"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

DIAMANTES NEGROS

Como o partido de Nelson Mandela criou uma elite negra na África do Sul

 A três meses da Copa do Mundo, o recém-reformado aeroporto de Joanesburgo já dava os sinais da agitação que está por vir. Corredores apinhados de turistas, longa espera por táxis e uma multidão que se acotovela nos quiosques da Fifa atrás de um broche, de uma bandeirinha ou da mascote do evento, um leopardo verde e amarelo. Na livraria do terminal de desembarque, numa manhã recente, a fila do caixa serpenteava pelo corredor porque havia apenas uma balconista. Um homem alto, gordo e de cabelo comprido se dirigiu a ela com passos duros, arrastando pelo braço um jovem negro com a barba por fazer e pulôver puído. "Esse homem roubou esses seis dvds!", ele berrou. "Eu o vi saindo com isso dentro da blusa! Chamem a segurança!"

Em um tom de voz contido, o negro dizia estar só olhando os filmes, ao que o loiro o desmentia. Ficaram alguns segundos no bate-boca até o acusador chamar os atendentes aos berros. Foi quando o outro falou: "Você está dizendo isso porque eu sou preto, é?" Alguns clientes desistiram de suas compras e outros permaneceram petrificados. Os cerca de dez funcionários da loja, todos negros, olhavam a cena com desdém.

A mulher do caixa, enfim, examinou os dvds. Colocou-os em cima do balcão e chamou o próximo cliente. O sujeito que parecia encarregado da segurança ficou cochichando com um colega. Outra atendente nem interrompeu a arrumação das estantes. Percebendo o hiato de providências, o jovem que pegara os dvds saiu da loja e desapareceu. O loiro, estupefato, comentou com outro branco: "Você viu como os funcionários não fizeram nada? É de propósito, eles são assim. Um protege o outro. Esse país acabou, não tem mais jeito."

O país onde será disputada a Copa é um dos maiores exportadores de minérios do mundo. Tem um Produto Interno Bruto de 278 bilhões de dólares (o do estado de São Paulo é de 490 bilhões). Conta com uma população de 49 milhões de habitantes (São Paulo tem 41 milhões), dividida entre 80% de negros, 10% de brancos, e outro tanto de mestiços e asiáticos.

Os negros pertencem a etnias e tribos que têm línguas, costumes e religiões diversas, como a xhosa, a zulu, a ndebele, a swazi, a tsonga e a venda. Já os brancos vieram em sua maioria da Holanda e da Inglaterra. Os asiáticos têm origem indonésia e indiana. A maioria dos sul-africanos, mesmo os mais pobres, fala inglês e pelo menos outras três línguas e dialetos. A maioria da população é cristã, mas integra uma miríade de igrejas e designações protestantes e pentecostais, por vezes combinadas com religiões autóctones.


Quando Nelson Mandela foi eleito presidente em 1994, ele conclamou os sul-africanos de todas as origens a formar uma "nação arco-íris", na qual a raça deixaria de ser um fator de distinção social e a renda seria distribuída de maneira mais equânime. Desde então, porém, o seu partido, o Congresso Nacional Africano, implementou uma política baseada fortemente na cor da pele. E a concentração da riqueza aumentou.

Catapultada por ações afirmativas, e por negociatas nascidas no interior do governo e da máquina do Estado, uma pequena elite negra emergiu. Os brancos continuam a controlar a vida econômica e financeira, se sentem acuados pelos "diamantes negros", como são chamados os novos ricos, e começam a falar em "racismo às avessas". Há três anos, a África do Sul superou o Brasil no índice de desigualdade social e se tornou o segundo pior no ranking mundial, atrás da Namíbia.

O desemprego atinge 40% da população, mais que o dobro do registrado há duas décadas. Nas áreas rurais, 60% dos negros não têm ocupação. O número de pessoas que sobrevive com menos de 1 dólar por dia também duplicou nos últimos vinte anos. Um terço da população continua sem saber ler ou escrever. O índice de repetência aflige 70% das crianças negras. Com a maior epidemia de Aids do planeta (5,8 milhões de contaminados) e índices de criminalidade assustadores, a expectativa de vida dos sul-africanos caiu de 63 para 49 anos na última década.

"Os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres", comentou numa tarde de janeiro o professor Patrick Bond, da Universidade de KwaZulu-Natal. "A oferta de serviços de água, eletricidade, saneamento, saúde e educação está, em geral, pior e mais cara para o povo do que durante o apartheid", afirmou.

Apesar disso, o Congresso Nacional Africano não perde eleições há dezesseis anos. Mandela é considerado unanimemente o herói nacional por excelência. E pesquisas atestam que a aprovação do atual presidente, Jacob Zuma, é de 77%. Mais de 13 milhões de sul-africanos dependem de benefícios do governo para viver. Eles contemplam negros com mais 63 anos, mulheres com mais de 60, portadores do vírus da Aids, adolescentes de até 15 anos e deficientes físicos. Água e eletricidade são subsidiadas até certo patamar de consumo. Mais de 2 milhões de casas populares foram construídas nos últimos quinze anos (a promessa era de 10 milhões de casas).


Situado na rota comercial para as Índias, o sul da África foi colonizado por holandeses, aos quais vieram se juntar flamengos, alemães e franceses. Foram eles que, a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, haviam montado um posto de abastecimento para suas fragatas, em meados do século xvii, e deram origem aos africâneres, chamados pejorativamente de bôeres. Desde o seu estabelecimento na região, travaram inúmeras disputas com os nativos por terra e gado. Ainda que os africâneres tivessem se apropriado de boa parte do território, as tribos nativas permaneceram independentes. Os escravos vinham da Indonésia, colônia holandesa.

Em 1860, no quadro das disputas imperialistas europeias, os ingleses desembarcaram com artilharia pesada, canhões e soldados para dominar o sul da África. Entraram em conflito com os africâneres e os nativos. Os xhosas resistiram por mais de dez anos e os zulus, em uma batalha sangrenta, chegaram a vencer os britânicos. Vinte anos depois, foram definitivamente derrotados. Os ingleses trouxeram escravos da Índia.

Nessa época, um jovem brincava no jardim de sua casa quando achou uma pedra enorme e brilhante. Era um diamante de quase 22 quilates. No ano seguinte, um pastor encontrou um de 87 quilates. O feito provocou uma migração em massa. Em menos de dois anos, mais de 50 mil pessoas chegaram à região.

Foi quando três ingleses - Cecil Rhodes, Charles Rudd e Barney Barnato - se embrenharam na exploração de minas de pedras preciosas. Começaram alugando bombas de água para os escavadores, e pouco a pouco foram adquirindo pequenas cotas nos lucros. Assim nasceu a De Beers, hoje sob o comando do grupo Oppenheimer, que há quase 130 anos domina o mercado mundial de diamantes.

