Já não era sem tempo a sacudida na paz de cemitério que desde a redemocratização, há mais de 30 anos, reinava no universo político brasileiro
Reza um velho lema que, quando os fatos ganham pernas, as pessoas perdem a cabeça. Literal e figurativamente é o que está acontecendo no mundo do poder. Do dinheiro, da política, da intersecção entre os dois.
Há algum tempo vivemos no Brasil todos os dias uma agonia. Muita gente se desconforta com isso. Instalou-se um estranhamento com a constante turbulência. Afinal, não era para tudo se resolver com o afastamento de Dilma Rousseff e o ponto e vírgula na era PT? Vozes se levantam ora contra a paralisia que a situação provoca no funcionamento do país ora contra a “sangria” que leva a economia ao buraco e poderosos aos tribunais.
Reclama-se que a discussão política infelicita, toma conta de tudo e impede o Brasil de caminhar. Ninguém mais tem sossego, argumenta-se, com tantos escândalos cuja sucessão soa interminável. Compreensível tal aflição, mas a confusão é imprescindível. Diria até que muito bem-vinda. Já não era sem tempo a sacudida na paz de cemitério que desde a redemocratização, há mais de 30 anos, reinava no universo político brasileiro.
Melhor o barulho dos embates e o estrondo dos trancos avançando sobre os barrancos que o silêncio insidioso que vinha mantendo a política brasileira amarrada ao toco do atraso. Em boa medida em decorrência de uma cultura de cultivo do desdém como sinônimo de engajamento.
Como se a politização de uma sociedade fosse possível pelo exercício da indiferença. Na realidade, tal atitude resulta em salvo-conduto para que os representantes exerçam seus mandatos à revelia dos representados. Se os políticos não são demandados, natural que se sintam autorizados a se lixar para a opinião pública.
Reformar seus meios e modos para quê? Razão pela qual a muito cantada reforma política nunca andou. Por anos, décadas, estiveram todos muito confortáveis. E assim continuariam não fosse o despertar da sociedade. Por paradoxal que possa parecer, provocado justamente pelo partido que representava a esperança de mudança. O PT aprofundou, ampliou e exorbitou tanto da prática de ilícitos, do recurso à mentira e do exercício da ganância, que acabou contribuindo de maneira definitiva para a explicitação dos vícios até então praticados em ambiente de alguma penumbra no qual ainda era possível administrar os danos.
Inexperientes, mas soberbos, os petistas jogaram-se de corpo, alma e apetite desmedido no poder. Parceiros não faltaram e como os donos da bola tinham na fidelização eleitoral um instrumento garantidor de impunidade, acomodaram-se naquele guarda-chuva e aderiram ao padrão do vale qualquer coisa. Ao excesso, no entanto, sucedeu a escassez. Acabou o dinheiro, minguou a popularidade, desvendou-se a manipulação, foram expostos os crimes e, assim, se iniciou o processo de depuração.
Poderíamos dar a ele o nome de reforma política, pois da presente avalanche surgirá algo que ainda não se sabe o que será, mas é certo que será melhor. Suas excelências não quiseram reformar a política por bem. Pois então, estão sendo reformadas por mal. A cada queda, seja de ministro, de reputação ou condenação, corresponde um passo adiante.
Ocorre, porém, que o passivo é imenso e não será passado em revista em um dia ou dois nem transcorrerá sem dor. Por menos que se goste de viver a conturbação, uma hora o pacto da má convivência consentida haveria de ser rompido. E isso não se faz com facilidade nem sem a produção de mortos e feridos pelo caminho.
Que o New York Times considere o cenário “burlesco” compreende-se pela natural falta de referência em relação ao modo de operação de nossa política. Nós, brasileiros, contudo, não temos direito à zombaria desinformada, pois sabemos da gravidade da situação e da responsabilidade de todos na construção de um Brasil mais sério.
02 de junho de 2016
Reza um velho lema que, quando os fatos ganham pernas, as pessoas perdem a cabeça. Literal e figurativamente é o que está acontecendo no mundo do poder. Do dinheiro, da política, da intersecção entre os dois.
Há algum tempo vivemos no Brasil todos os dias uma agonia. Muita gente se desconforta com isso. Instalou-se um estranhamento com a constante turbulência. Afinal, não era para tudo se resolver com o afastamento de Dilma Rousseff e o ponto e vírgula na era PT? Vozes se levantam ora contra a paralisia que a situação provoca no funcionamento do país ora contra a “sangria” que leva a economia ao buraco e poderosos aos tribunais.
Reclama-se que a discussão política infelicita, toma conta de tudo e impede o Brasil de caminhar. Ninguém mais tem sossego, argumenta-se, com tantos escândalos cuja sucessão soa interminável. Compreensível tal aflição, mas a confusão é imprescindível. Diria até que muito bem-vinda. Já não era sem tempo a sacudida na paz de cemitério que desde a redemocratização, há mais de 30 anos, reinava no universo político brasileiro.
Melhor o barulho dos embates e o estrondo dos trancos avançando sobre os barrancos que o silêncio insidioso que vinha mantendo a política brasileira amarrada ao toco do atraso. Em boa medida em decorrência de uma cultura de cultivo do desdém como sinônimo de engajamento.
Como se a politização de uma sociedade fosse possível pelo exercício da indiferença. Na realidade, tal atitude resulta em salvo-conduto para que os representantes exerçam seus mandatos à revelia dos representados. Se os políticos não são demandados, natural que se sintam autorizados a se lixar para a opinião pública.
Reformar seus meios e modos para quê? Razão pela qual a muito cantada reforma política nunca andou. Por anos, décadas, estiveram todos muito confortáveis. E assim continuariam não fosse o despertar da sociedade. Por paradoxal que possa parecer, provocado justamente pelo partido que representava a esperança de mudança. O PT aprofundou, ampliou e exorbitou tanto da prática de ilícitos, do recurso à mentira e do exercício da ganância, que acabou contribuindo de maneira definitiva para a explicitação dos vícios até então praticados em ambiente de alguma penumbra no qual ainda era possível administrar os danos.
Inexperientes, mas soberbos, os petistas jogaram-se de corpo, alma e apetite desmedido no poder. Parceiros não faltaram e como os donos da bola tinham na fidelização eleitoral um instrumento garantidor de impunidade, acomodaram-se naquele guarda-chuva e aderiram ao padrão do vale qualquer coisa. Ao excesso, no entanto, sucedeu a escassez. Acabou o dinheiro, minguou a popularidade, desvendou-se a manipulação, foram expostos os crimes e, assim, se iniciou o processo de depuração.
Poderíamos dar a ele o nome de reforma política, pois da presente avalanche surgirá algo que ainda não se sabe o que será, mas é certo que será melhor. Suas excelências não quiseram reformar a política por bem. Pois então, estão sendo reformadas por mal. A cada queda, seja de ministro, de reputação ou condenação, corresponde um passo adiante.
Ocorre, porém, que o passivo é imenso e não será passado em revista em um dia ou dois nem transcorrerá sem dor. Por menos que se goste de viver a conturbação, uma hora o pacto da má convivência consentida haveria de ser rompido. E isso não se faz com facilidade nem sem a produção de mortos e feridos pelo caminho.
Que o New York Times considere o cenário “burlesco” compreende-se pela natural falta de referência em relação ao modo de operação de nossa política. Nós, brasileiros, contudo, não temos direito à zombaria desinformada, pois sabemos da gravidade da situação e da responsabilidade de todos na construção de um Brasil mais sério.
02 de junho de 2016
Dora Kramer, Estadão
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