Você nunca sabe o que está para vir quando abre na memória algum armário há muito chaveado. Foi o que fiz aqui, na semana passada, ao me bater saudade dos guardados de meu pai, nos quais, menino, eu adorava bisbilhotar, ao ponto de acabar merecendo o apelido de "quati", mamífero, como se sabe, dado a fuçar onde não deve. Entre outros achados, a arqueologia sentimental me devolveu um frasco de colônia inglesa, barras de chocolate amargo e uma pistola velha porém virgem, tudo empapado de evocações poderosíssimas.
O que eu não esperava é que o relato da investida fosse abrir, entre os que me leram, um punhado de outros armários. Tudo indica que há por aí uma fartura de quatis. A Eliane, por exemplo, que bem antes de entregar-se a investigações acadêmicas afiou esse talento em mergulhos no guarda-roupa dos pais, onde veio a descobrir que eles gastavam os tubos - tubos metálicos de lança-perfume Rodouro.
O não menos enxerido Ralf ficou sabendo que, ao largo de esposa & prole, o virtuoso chefe da família chafurdava na Playboy. A Maria Elizabeth confessou que não resistia aos encantos e mistérios do armário materno, de onde, para começar, emanava um cheiro capaz ainda hoje de inebriá-la.
"Para não deixar rastros", rememora esse quati fêmea, "eu abria a porta e ficava um tempão olhando o leiaute, meio que tomando coragem ou, sei lá, definindo a estratégia". Em seguida, "caía matando na mexeção: vestia luvas, punha o véu prata (que hoje está comigo), abria a caixinha de música, cheirava os perfumes, punha as bolsas de festa..."
Aquilo, resume a Maria Elizabeth, era "uma viagem" - com certeza mais bem sucedida do que a bad trip experimentada na infância por outro xereta, o Bernardo. Mais velho de três irmãos, ele teve um choque ao dar de cara com um sortimento de camisinhas. Foi tirar satisfação com os usuários: "Quer dizer que vocês transaram mais de três vezes?!" Até parece que o Bernardo andou lendo Amor e Paz, guia de orientação sexual que achei atrás dos compêndios de odontologia do papai, e em cujas páginas, sofregamente folheadas, não encontrei a mais remota referência às delícias que podem advir da fricção entre dois corpos desejantes.
Na família, a leitura da crônica da semana passada levou à constatação de que meu pai, homem sem vaidades, não foi o único no clã a recorrer aos serviços do Clodoaldo, boa pessoa e péssimo alfaiate. Praticamente toda a banda masculina recorria a esse predador de finas casimiras. Até mesmo eu, entregou meu irmão Rodrigo. Não, não é possível, já teria aparecido na minha terapia!
O mesmo Rodrigo lembrou que num armário do andar de cima, entre uma chuteira aposentada e vidros com visgo para pegar passarinho, nosso pai guardava um chapéu de Dr. Livingstone, que nunca o vimos usar - lembrança em cuja esteira me veio também a de um capacete militar, relíquia talvez da Revolução de 30, que costumávamos mandar aos ares com bombas cabeça de negro (caixas cranianas de indivíduos afrodescendentes, se você preferir).
No meu próprio armário, não tenho notícia de que alguém tenha fuçado, o que não deixa de ser espantoso numa casa que abrigava dois adultos, dez filhos e um primo. No final dos anos 50, teria sido possível encontrar ali, escondida numa pilha de cuecas samba-canção, uma engenhosa cola para exames de geometria. E eis que agora me cai uma tardia ficha: é provável, é quase certo que a minha mãe, quati com boa causa, tenha achado aquela carretilha, provida de uma fita de papel na qual transcrevi os teoremas que levariam o vagabundo à quarta série do ginasial. Por que outro motivo teria ela vindo me dizer, assim do nada, no dia do exame: "nem me passa pela cabeça a ideia de que você possa colar"? Preferia, prosseguiu mamãe, "ver um filho reprovado do que promovido graças a expedientes desonestos!"
Impressionado, não delinqui. E já me encaminhava para a reprovação definitiva na repescagem, dois meses depois, quando me lembrei da carretilha salvadora. Dela fiz bom uso. Sem o menor peso na consciência. Só me faltou dizer, como o santo e pecador Jayme Ovalle: fazei-me virtuoso, Senhor, depois de amanhã!
08 de dezembro de 2013
Humberto Werneck, O Estado de S Paulo
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