Com o território dominado, africâneres e britânicos se entenderam e proclamaram a União Sul-Africana. Foram promulgadas as primeiras leis de segregação racial, como o passaporte que restringia o ir e vir dos negros e os proibia de comprar terras fora das reservas tribais. Mas foi só no final da década de 1940, quando o Partido Nacional ganhou as eleições, que se montou o regime do apartheid, da separação racial. O casamento inter-racial virou crime. As escolas e bairros foram divididos. Os negros perderam o direito de votar, ter propriedades e de frequentar praias, piscinas, cinemas e hospitais destinados aos brancos. O Partido Nacional criou também os bantustões - dez nações tribais pretensamente autônomas, instaladas em áreas descontínuas correspondentes a apenas 13% do território nacional.

No livro The Afrikaners: Biography of a People [Os Africâneres: Biografia de um Povo], o historiador Hermann Giliomee coloca a seguinte questão: como um povo educado no Iluminismo e na piedade cristã edificou uma nação com base na exploração racial? A resposta, diz ele, seria a vontade dos africâneres em preservar a identidade. Nas colônias que se tornaram independentes a partir do século xix, os europeus derrotados desenvolveram três estratégias: voltaram às metrópoles, se acomodaram ao novo poder ou então continuaram mandando, por meio dos governantes em exercício. Na África do Sul, os africâneres foram minoria populacional e classe dominante por quase 350 anos. Não se consideravam um poder exterior porque não tinham para onde retornar. A integração racial, no seu modo de ver, significava suicídio.

A África do Sul lembra o Brasil. Joanesburgo é uma metrópole parecida com São Paulo. Pretória é um centro governamental como Brasília. E a Cidade do Cabo, com suas montanhas à beira-mar evoca imediatamente o Rio. Aqui, 50% da população é composta por negros e pardos, que engrossam a base da pirâmide social, em oposição aos brancos que dominam o topo. A semelhança entre os povos também é grande.

Como a maioria dos brasileiros, os sul-africanos são expansivos, alegres e falam alto.

Há detalhes diferentes. Nas áreas ricas das grandes cidades sul-africanas as ruas são mais limpas que as do Leblon ou dos Jardins, é raro ver pichação em muros, os prédios são bem conservados, a frota de transporte público parece nova. E há disparidades significativas: não há no Brasil um restaurante como o 8@The Towers, no bairro de Sandton. Ele é um ponto de encontro dos diamantes negros de Joanesburgo.

Da varanda do restaurante, via-se a frota dos clientes: um Hummer, três bmw e dois Jaguar. Na parede principal, lia-se "Veuve Clicquot" em letras garrafais. Os garçons, assim como 90% dos frequentadores, eram negros e tinham a cabeça raspada. Os fregueses estavam de terno escuro com gravata rosa ou vinho. As mulheres usavam saltos altíssimos, perucas de cabelos lisos e vestidos curtos, colados em corpos torneados a alface e malhação.

Sentados em um sofá baixo, um casal pediu a segunda garrafa de Dom Pérignon. Aos 25 anos, Lungu (que não quis dizer o sobrenome) disse ser montador de filmes para a televisão. A moça, praticamente deitada em seu colo, também não quis se identificar, mas informou ser uma "modelo muito famosa". Novelas e seriados das emissoras de tevê retratam os novos ricos como hedonistas profissionais. Eles sempre aparecem bebendo uísque doze anos ou conhaque, usando grifes de luxo, jogando golfe ou dirigindo carrões importados. Quase nenhum trabalha.

Lungu contou que seu tio havia sido guarda-costas de um "importante membro do cna" e que a família havia entrado no ramo de exportação depois do fim do apartheid. Durante o regime viviam em Soweto, a cidade negra no subúrbio de Joanesburgo, onde seu pai trabalhava como motorista e a mãe era dona de casa.

"Essa insistência de ficar falando em problemas de raça na África do Sul é coisa dos brancos", disse Lungu enquanto a modelo se servia de mais um pouco de champanhe. "Isso é um problema que ficou para trás. Eu não tenho problema algum com raça. Os brancos é que têm." Em cima da mesa, um jornal estava aberto na página de uma notícia impensável até pouco tempo atrás: a foto de uma trombada entre uma Ferrari e um Lamborghini, cujos donos, e não os motoristas, eram negros.

Havia apenas duas mesas ocupadas no 8@The Towers por brancos e nenhuma com brancos e negros. Na maioria dos restaurantes ainda é assim. A não ser que o encontro seja uma reunião de trabalho, negros e brancos frequentam o mesmo espaço, mas não se misturam. Casais multirraciais são raríssimos. Em vinte dias, vi dois. Em um deles, a moça era australiana.


Fundado em 1912, o Congresso Nacional Africano foi o primeiro partido a se propor a representar a maioria negra. Reunia uma parte das elites tribais, intelectuais brancos contrários à segregação racial existente e uma classe média negra formada por advogados, professores, comerciantes, médicos e engenheiros. Não era um partido de base popular, que se organizava nos sindicatos. Quando o Partido Nacional aprofundou a diferenciação salarial nas indústrias, em detrimento dos negros, as organizações operárias, com o Partido Comunista à frente, se aproximaram do cna. Mas, até o final dos anos 40, o partido não tinha maior expressão.

Uma nova geração de líderes, formada por Nelson Mandela, Oliver Tambo e Walter Sisulu deu vida nova ao partido ao criar a sua Liga da Juventude, que atuava nos sindicatos e fazia agitação nas cidades usando táticas de desobediência civil usadas por Mahatma Gandhi na Índia. Em 1955, o cna aprovou o documento que orientou a sua luta durante os próximos quarenta anos, a Carta da Liberdade. Ele declarava que a África do Sul "pertence a quem nela vive, negros e brancos, e que nenhum governo pode proclamar sua autoridade com base na justiça, a não ser que esteja baseado na vontade do povo."

O governo branco reagiu acusando o partido de ser comunista e passou a prender e processar os seus líderes. Em1960, uma manifestação pacífica para protestar contra a obrigatoriedade de os negros portarem passaportes internos foi reprimida pela polícia com selvageria - 67 pessoas, entre elas dez crianças, e todas negras, foram mortas a tiros.

Colocado na ilegalidade, e integrando a vaga terceiro-mundista que se espalhou pelas colônias africanas, o cna adotou a luta armada. Formou-se o Umkhonto we Sizwe (A Lança da Nação), o braço armado do partido, que tinha como objetivo "revidar com todos os nossos meios e forças em defesa do nosso povo, do nosso futuro e da nossa liberdade". Um dos seus dirigentes era Nelson Mandela. Em um ano e meio, a nova organização fez mais de 200 atos de sabotagem (sem vítimas fatais). De seu lado, o governo instituiu a pena de morte para conspiração e sabotagem, e tornou legal a prisão por até noventa dias sem necessidade de acusação formal.

