Vocês devem ter lido nos jornais, ou ouvido nos noticiários. A Amazon, cujo assustador objetivo é vender tudo a todo mundo, começou a testar um novo método de entrega expressa, por meio do qual o freguês receberá mercadorias de até pouco mais de dois quilos no prazo de trinta minutos, a partir da encomenda. A entrega poderá ser em qualquer ponto do território coberto pelo sistema, inclusive a sacada de um apartamento ou mesmo, imagino eu, um quarto de dormir. O transporte será tarefa de um drone (que quer dizer "zangão" em inglês, mas ninguém fez a tradução e ficou "drone" mesmo, em português), isto é, uma pequena ou minúscula aeronave sem tripulantes, cujas tecnologias se vêm aperfeiçoando com uma velocidade que torna quase impossível acompanhá-las.
Por enquanto, há diversas limitações e se espera até mesmo a autorização do governo para o início dos serviços. Mas isso virá, mais cedo ou mais tarde, assim como o desenvolvimento tecnológico para que o sistema - e muitos outros, igualmente baseados nos drones - se torne economicamente viável, ou mesmo imperativo, diante da concorrência entre os fabricantes e fornecedores de serviços. Já hoje mesmo, os drones são usados bem mais do que se divulga comumente. Não se limitam, como muitos pensam, à destruição de alvos no Afeganistão e a ações de combate em territórios longínquos, de que só tomamos conhecimento pela televisão. Muitas polícias urbanas, no mundo todo, já os empregam e também, com toda a certeza, serviços de inteligência e combate ao terrorismo. Acompanham os movimentos de indivíduos sob suspeita, filmam e gravam encontros, documentam movimentos de protesto ou individualizam e identificam participantes de multidões e podem transportar e acionar vários tipos de arma. É possível equipar um drone que sobrevoe locais públicos predeterminados e, conectado a sofisticadas bases de dados e programas de reconhecimento de feições, localize rapidamente algum fugitivo ou clandestino, que, se for o caso, poderá ser eliminado por meio do mesmo veículo, o qual disparará uma pequena granada, reduzirá a vítima a picadinho e, em seguida, desaparecerá sem deixar pistas. Dizem que este tipo de coisa já foi feito e continua sendo feito, não há como ter certeza.
E os drones estão cada vez menores, mais eficientes e mais sabidos, podendo, em alguns casos, ser controlados até mesmo por meio de um desses celulares espertinhos que hoje se encontram em toda parte. Um drone adequadamente equipado é capaz de filmar, de perto, em alta definição e som de boa qualidade, a uma distância da qual nem de binóculo será visto, tudo o que se passa num aposento. E os preços tendem a baixar sempre, de maneira que, se hoje só está ao alcance de governos e bilionários ter um drone como esse, daqui a pouco não será impossível que um cônjuge suspeitoso compre ou contrate um personal drone para o parceiro suspeito de infidelidade. Os ricos e poderosos talvez não venham mais a precisar de seguranças humanos, mas simplesmente de uma flotilha de drones pairando discretamente no alto, pronta a zapear o primeiro que esboce um gesto mais agressivo, ou a reconhecer e denunciar o rosto de um desafeto.
A vida, principalmente, nos grandes centros urbanos, vai mudar, embora não necessariamente para melhor. Numa cidade de engarrafamentos paralisantes, como São Paulo, sem dúvida haverá uma lua de mel deslumbrada com as entregas por drone. Mas receio que durará pouco, porque o enxame de centenas de milhares de drones, logo depois de passados uns dois meses, ia tornar necessária a adoção de estado de emergência na cidade, se não fosse disciplinado prontamente. Imagino drones colidindo no ar a cada vinte segundos, caindo na cabeça de gente e em cima de casas, derrubando helicópteros e sendo sugados por turbinas de aviões adentro. Não vai dar certo, de maneira que terá de ser instituído um grupo de trabalho para baixar normas de trânsito de grande complexidade, abrangendo horários, altitudes, velocidades máximas e assim por diante, com o resultado de que o engarrafamento logo voltará, desta feita por todos os lados. Os drones serão os motoqueiros do ar, mais onipresentes do que são hoje os motoqueiros de terra, e botar a cabeça para fora da janela de um edifício vai dar medo de trombar com um drone.
A segurança também será afetada, pois o mínimo que se terá de fazer, mesmo que se more no quadragésimo andar, é manter as janelas fechadas, se possível com vidraças blindadas. Até os helicópteros particulares poderão ser atacados e sequestrados por quadrilhas de drones. Ficará mais fácil para a polícia patrulhar grandes áreas, se estiver usando pouco pessoal e muitos drones com câmeras, mas a bandidagem também dispõe de armamento de primeira linha e terminaremos com batalhas de drones, em que não vai haver baixas nem na polícia nem entre os bandidos, mas certamente sobrarão projéteis perdidos para os circunstantes.
Tudo isso só ratifica que já é lugar-comum observar que a privacidade acabou. Não é por assim dizer; acabou mesmo e os vestígios que ainda sobram por aí também vão embora brevemente. Valores que venerávamos como perenes agora se encontram à beira da caduquice e deverão ser substituídos por outros, mais em consonância com novos tempos e novas condutas. Há não muito, por exemplo, era cafajestada para os homens e impensável para as mulheres fazer comentários sobre performances sexuais de ex-parceiros. Hoje, é tema de redes sociais, assunto para tevê e bate-papos no boteco. Não tem mais sentido questionar se vale a pena perder a intimidade e a liberdade em troca de segurança. Os que governam o mundo já decidiram que sim, faz tempo.
08 de dezembro de 2013
João Ubaldo Ribeiro, O Estado de S Paulo
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