"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 8 de dezembro de 2013

APÓS SONHO DE LIBERDADE, O PESADELO DA DESIGUALDADE NA ÁFRICA DO SUL

Apesar de avanço na luta contra o racismo, negros ainda sofrem com pobreza e alto índice de desemprego
 

Keaton, de apenas 10 anos, posa diante da estátua de Mandela na embaixada sul-africana em Washington: levado pelo pai para aprender
Foto: JAMES LAWLER DUGGAN/Reuters
Keaton, de apenas 10 anos, posa diante da estátua de Mandela na embaixada sul-africana em Washington: levado pelo pai para aprenderJAMES LAWLER DUGGAN/Reuters

O ex-presidente Nelson Mandela partiu sem conseguir realizar outro sonho, além da liberdade e da igualdade entre negros e brancos - o fim do abismo social. Quase 20 anos após o fim do apartheid, as marcas da segregação se refletem hoje num índice de desemprego de 25% - cerca de 4,5 milhões de pessoas, a maioria delas, negras - e em crescentes desigualdades social e de renda. Analistas observam avanços na luta contra o racismo e melhorias das condições de vida de pequenas parcelas da população. Mas muito pouco mudou para milhares de negros moradores de favelas nos arredores das grandes cidades, onde protestos violentos não são raros. Foram 173 só no ano passado.
O Fórum Econômico de Genebra aponta a África do Sul como o pior entre 144 países avaliados no quesito relações trabalhistas. Os números mostram que a economia sul-africana cresceu 83% desde 1994, e a renda per capita aumentou cerca de 40%. Os programas de reforço das comunidades negras do governista Congresso Nacional Africano (CNA), porém, não surtiram o impacto desejado. Aos pais, falta emprego. Entre os filhos, metade das crianças que ingressam na rede de ensino abandonam a escola sem completar sequer o Ensino Médio.
 
Cerca de 10 milhões de pessoas não têm moradias apropriadas, sendo que falta saneamento básico a pelo menos 2,3 milhões de casas. Segundo o censo de 2011, os cidadãos negros - nada menos que 79% dos 53 milhões de habitantes do país - ganham, em média, um sexto do salário dos brancos. E outro dado assustador: 1,9 milhão de famílias não têm qualquer fonte de renda, o que se traduz em pelo menos 32% da população vivendo abaixo da linha de pobreza.
 
- Fizemos grandes avanços em direitos humanos, liberdades civis e previdência social, mas deixamos a economia quase na mesma. Uma pequena parcela super-rica, branca e masculina ainda controla as indústrias e o sistema financeiro - queixou-se o sindicalista Zwelinzima Vavi, líder do Congresso das Uniões de Comércio da África do Sul, uma organização sindical de 2,2 milhões de membros, aliada do CNA.
 
Greves constantes
 
O desabafo indica que o desencanto com o CNA só cresce. A elite branca do passado abriu as portas a alguns sócios negros - que hoje se beneficiam dos mecanismos do governo - e da corrupção. O partido de 101 anos de idade chegou ao poder após o apartheid e elegeu dois presidentes: Thabo Mbeki e o atual, Jacob Zuma. Hoje, também controla o Legislativo. Mas de um ícone da transição pacífica, passou a alvo de acusações de clientelismo, nepotismo e corrupção nas altas esferas.
 
- A África do Sul está numa encruzilhada em sua vida política. Perdeu-se a inocência sobre nosso lugar no mundo e sobre quem somos como povo. Já não se garante que as coisas vão dar certo porque somos o país de Nelson Mandela - observou o analista político Mzukisi Qobo, da Universidade de Pretória, ao portal sul-africano “Iol”.
 
O próprio presidente é alvo de uma série de escândalos políticos e pessoais. Além de polígamo, Zuma teve, por exemplo, um filho ilegítimo com a filha de um amigo. Também foi manchete dos jornais por gastar mais de US$ 20 milhões em melhorias na segurança de sua fazenda - mas mesmo com a popularidade estimada em torno de 50%, ele pretende tentar a reeleição no pleito presidencial previsto para o primeiro semestre do ano que vem.
 
Enquanto isso, sobram incertezas. E greves. Principalmente na indústria mineradora, que desde o século XIV é o coração da economia sul-africana. Embora responda por apenas 6% da economia, é da mineração que saem 60% das exportações - e onde está o maior empregador privado do país, com mais de 500 mil trabalhadores que sustentam, às vezes, famílias de oito ou mesmo dez dependentes.
 
Jovens, o peso da campanha
 
A África do Sul é o maior produtor de platina do mundo e o quinto maior produtor de ouro. Se as condições de trabalho sempre foram motivo de manifestações, a tensão trabalhista se agravou no ano passado com a perspectiva de desaceleração de uma economia que este ano cresceu menos de 2% - e despertou nos trabalhadores o medo dos cortes. Em agosto do ano passado, no episódio mais icônico dessa crise, confrontos entre mineiros grevistas e a polícia mataram 44 pessoas na mina Lonmin, na cidade de Marikana.
 
O grande teste de Zuma e do CNA ocorrerá nas urnas, em 2014. Desde 1994, o partido registrou mais de 60% de apoio nas eleições disputadas. O próprio presidente foi eleito em 2009 com 66% dos votos, mas dessa vez, há um novo desafio pela frente: será preciso se comunicar com os mais jovens. O eleitorado nascido pós-apartheid vai às urnas pela primeira vez no ano que vem, e a geração dos chamados “nascidos livres”, totalmente despida dos laços emocionais com a luta pela libertação, poderá balançar a hegemonia do CNA.
 
Para analistas, a atual comoção nacional pode representar um alívio da pressão política sobre Zuma, tão contestado. Mas, na campanha, se a imagem de Mandela pode servir para lembrar aos mais jovens os enormes sacrifícios feitos por Madiba e pelo CNA, por outro, poderá proporcionar comparações - bastante incômodas para Zuma - entre os dois.
 
Resta saber como o partido vai reagir. E se vai mesmo conseguir manter a velha autoridade associada à era Nelson Mandela - agora, na total ausência de seu maior ícone.

08 de dezembro de 2013
Renata Malkes- O Globo

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