Mandela foi preso e, com outros sete líderes, foi condenado à prisão perpétua no presídio da ilha Robben. Boa parte dos dirigentes do cna partiu para o exílio na Suazilândia, Lesoto e Zâmbia, onde montaram campos de treinamento armado, em parte financiados pela União Soviética. Mesmo assim, internamente, a mobilização contra o apartheid prosseguiu, organizada por operários, estudantes e universitários com pouco ou nenhum contato com os líderes exilados. Da prisão, Mandela enviou uma mensagem à militância: "Tornem esse país ingovernável."

A África do Sul, progressivamente, de fato se tornou ingovernável. Graças às denúncias, à propaganda e às ações políticas do cna no exterior, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, o regime do apartheid passou a ser visto como moralmente funesto. Com base nesse sentimento, grandes empresas e conglomerados multinacionais foram obrigados a limitar o comércio com o governo do Partido Nacional. A África do Sul não podia participar de olimpíadas nem de Copas do Mundo de futebol. Atos públicos, concertos de rock, boicotes a quem contribuía com o apartheid (foi o caso da Land Rover, que fornecia furgões à polícia sul-africana) e abaixo-assinados reivindicavam a liberdade de Mandela e o fim do apartheid.

Nesse aspecto, nenhum movimento de libertação nacional foi tão bem sucedido, a partir dos anos 70, quanto o Congresso Nacional Africano - se compararmos, por exemplo, à Organização para a Libertação da Palestina, a olp de Yasser Arafat. Regionalmente, o governo sul-africano também sofreu revezes: na guerra civil em Angola, foi derrotado pelas tropas cubanas e subsaarianas. A África do Sul havia se tornado uma ilha. E dentro da ilha, as manifestações antirracistas só faziam aumentar.


Em uma quarta-feira de fevereiro, os jornais noticiavam nada menos do que dezesseis manifestações violentas em favelas sul-africanas. As imagens de pneus queimando, moradores correndo e a polícia armando barricadas lembravam as dos conflitos da época do apartheid. Os manifestantes pediam água, luz e saneamento. Como o governo ampliou o acesso à eletricidade sem investir no setor elétrico, os apagões são frequentes. Recentemente, havia sido autorizado um aumento de 25% nas tarifas. Como a inadimplência é alta, a energia é cortada com frequência.

Elias Motsoaledi foi um militante do Congresso Nacional Africano assassinado em 1994. Hoje ele dá nome a uma das 182 favelas ao redor de Joanesburgo. Ali, vivem 30 mil pessoas em barracos construídos com telhas de alumínio e pedaços de madeira sobre chão de terra batida. Em um início de manhã, Cat Qobongwane, de 28 anos, que mora há sete em Elias Motsoaledi, usava uma camisa polo listrada de vermelho e azul, bermuda cáqui e botas creme com meias até a canela. Ele é magro, baixo e cultiva um cavanhaque à D'Artagnan.

O esgoto corria a céu aberto, havia lixo em terrenos baldios e algumas crianças soltavam pipas. "Os políticos só aparecem às vésperas das eleições", disse. Ele explicou que a comunidade era "autogovernável. Cada casa tem um apito. Se há algum crime, tocamos o apito e as outras pessoas vêm. Problemas, resolvemos por aqui mesmo."

Outros moradores também faziam as vezes de guias para turistas com máquinas fotográficas e filmadoras, levados à favela por motoristas contratados em hotéis de luxo, que cobram 180 reais por um "passeio turístico a Soweto". (No Rio, uma visita à Rocinha custa 100 reais.) Na porta de uma das quatro casas que ocupavam um pequeno terreno, cinco mulheres conversavam. Uma delas amamentava um bebê. Cat insistiu para que eu entrasse na casa de uma delas para "conhecer um barraco por dentro". As mulheres não disfarçaram o desconforto. Quando ele chamou pela dona, ela bufou e gritou palavras em zulu.

Era uma construção de dois cômodos, com paredes de madeira e restos de papelão, e carpete fazendo as vezes de chão, onde moravam três adultos e cinco crianças. Havia um fogão a gás, uma fruteira com uma dúzia de batatas escuras e baldes com água. No outro cômodo, um colchão de casal estava abarrotado de sacolas, caixas e pacotes que chegavam quase no teto. Ao lado, uma bacia, onde todos tomavam banho. A mulher disse que estava bem, ali. "O governo está prometendo melhorias. Muita coisa já ficou melhor, eu vou esperando", disse.

A intenção do governo é que cada quatro barracos de uma favela dividam um tanque com água encanada e um sanitário com descarga. Em muitas delas, existe a torneira, mas não o encanamento. A privada fica em uma casinha de madeira que lembra uma cabine telefônica, com uma chave pendurada na porta. O chão era de terra batida e, em vez de papel higiênico, havia pedaços de jornal rasgados. Aquele era partilhado por 23 pessoas.

Elias Motsoaledi estava sem eletricidade. Ao constatar a imensa quantidade de ligações ilegais, o governo mandou cortar todo o fornecimento de energia. À noite, os moradores se viravam com velas, lampiões a parafina e lanternas.

Mesmo não sendo o voto obrigatório, quase todos os moradores tinham título de eleitor e votavam no cna, disse Cat Qobongwane.

Perguntei se ele se incomodava com o fato de a vida dos negros ligados ao governo ter melhorado muito mais do que as dos moradores de favelas. "Eu vou achar ruim que um negro ficou rico? Pelo contrário, eu também quero ficar", disse. Andando para a entrada da favela, ele continuou: "Mas se continuarem a nos deixar sem luz, eles vão ver o que vai acontecer nas próximas eleições." Despedimo-nos e ele me pediu 70 reais. Explicou: "Isso faz parte do acordo com todos que moram aqui. O turista vê a casa das pessoas, paga e o dinheiro vai para a comunidade. Só fico com 5%."

No final de março, depois de mais um protesto, o governo religou a luz, mas informou que, se alguma ligação clandestina fosse descoberta, o fornecimento seria interrompido novamente. Na mesma semana, noticiou-se mais um escândalo: a Eskom, a empresa estatal elétrica, mantinha contratos irregulares com 138 empresas privadas para as quais fornecia energia a preços baixíssimos.


Às vésperas de completar 92 anos, Nelson Rolihlahla Mandela é o político vivo mais respeitado do mundo. Na África do Sul, só setores da extrema esquerda e uns poucos africâneres lhe fazem restrições. De uma linhagem aristocrática, ele perdeu o pai ainda criança e foi morar na tenda do chefe de sua tribo, os thembu. Foi o primeiro de sua família a ir à escola, uma instituição privada que atendia a realeza tribal. Era um aluno aplicado, metódico e um orador nato.

