da base monetária utiliza mecanismos que enxugam mais de um trilhão de reais dos bancos, instituindo cenário de profunda escassez de recursos, o que acirra a elevação das taxas de juros de mercado e empurra o País para essa profunda crise socioeconômica. Adicionalmente, o Banco Central remunera os bancos por esse volume brutal de recursos, onerando pesadamente o orçamento federal.
O que se pode fazer?Segundo o famoso economista francês Thomas Piketty, seria um suicídio deixar de utilizar, em momentos de crise, o instrumento de emissão de moeda e a prática de juros baixos. No Brasil, o Banco Central tem feito o contrário e, adicionalmente, ainda alimenta o mercado com ração muito cara: operações de swap cambial que têm gerado centenas de bilhões de reais de prejuízos que são pagos à custa de emissão de mais títulos da dívida pública! O rombo das contas públicas no Brasil decorre desses gastos financeiros. E dizem que são os direitos sociais que prejudicam o equilíbrio fiscal do Estado, mas, na verdade, é o sistema da dívida pública que quebra o Estado e impede os direitos sociais.
E a reforma da Previdência?A reforma da Previdência decorre dessa ganância insaciável do mercado financeiro, de abocanhar a fatia de recursos que ainda é destinada à Previdência, que atinge mais de 60 milhões de pessoas no Brasil e é o maior programa de distribuição de renda, para destiná-la ao pagamento de juros da chamada dívida pública.
Além do fato de aumentar enormemente o mercado de Previdência Privada…Sim, certamente, a cada vez que o governo vem a público, com o falacioso discurso de “déficit”, ele presta um serviço ao mercado financeiro, pois muitas pessoas acabam sendo empurradas para adquirir planos privados de previdência, gerando um grande volume de negócios para o setor financeiro.
O problema da dívida pública, que ultrapassa a questão meramente econômica, recebe a devida atenção na Academia, na mídia e em outros canais de discussão e expressão?Infelizmente, não. É um tema bloqueado até mesmo nas faculdades de economia, onde a dívida aparece apenas de passagem, como uma das variáveis econômicas, comparada com o próprio dinheiro, como se a dívida fosse uma outra forma de recurso, de moeda. Ou seja, uma visão totalmente descolada do papel que a chamada dívida pública exerce na prática. Poucas pessoas se dedicam ao estudo do endividamento, dissecando os contratos desde a sua origem e os mecanismos que geram dívida continuamente. A maioria parte do senso comum, de que se existe uma dívida, houve o ingresso do recurso e estaria tudo certo. Mas não é bem assim. A experiência de auditorias cidadãs, tanto no Brasil como em outras partes do mundo, tem demonstrado a atuação do que denominamos “Sistema da Dívida”, que corresponde à utilização do endividamento público às avessas, ou seja, em vez de servir para aportar recursos ao Estado, o processo de endividamento tem funcionado como um instrumento que promove uma contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados principalmente ao setor financeiro privado. É por isso que é tão importante realizar a auditoria dessas dívidas, a fim de mostrar a verdade e segregar o que é dívida legítima e ilegítima.
Já que é tão importante, realmente, conhecer e discutir essa questão da dívida pública, essas informações que a senhora passa estão disponíveis e acessíveis em algum local?Sim. Temos diversos artigos e publicações disponíveis em nossa página e no facebook da Auditoria Cidadã da Dívida. O respaldo das informações que mencionei aqui pode ser verificado também nas Análises Técnicas que realizamos para a CPI da Dívida Pública.
04 de abril de 2017
Carlos Newton
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