Quem diria, hein? O Paraguai, cantado em prosa e verso como o território da muamba, foi capaz de oferecer uma das mais vigorosas lições de cidadania nesta região tão pouco afeita ao civismo, à ética e à racionalidade. Na semana passada, a sociedade civil desse pequeno país de 6,5 milhões de habitantes, na onda da mobilização social que começa a sacudir o continente, decidiu realizar o mais veemente protesto contra a corrupção ao proibir a entrada de um grupo de políticos em bares, restaurantes, cinemas, supermercados, postos de gasolina e até em hospitais particulares. Isso porque 23 congressistas votaram contra a perda de imunidade do senador Victor Borgado, do Partido Colorado, denunciado pela Justiça por contratar com dinheiro público a babá de seus filhos.
A fogueira que se formou no rastilho da expulsão de senadores de alguns ambientes - aos gritos de "fora, ladrão!" - correu o país, multiplicando reações e induzindo garçons, vendedores, frentistas, etc., a não oferecer seus serviços a "corruptos", sob a percepção de que era necessário não apenas punir os agentes de um caso concreto, mas eliminar a impunidade.
A mobilização paraguaia assume extraordinária importância porquanto nosso vizinho exibe o estereótipo de terra do contrabando. Na linguagem das comparações em torno de objetos de consumo, o "relógio paraguaio" assume o sinônimo de falso, tosco, sem qualidade, imagem que ganhou força por estas bandas no enredo de novelas como Avenida Brasil ou de músicas como Muamba, de Bezerra da Silva: "Muamba, olha, quem vai querer muamba?/ Tô vendendo barato, malandro, quem vai?/ Tô levando minha sogra pra vender no Paraguai".
É verdade que os movimentos de junho, que abriram as portas da indignação em quase todas as regiões do nosso país, continham elevada taxa de repúdio a padrões e costumes da velha política, incluindo o combate ao nepotismo, um dos alvos da "guerra paraguaia". Ali, denúncias deram conta de centenas de familiares contratados para servir a S. Exas. os congressistas em funções tão desimportantes quanto singulares, como preparar-lhes o tereré, o popular chá de mate e água fria. Aqui não chegamos a esse passo avançado de democracia participativa, simbolizado pela decisão social de coibir a políticos o uso de serviços de lazer e alimentação.
A experiência do nosso vizinho, somada à semente cívica que se planta por estas plagas, permite vislumbrar cenários promissores no entorno da democracia participativa, que se expande no continente. Emerge, primeiro, a impressão de que a região fura a redoma da inércia e da tradição patrimonialista que por décadas tem impregnado sua cultura política. A paisagem calcinada de desconfiança e ódio, tão bem descrita por Simón Bolívar meses antes de morrer de tuberculose, em 1830, na região de Santa Marta, na Colômbia, não mudou por completo, mas permite enxergar avanços daquela visão pessimista: "Não há boa-fé na América, nem entre os homens nem entre as nações; os tratados são papéis; as Constituições são livros; a liberdade é anarquia e a vida, um tormento".
A boa-fé já se faz presente no sistema de parcerias e integração que caracteriza um bloco de países, como bem o demonstram organismos como o Mercosul, a Unasul e a Celac. Confiança também se observa no ingresso de novos parceiros na frente comercial, como é o caso da China, cujo efeito se dá por aqui na reversão da deterioração histórica de preços de produtos primários e na geração de superávits comerciais.
É patente a melhoria de condições de vida, apesar de remanescerem na região traços de populismo, demagogia e autoritarismo, como os que se observam na República Bolivariana da Venezuela, onde o falecido comandante Hugo Chávez elevou ao altar da veneração o Libertador Bolívar. Registre-se, ainda, a tendência de governos a incentivar um nacionalismo populista, vinculado a um capitalismo de Estado, a par da adoção dos fundamentos macroeconômicos neoliberais. Apesar de abrigar ainda cerca de 50 milhões de latino-americanos vivendo em condições precárias de alimentação, moradia, saúde e educação, merecem destaque políticas de inclusão social, a começar pela experiência brasileira, base de uma sociedade mais solidária.
Nesse desenho é possível divisar sinais de forte empuxo popular na direção do centro da política e um caminhar gradual, apesar de lento, na esfera participativa. Reformas lideram o vocabulário das ruas, como atestam pesquisas no Brasil - mesmo com 41% aprovando o governo Dilma Rousseff, 66% dos entrevistados, segundo o Datafolha, pedem mudanças na próxima administração. Na Argentina, passados dez anos de protecionismo, duras políticas fiscais e cambiais e reservas descendo a um piso de US$ 32 bilhões (eram US$ 52 bilhões em 2010), o kirchnerismo ameaça ruir.
A aprendizagem democrática obedece a um processo irreversível. As nações reconquistaram o direito de escolher seus governantes - equatorianos em 1979, peruanos em 1980, argentinos em 1983, uruguaios e bolivianos em 1985, paraguaios e chilenos em 1989, e no final desse ano também os brasileiros puderam escolher diretamente seu presidente. Tentativas golpistas, na Venezuela e no Peru, em 1992, foram frustradas. Maior transparência das administrações e combate ao poder invisível que age nas entranhas do Estado são ferramentas da modernização institucional. Órgãos em defesa da sociedade, a começar do Ministério Público, esforçam-se para extirpar os cancros que corroem governos.
As populações escancararam a vista, apontam o dedo para os malfeitos, chegando a fechar portas para corruptos. Maneira de evitar que helicópteros, lotados de cocaína, sejam abastecidos com o nosso "rico" dinheirinho. Ou que o povo paraguaio use seus parcos guaranis para pagar os serviços da babá do senador Borgado.
08 de dezembro de 2013
Gaudêncio Torquato, O Estado de São Paulo
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