Mandela renunciou à liderança de seu clã quando soube que um casamento lhe havia sido arranjado. Expulso da faculdade por ter se envolvido em um boicote contra a política universitária do governo, mudou-se para Joanesburgo, onde trabalhou numa imobiliária e terminou o curso de direito por correspondência. Ali conheceu Walter Sisulu, com quem fundou o primeiro escritório negro de advocacia do país. O prédio onde trabalharam corre o risco de ser demolido até abril para dar lugar a um estacionamento. Sisulu o convenceu a militar no Congresso Nacional Africano.

Mandela tinha características que o diferenciavam dos líderes do partido. Além do carisma e da modéstia, deixava transparecer uma ausência de qualquer sentimento de vingança em relação aos brancos. Demonstrava uma confiança inabalável em si próprio, tinha o dom de ouvir e uma memória prodigiosa. Tais atributos o levaram à liderança do partido e, depois de passar por um treinamento militar na Argélia e na Etiópia, à coordenação da guerrilha do cna. Depois de quinze meses de perseguição, foi capturado e condenado à prisão perpétua por atividades subversivas. O prisioneiro passava o tempo entre trabalhos forçados, leitura e meditação. Era autorizado a receber visitas apenas a cada seis meses. Suportou as frequentes prisões da mulher e a morte mal explicada, em um acidente de carro, de seu filho do primeiro casamento. Casou-se três vezes. A primeira com Evelyn Ntoko Mase, da qual se divorciou em 1957, depois de treze anos de casamento, e com quem nunca mais teve contato. Em seguida, conheceu a assistente social Winnie Madikizela, 18 anos mais jovem, com quem ficou por 37 anos, sendo que quase três décadas se relacionando através do vidro da prisão da ilha Robben. O casal se divorciou em 1996 depois que divergências políticas e pessoais vieram a público. Em seu octogésimo aniversário, Mandela casou-se com Graça Machel, viúva de Samora Machel, líder da independência e primeiro presidente de Moçambique.

O movimento para sua libertação tomou proporções mundiais e a frase "Free Mandela" estampava broches, camisetas, agendas, bandeiras e guardanapos. Quando sua casa foi atacada pela polícia, congressistas norte-americanos se cotizaram para reconstruí-la. Seu aniversario de 70 anos, quando ainda estava preso, foi comemorado em comícios combinados em mais de vinte países. O governo branco se reuniu com Mandela em 47 ocasiões. Por seis vezes propôs libertá-lo em troca do compromisso do cna de abandonar a luta armada. Recusou todas. "Não posso e não farei nenhuma concessão num momento em que eu e meu povo não somos livres. A sua liberdade e a minha não podem vir separadas", escreveu em 1985, numa carta a sua filha. Quem cedeu foi Frederick de Klerk. Em 2 de fevereiro de 1990, o presidente anunciou à estarrecida tribo branca que as coisas nunca mais seriam como antes. Nove dias depois, Mandela foi solto.

Para o historiador Allister Sparks, a libertação de Mandela, a legalização e a desmontagem do apartheid foram uma "revolta negociada". Na época, o Salomon Brothers, o grande banco americano de investimentos, classificou o processo como "o mais substancial realinhamento de poder político, militar, social e econômico jamais acertado numa mesa de negociações, em lugar do campo de batalha, incluindo o Oriente Médio, a Europa Oriental e a ex-União Soviética". Anos antes da saída de Mandela da cadeia, dirigentes do cna e do Partido Comunista se encontravam regularmente com diplomatas americanos que serviam na África do Sul.

Mas houve outras cláusulas na "revolta negociada". Elas me foram expostas pelo economista Michael Kahn, um dos diretores do Conselho de Pesquisas em Ciências Humanas, durante um almoço na Cidade do Cabo: "O apartheid só acabou quando os brancos tiveram a certeza de que nada mudaria para eles, como de fato ocorreu." Na transição, acertou-se que o ministro das Finanças e o presidente do Banco Central do governo do apartheid seriam mantidos durante o mandato de Mandela. O cna também concordou que De Klerk fosse o vice-presidente. E garantiu o direito à propriedade privada (para evitar a desapropriação das terras dos brancos, como havia acontecido no Zimbábue) e se comprometeu a honrar as dívidas interna e externa e os empréstimos junto ao Fundo Monetário Internacional. Tudo foi cumprido.

Num artigo publicado em piauí, intitulado "Hegemonia às avessas", o sociólogo Francisco de Oliveira traçou um paralelo entre os governos do Congresso Nacional Africano e do Partido dos Trabalhadores. Ambos expressariam a dificuldade das classes dominantes dos dois países em exercer o poder diretamente. Só os representantes dos oprimidos, pt e cna, teriam autoridade política para tanto, com o objetivo de manter o sistema econômico e político. Ambos precisaram renegar partes significativas da sua história. Desenvolveram simultaneamente políticas assistenciais de compensação, enquanto garantiam a continuidade macroeconômica. Tornaram-se, assim, partidos da ordem.

Se a Carta à Liberdade foi o resumo das aspirações do cna durante quase meio século, o Programa de Desenvolvimento e Reconstrução representou o projeto a ser implantado quando ele chegasse ao poder. Mandela sintetizou o programa em seu slogan de campanha: "Uma vida melhor para todos." O plano previa a construção de milhares de casas populares, hospitais, escolas, a criação de empregos e a estatização das minas e dos bancos do país. "Era o desenho de uma sociedade socialista com a riqueza distribuída entre a maioria, que era a dos menos favorecidos", explicou-me Patrick Bond, um dos seus autores.

O Programa, no entanto, não saiu do papel. "Um dia, o governo apareceu com outro programa chamado Crescimento, Emprego e Redistribuição, e enterrou para sempre o projeto original", disse Bond. "Desde então, o cna nunca mais foi o mesmo." O novo plano previa privatizações, redução do déficit fiscal e juros altos. "Durante muitos meses, executivos do Banco Mundial faziam visitas à África do Sul. O fmi condicionou um empréstimo ao país ao compromisso de uma política salarial austera e corte de custos", afirmou o professor.


Foram lançados nos últimos meses quatro cartapácios sobre a história do pós-apartheid escritos por jornalistas e historiadores sul-africanos de renome. Em comum, têm o fato de reservar a Mandela um papel secundário na história e jogar luz sobre um personagem enigmático: seu sucessor, Thabo Mbeki. Se Mandela evitou que o fim do apartheid desse origem a uma guerra civil - é o argumento comum a vários ensaios da série -, foram as ideias de Mbeki que orientaram as políticas do cna nos últimos vinte anos.

Primeiro como vice de Mandela, cargo que dividiu com De Klerk, e depois como presidente efetivo entre 2000 e 2008, Mbeki teve como objetivo primordial a recuperação econômica. E conseguiu: no seu governo, a África do Sul cresceu em média 5% ao ano. Já a política social que implementou foi desastrosa, sobretudo no que diz respeito à epidemia da Aids.

Thabo Mbeki é filho de uma professora comunista e de um militante histórico do Congresso Nacional Africano que ficou preso com Mandela por quase trinta anos. Desde cedo, aprendeu que não deveria confiar em brancos ou em alguém que não fosse do cna. Foi o partido que financiou seus estudos, transferiu-o para a Tanzânia e depois determinou que estudasse economia na Universidade de Sussex, na Inglaterra. Foi o segundo estudante negro da instituição.

Ali adquiriu gostos mundanos como fumar cachimbo, usar ternos de tweed e citar poetas britânicos. E começou a formar sua visão política de culto ao individualismo, desprezo pelo populismo, e a noção de que se deveria fazer o certo para o povo, mesmo que ele não percebesse. Em 1969, quando foi mandado para um curso de liderança ideológica no Instituto Lênin, na União Soviética, tornou-se um crítico exacerbado do modo de vida ocidental.

Morou depois na Zâmbia, em Botsuana, na Suazilândia e na Nigéria, mas viajava boa parte do tempo pela Europa e pelos Estados Unidos, na condição de responsável pela propaganda e porta-voz do cna. Durante 28 anos não pôs os pés na África do Sul, criando uma distância que seu biógrafo Mark Gevisser chamou de "desconexão permanente". Enquanto a maioria dos jovens líderes do cna se formou nos movimentos estudantis, sindicais e em associações de combate ao apartheid, Mbeki foi lapidado em reuniões fechadas, em aparelhos partidários e na segurança do exílio.

"Mbeki era pelo povo, mas não era do povo", escreveu Gevisser. Isso explicaria o seu desconforto em lidar com os conterrâneos, ao mesmo tempo em que parecia tomado pela ideia de que a África, e ele mesmo, eram vítimas de conspirações. Ele foi uma figura central na negociação da transição. As reuniões com o fmi e o Banco Mundial só ocorriam em sua presença, o "homem de Sussex" do cna, como diziam seus interlocutores. Foi dele a ideia de trocar o reformismo do Programa de Desenvolvimento e Reconstrução pelo neoliberalismo do plano de Crescimento, Emprego e Redistribuição. Mas como um militante do aparelho do cna, com curso na União Soviética, abandonou os princípios socialistas em favor de uma política de submissão ao mercado? Gevisser diz que a sua estadia no Instituto Lênin foi fundamental, mas num sentido inverso ao esperado: Mbeki teria percebido os problemas do sistema soviético e abandonou todas as ideias reformistas e socializantes. Mas manteve a visão aparelhista e conspiratória.


Era previsível que, à época do apartheid, o governo pouco se interessasse pela Aids, doença que atingia basicamente negros e pobres, e pouco fizesse para enfrentá-la. A maneira que Mbeki tratou a epidemia foi ainda mais chocante. Para ele, havia uma conspiração dos brancos imperialistas e dos laboratórios estrangeiros baseada numa visão racista sobre os hábitos sexuais dos negros. Mbeki chegou a dizer que era a pobreza (má nutrição e falta de água potável) e não o hiv, a causa da doença. Recusava-se a fornecer tratamento para os doentes e acusou os negros que tomavam os coquetéis de azt como "fracos de cabeça".

Para aplacar os críticos, Mbeki nomeou um comitê que incluía representantes de organizações não governamentais, jornalistas e sanitaristas para debater as causas da Aids. O comitê, escolhido a dedo, apegou-se ao trabalho de um bioquímico americano, Peter Duesberg, cuja tese era de que a Aids era um conjunto de doenças, sem ligação umas com as outras, resultado do uso de drogas ilícitas e de medicamentos.

Em 1997, Mbeki procurou seus camaradas de direção do Congresso Nacional Africano para falar sobre o Virodene. Uma médica portuguesa lhe dissera ter descoberto uma droga que impedia a reprodução do vírus hiv. O medicamento, testado sem o consentimento dos pacientes, teria feito com que eles recuperassem o peso e melhorado o aspecto geral.

Mbeki anunciou que a África do Sul havia descoberto a cura da Aids. Era a oportunidade, ele disse, de os africanos se livrarem das amarras da "caridade internacional", uma causa histórica da subjugação dos negros. Menos de três meses depois, descobriu-se que o medicamento era altamente tóxico e provocava a falência do fígado, e dos rins. Mbeki se recusou a desculpar-se e, simplesmente, parou de falar do Virodene.

Anos depois, soube-se que vários empresários ligados ao cna e a Mbeki - entre eles, Max Maisela, seu principal consultor quando vice-presidente - haviam investido milhões de dólares no Virodene. Um estudo da Harvard School of Public Health estimou que a política de Mbeki resultou em 330 mil mortes pelo hiv, entre 2000 e 2005. A questão racial era sempre alardeada por Mbeki. Quando uma jornalista branca, Charlene Smith, foi à televisão contar ter sido estuprada em sua casa por três homens, ele a acusou de perpetuar a imagem do negro como predador sexual, incapaz de controlar seus instintos. Também usou o racismo para justificar a escolha da Alemanha, e não da África do Sul, para sediar a Copa do Mundo de 2002.

A jornalista Karabo Keepile, do semanário Mail & Guardian, havia me proposto uma caminhada até o restaurante em um centro comercial no bairro de Rosebank, em Joanesburgo. Anoitecia, e o trajeto parecia longo. Perguntei se havia algum perigo em andarmos sozinhas e mencionei estatísticas recentes. Estupros, 100 por dia. Assaltos, 700. Assassinatos, 50. Ela sorriu. "Não, comigo você está tranquila", disse. Pedi que explicasse melhor.

"A violência aqui é igual a qualquer lugar do mundo", disse Karabo Keepile. "A diferença é que ela sempre ficou restrita às favelas, e agora se tornou perceptível por estar batendo na porta dos brancos. Você tem que andar aqui com os cuidados que andaria em Nova York ou no Rio de Janeiro."

No ano passado houve 125 estupros para cada 100 mil habitantes. Calcula-se que, para cada queixa registrada, há outras 35 vítimas que preferem manter-se em silêncio. Ainda assim, chega-se à estatística estarrecedora de um ataque a cada vinte segundos. Quase 10% das alunas sul-africanas já foram violentadas por seus próprios professores nos banheiros das escolas. Nos Estados Unidos, a média é de 39 para cada 100 mil, número compatível ao brasileiro. Estudiosos do tema atribuem a "cultura do estupro" a uma série de fatores combinados: rápido crescimento da população, desemprego galopante, desconfiança na polícia (que ainda é identificada como força repressora racista), pobreza, sentimento de posse tribal em relação à mulher e ignorância. Ainda há quem acredite que ter relações sexuais com uma criança ou com um bebê é capaz de destruir o vírus da Aids.


Em 2001, Mbeki resolveu reequipar suas Forças Armadas. A licitação, de 5 bilhões de dólares, para a compra de jatos, submarinos e corvetas, foi ganha por um consórcio espanhol. Mas o contrato foi fechado com um grupo alemão. Quando suspeitas de corrupção chegaram perto do governo, ele demitiu o vice-presidente Jacob Zuma, seu amigo de trinta anos, que foi acusado de receber propina. Mbeki estava isolado e com a popularidade decrescente, enquanto Zuma, um demagogo afável e agregador, era o favorito para sucedê-lo na Presidência.

Pouco depois, outra acusação levou Zuma aos tribunais. A filha de um amigo, portadora do vírus hiv, disse ter sido estuprada por ele dentro de sua casa. No julgamento, Zuma disse que, como zulu, tinha a obrigação de satisfazer as mulheres. E que o comprimento da saia da moça era sinal do que ela estava lhe pedindo. Quando foi indagado se havia se protegido durante a relação sexual, ele respondeu ter tomado "uma chuveirada", o que diminuía os riscos da propagação da doença.

Durante as investigações sobre os casos, no entanto, descobriu-se que Zuma havia sido monitorado pela Receita Federal e pelo Serviço de Inteligência. Como era vice-presidente, a medida só era possível com a autorização do presidente. Era a prova que Zuma precisava para atribuir a Mbeki uma conspiração para afastá-lo do poder.

A situação logo se inverteu. Diversos grupos de interesse - que em algum momento passaram a atacar Mbeki, fosse por suas medidas, seu modo centralizado de governar, ou até mesmo por sua antipatia pessoal - uniram-se em torno de Zuma. Mbeki foi humilhado e desacreditado. Afastado da direção do CNA, renunciou, em seguida, à Presidência. Desde então, tornou-se um pária no partido ao qual dedicou meio século de sua vida.


A Constituição promulgada depois da eleição de Mandela baniu a segregação racial. Foi proibida a obrigatoriedade de as crianças serem registradas, na certidão de nascimento, como branca, negra, mestiça ou amarela. Mas a política mais ambiciosa do cna para atenuar as desigualdades impostas pelo apartheid obrigou os sul-africanos a serem identificados novamente pela cor da pele.

O Black Economic Empowerement (Fortalecimento Econômico Negro), que todos chamam de bee, previa que todas as empresas que quisessem fazer algum tipo de negócio com o governo deveriam ter em seus quadros funcionários negros e mestiços. Era o momento da compensação. Colocado em prática em 2003, o plano de ação afirmativa tinha como objetivo fazer com que o mercado absorvesse milhões de cidadãos colocados à margem durante décadas. As empresas que cumprissem determinadas metas de inclusão e promoção de negros ganhavam mais pontos, o que as deixava em melhor posição em licitações, contratos e parcerias com o governo.

O bee trazia embutido dois preceitos. Primeiro, o de aumentar os postos de trabalho para os trabalhadores negros pobres. O segundo era de forçar e acelerar, por meio das promoções de negros no interior da hierarquia das empresas, a formação de uma nova classe média. Os executivos negros poderiam, ainda, montar novas empresas, que contratariam preferencialmente negros.

Muitos empresários brancos, porém, passaram a nomear jardineiros ou motoristas como vice-presidentes de suas empresas. Isso fazia com que a pontuação do bee disparasse e eles levassem os contratos. Como a fiscalização era praticamente inexistente, explodiu o número de prepostos negros à frente de empresas já estabelecidas, e também de companhias moldadas exclusivamente pelos critérios do bee, unicamente para ganhar concorrências.

A idéia do bee não partiu do Congresso Nacional Africano. Ela foi inventada em 1992, dois anos depois da libertação de Mandela, pela New Africa Investments Limited, uma empresa branca. Segundo o analista político Moelesti Mbeki (irmão do ex-presidente Thabo Mbeki e um dos maiores críticos do CNA), o empresariado tinha o objetivo de cooptar a nata dos movimentos de resistência, "literalmente, comprando-os com ações de empresas sem qualquer custo". Para os oligarcas, o valor era pífio. Para os militantes, era um meio de subir na vida.

E, de fato, vários dirigentes e quadros do Congresso Nacional Africano mudaram de ramo. Tornaram-se homens de negócios, sócios e donos de empresas que detinham boa parte dos contratos do governo. Cyril Ramphosa, ex-secretário-geral do partido, e Tokyo Sewale, ministro da Habitação Popular, integram a casta dos diamantes negros.

Outra vantagem para os brancos era mostrar que o cna poderia abandonar os planos de estatização, já que conseguia parcerias com empresas estabelecidas no mercado, e com negros nos seus quadros. O bee também permitia que os empresários brancos tivessem trânsito no governo, prioridade nos contratos e proteção contra os concorrentes estrangeiros.

O programa não produziu uma geração empreendedora. "O recado que se passa para os negros é que você não precisa se esforçar, correr riscos, já que os brancos vão te colocar como sócio de uma companhia", defende Moelesti Mbeki. Menos de 1% das empresas na África do Sul estão nas mãos de negros.

O Instituto Unilever de Marketing Estratégico, ligado à Universidade da Cidade do Cabo, estima que 2,5 milhões de negros tenham casa própria, carro e microondas. Num estudo denso e elogiado, o sociólogo Lawrence Schlemmer avaliou que os novos ricos são 330 mil, menos de 1% dos negros do país.


No ano passado, o jornalista e escritor inglês R. W. Johnson, correspondente do Sunday Times e colaborador da London Review of Books, nadava no lago em frente a sua casa de veraneio, na província de KwaZulu-Natal, quando sentiu um raspão nos dedos do pé esquerdo. Saiu da água e viu que sangrava. Meia hora depois, deu entrada em um hospital praticamente morto. Contraíra uma bactéria raríssima e mortal na água poluída. Para salvá-lo, os médicos tiveram que amputar sua perna esquerda acima do joelho. Os dedos do pé direito ficaram necrosados e o movimento da mão esquerda, comprometido.

Em uma manhã de fevereiro, sua mulher, Irina, professora universitária russa, abriu a porta da casa deles em Constantia, a meia hora da Cidade do Cabo. Eles moram numa região de colinas floridas, de onde se tem uma magnífica vista de vinícolas. Johnson tem 67 anos e mora na África do Sul desde os 13. Foi com dificuldade que manobrou a cadeira de rodas até a mesa abarrotada de recortes de jornais e revistas.

Intelectuais de esquerda consideram R. W. Johnson conservador e racista, mas ele rebate as críticas dizendo ser um dos "poucos a ter coragem de dizer o que todo mundo pensa". Suas opiniões costumam ser baseadas em fatos e estatísticas, que pontuam as 700 páginas de seu livro mais recente, South Africa's Brave New World [África do Sul: Admirável Mundo Novo].

"Todo o imaginário criado em torno do cna - a prisão de seus líderes, as mortes na resistência, o sonho de um governo para o povo - colocou o partido acima do bem e do mal", disse. "Mas o fato é que, quando chegaram ao poder, mostraram o que eram: inexperientes e incompetentes, além de terem rapidamente caído na corrupção", falou.

Ele contou o caso da filha de sua ex-empregada, Carolyn, para ilustrar a tênue linha que separa o público do privado nas relações dos políticos do cna. A moça, pobre, fora estuprada duas vezes na adolescência. Anos depois, Johnson soube que ela havia engravidado de um figurão do partido. Telefonou para ela e perguntou como podia ajudá-la. Ela lhe disse que não precisava nada: havia sido nomeada chefe do departamento de distribuição de livros didáticos de toda a região de Limpopo. "Carolyn mal sabe escrever o próprio nome", disse. "Então, imagine o que nos reserva o futuro desse país".

Irina trouxe chá e biscoitos e Johnson continuou: "A elite do CNA é hoje de milionários, incluindo Mandela, que enriqueceram fazendo negócios dentro do governo. Como um homem que saiu da prisão sem um centavo, hoje tem mansões em Moçambique, Joanesburgo e Cidade do Cabo? Por que ninguém investiga isso?"

Para ele, o bee é, em termos lógicos, uma sandice. "Ação afirmativa faz sentido para ajudar uma minoria e não 80% da população", disse. "O que ocorre é que o Estado vira um refém. Nos Estados Unidos, ação afirmativa é para uma minoria desassistida. Política para a maioria não pode ser a de exceção. Ter dois quintos da sociedade dependendo da ajuda do governo e apenas 5 milhões de brancos pagando imposto de renda, é a prova de que esse país ainda terá muitos problemas pela frente."

Perguntei a Johnson o que mudara na vida dos brancos desde a chegada do cna ao poder. "O crime entrou na vida dos brancos e eles perderam a rede que garantia seu futuro", constatou. "E, o que é mais grave: um jovem branco de 15 anos, que nem sabe o que foi apartheid, não vai ter emprego na África do Sul."

Foi o que quase aconteceu com a capitã Renate Barnard. Com vinte anos de trabalho na polícia nacional, a capitã se candidatou a uma promoção por duas vezes no ano passado. Foi preterida em ambas, apesar de um comitê tê-la recomendado como melhor candidata à vaga. Em março, o Tribunal Superior do Trabalho lhe deu ganho de causa no processo em que ela acusava seus chefes de "racismo às avessas". Ela disse aos jornais: "Sou uma profissional excelente, sacrifiquei minha vida e a da minha família todos esses anos pelo meu trabalho, e não me escolheram porque sou branca." Segundo seus advogados, o veredicto dava nova "direção às ações afirmativas" no país.

Uma empregada negra uniformizada e de turbante na cabeça atravessou a sala. Quando ela cruzou o corredor, Johnson retomou seu raciocínio. "Essa ideia de que 'agora é a nossa vez', que é a hora da revanche, está muito presente", disse. Ele contou que, quando convida amigos negros para jantar, "eles assumem que sou eu quem vai pagar a conta". Mencionou ainda o caso de um conhecido do Congresso Nacional Africano, a quem ele havia ajudado a arrumar uma bolsa de estudos em Oxford. "Ele jamais me ligou para agradecer", comentou. "E não é uma questão de ser educado ou não. Ele simplesmente acha que era minha obrigação fazer isso."


O Congresso Nacional Africano tem quase 70% das cadeiras no Parlamento. É apoiado pelas duas maiores forças da esquerda, a Cosatu, a maior central sindical, e pelo Partido Comunista. A Aliança Democrática, que venceu as eleições na província da Cidade do Cabo, a única a não ser governada pelo cna, é acusada sistematicamente pelo governo de ser um partido branco e racista. O passado de luta antiapartheid da governadora Helen Zille é ignorado. Políticos negros de outros partidos são chamados pelos militantes do cna de cocos: pretos por fora e brancos por dentro.

Em um fim de tarde, num restaurante ao lado do Parlamento, na Cidade do Cabo, o deputado Philip Dexter, do Congresso do Povo, o Cope, tomava vinho branco com gelo (como é de praxe em todo o país) com outros seis companheiros de partido. Formado em 2008, o Cope é uma espécie de psol. Ele agrupa militantes que, insatisfeitos com os rumos tomados pelo Congresso Nacional Africano, criaram uma nova legenda. Dexter e os amigos discutiam a formação de um novo sindicato para concorrer com a Cosatu, que, segundo eles, é "cúmplice das vilanias do governo". Imaginavam arrebanhar cerca de 1,5 milhão de trabalhadores que "não se sentem representados pelo cna". Chamavam-se de "camarada" e citavam Marx e Lênin.

Dexter é branco, tem os olhos verdes e o cabelo frisado. Na paleta sul-africana, é considerado mestiço. Usa óculos de armação preta pesada e gravata vermelha com estampa pouco discreta. Foi casado com uma brasileira e tem um filho que mora em Florianópolis. "Aqui não é mais possível falar em esquerda e direita", ele me disse. "O cna não representa mais o povo. Como você pode achar que esses sujeitos com bmws, quatro ou cinco mansões, são a cara da maioria pobre sul-africana?"

Juntou-se à mesa outro deputado, Willie Madisha, um clone do ator Lázaro Ramos, ex-presidente da Cosatu. Nos anos 80, Madisha conheceu Luiz Inácio Lula da Silva, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, a quem disse admirar: "Ele fez do Brasil uma potência e ainda está melhorando a vida dos pobres."

Na véspera, o governo havia anunciado as metas para o orçamento de 2010. Uma delas era ampliar a distribuição de benefícios para jovens de até 18 anos, mas se manteve a estrutura assistencialista. "Nem o governo do Bush faria algo tão de direita", brincou Madisha. Do outro lado da mesa, Dexter disse: "Houve progressos, como os benefícios sociais, mas, do jeito que foi feito, eles tornam o cidadão dependente do Estado. Esse populismo tem similaridades com o que ocorre na Venezuela. É um cesarismo presidencial travestido numa retórica de esquerda. Pensam na luta de classes em termos tão rudimentares e falam em estatização não para distribuir riqueza, mas para concentrar mais poder."

A mesa se serviu de mais vinho e gelo e Dexter continuou: "A classe mais perigosa é a burguesia. Porque ela só quer o poder para proteger o seu poder. E o cna virou um partido burguês." Seus camaradas balançaram a cabeça, concordando.

Quando entrei no táxi, o motorista avistou os parlamentares, que também estavam na calçada, e perguntou se "aquele era o pessoal do Cope". E comentou: "Essa gente só quer cargo no governo. Eles acham que vão acabar com o cna e ficar com os cargos. Não querem dar uma oportunidade ao cna, que está tentando fazer as coisas, construir casas. Eles vão ter muito poder sempre, porque eles são gente nossa."


Presidente da Liga da Juventude do cna, cargo já ocupado por Mandela, Julius Malema é o deleite de cartunistas e chargistas. Aos 27 anos, ele se tornou uma das figuras mais expressivas do Congresso Nacional Africano por seu discurso nacionalista, agressivo e de ataque aos brancos. Desconhecido há dois anos, Malema ganhou projeção por ter sido peça fundamental na articulação para eleger Jacob Zuma, que o carrega para quase todos os eventos e sempre sai em sua defesa quando é atacado.

Com um salário de 5 mil reais, Malema é dono de duas casas avaliadas em 1,5 milhão de reais (pagas em dinheiro vivo), tem um Mercedes, um Aston Martin e um Range Rover. Usa um relógio Breitling de 60 mil reais e só se veste com jeans Diesel e camisas Gucci, mesmo quando visita favelas.

Uma reportagem do jornal The Star mostrou que Malema é sócio oculto de mais de dez empresas, todas elas com contratos com o governo. Soube-se que também não declara imposto de renda. Todas as vezes que foi confrontado com o fato, Malena deu a mesma resposta: "Isso é coisa de brancos racistas que não aguentam ver um negro ser bem-sucedido." A popularidade de Malema cresce a cada pesquisa, sobretudo entre a população mais carente. Comentaristas políticos o consideram um candidato potencial à sucessão do presidente Zuma, em 2012.

As denúncias de corrupção entre membros do cna explodiram nos últimos meses. O governador de Limpopo teve que renunciar depois que foi descoberto que sua mulher e filha ganharam a maior licitação da província. Publicou-se também que o ministro das Comunicações, há dez meses, gastava 1 mil dólares por dia (da verba de representação) para dormir em hotéis de luxo. Justificou-se dizendo que não haviam lhe comprado um colchão decente para o apartamento funcional do governo.

Frente aos escândalos, o presidente Zuma prometeu abrir suas contas pessoais. O governo gastava 4 milhões de reais por ano em despesas com as três primeiras-damas (Zuma é polígamo). Sobre os gastos de seus vinte filhos ainda não se sabe quem os financia.

"Muitos integrantes do cna são contrários às investigações de corrupção no governo porque muitos deles estão envolvidos", disse-me Patrick Craven, um inglês magro e grisalho, de aparência pouco amistosa, porta-voz da Cosatu há 22 anos. A central sindical, que fica em um prédio decadente no centro de Joanesburgo, apoia o governo, mas lhe faz críticas pontuais. Ela quer que os políticos tornem públicos seus bens e contas bancárias. "O que a esquerda não entende é que o problema não é a Cosatu ou o Partido Comunista: é o próprio cna. Eles vão explodir", comentou.


Às nove de uma manhã de quarta-feira, o ministro de Indústria e Comércio, Rob Davies, um irlandês barbudo e de expressão grave, tomou a palavra no seminário "bee: uma boa tentativa de compensação ou não?", na Câmara de Comércio da Cidade do Cabo, e disse ao auditório lotado: "Temos que admitir que o bee não está dando certo."

Durante mais de duas horas, Davies falou sobre as distorções do programa. Teve que responder por que não havia um padrão de exigência nas licitações. Explicou a razão de o governo continuar a selecionar empresas sem expertise nas áreas que pretendem atuar. E comentou a denúncia de que um certificado bee pode ser comprado por 300 dólares.

Ele se saía razoavelmente bem até que uma mulher branca, de cabelo vermelho, levantou a mão dizendo que ia fazer uma pergunta "como cidadã": "Quero saber o que o governo me sugere dizer a um branco pobre que se sente discriminado por não ter os mesmos direitos de um negro que também é pobre." Houve silêncio e muitos ouvintes se mexeram nas cadeiras. "Não há discriminação", respondeu o ministro. "Só entendemos que os negros têm uma desvantagem maior." A meu lado, um senhor branco comentou: "A nação arco-íris virou nação cappuccino: muito preto embaixo, uma espuminha de brancos por cima e um polvilhado de diamantes negros no topo."

Depois da conferência, o presidente da Câmara de Comércio da Cidade do Cabo, Yusuf Emeran, um descendente de indianos, me disse: "O bee é um equívoco. Nada mudou no mundo corporativo nesses últimos quinze anos. Os brancos continuam sendo os donos de tudo. O que mudou foi que os nossos militantes se tornaram milionários."

Yusuf Emeran se servia de café com bolinhos quando me contou sua história. "Fui membro do cna por 56 anos. Lutamos pela democracia para que todos pudessem votar. Passei metade na minha vida no exílio, em nome de um projeto maior. E eu digo a você: esse não é mais o cna dos nossos sonhos. Eles venderam o sonho e eu decidi que não voto mais", afirmou. Ele passou 32 anos no exílio. Fixou-se na maior parte do tempo na Inglaterra, onde ganhou dinheiro com uma empresa de saneamento. De volta à África do Sul, ficou ainda mais rico. Sua empresa é responsável pelo fornecimento de água filtrada em quase toda a província do Cabo.

"Podem falar o que quiser, mas antes do cna chegar ao poder as pessoas tinham que andar 12 quilômetros para pegar água, elas não tinham eletricidade nem teto, e hoje elas têm", disse-me Moloto Mothapo. Ele é o porta-voz da bancada do Congresso Nacional Africano no Parlamento. "O povo reconhece isso. Então, temos certeza que vão sempre votar no cna porque foi o partido que mudou a vida das pessoas."

Moloto Mothapo é alto e magro como uma escultura de Giacometti, só que com óculos de grossa armação azul. Ele acha que as denúncias de corrupção são exageradas: "Isso não é privilégio desse país. Em todo lugar onde as pessoas têm conexão com o poder, elas querem se meter nas licitações públicas. Mas estamos criando mecanismos para combater esse problema, é um dos pontos do nosso programa de metas."

Seu celular tocava a cada cinco minutos e ele parecia enfadado em ter que dar explicações sobre o comportamento dos políticos do partido, no qual milita desde os 14 anos. "O problema é que a imprensa aqui exagera, apura mal e, quando erra, publica uma retratação mínima", disse. E a seguir fez uma queixa parecida com as que são feitas do outro lado do Atlântico: "Tanta coisa boa que o governo está fazendo e eles só focam no negativo."


12 de dezembro de 2013
Daniela Pinheiro

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