Há espanto e compaixão na esplêndida entrevista de Papa Francisco. O espanto de quem se sentiu perdoado e amado pelo Salvador, como o publicano Mateus, o evangelista da célebre tela de Caravaggio. Que o Papa evoca. E tem a compaixão por esta humanidade de feridos. O desejo de levar a todos aquele olhar de misericórdia que ele (Francisco) encontrou no vulto de Jesus e, portanto, na Igreja.
O que somos
Na verdade, nós vivemos num mundo de dor. As crônicas falam de guerras sangrentas, de repressão cruel, de crise econômica que traz violência e angústia, de sociedades cheias de ódio. Falamos de violência até mesmo nas relações afetivas pessoais que deveriam ser marcadas pelo amor. Somos todos criaturas feridas pela vida. Não se pode negá-lo.
O recente festival de Filosofia, em Modena, dedicado precisamente ao amor, foi encerrado com a aula magistral da socióloga israelense, Eva Illouz, conhecida pelo seu best-seller "Porque o amor faz sofrer". Illouz, ainda que feminista e liberal, radiografou - cinquenta anos depois da revolução sexual que deveria nos tornar livres e felizes - um panorama de ruínas.
Ela explicou que o amor tornou-se simplesmente um problema, a ser resolvido pela comunidade terapêutica. E acrescentou: "O amor sempre fez sofrer, mas hoje faz muito mais que antes". E isto todos nós sabemos. É a enésima 'heterogênese dos fins'. Como o marxismo, também a revolução sexual prometeu a felicidade e produziu infelicidade (o mesmo podemos dizer do mito cientificista e daquele do bem-estar).
O Hospital de Deus
Assim, a nossa sociedade está cheia de feridos. Eis porque Papa Francisco vê a Igreja como um hospital de campanha depois da batalha. Ela é chamada a "curar as feridas e a aquecer o coração dos fiéis". Estamos todos feridos, sem distinção de credo, de filosofia ou de crença política. A batalha que nos jogou por terra e de que fala o Papa é aquela da vida, mas também a que a modernidade empreendeu para emancipar-se de Deus.
É evidente que a Igreja perdeu esta batalha (humana e historicamente falando). Mas os 'mortos e feridos' estendidos no chão são os vencedores, isto é, todos nós, modernos. A Igreja não combatia por si, mas por nós. Nós, modernos, vencemos e agora estamos na lona. Por isto, a Igreja, como mãe cuidadosa que olhava por seus filhos, se inclina sobre eles, piedosa, e os carrega nas costas.
Papa Francisco faz como o pai do filho pródigo. Que não joga no rosto do filho os seus erros, não investe contra ele e não o pune. Ao contrário, quando estava ainda longe, o pai o viu e, comovido, correu-lhe ao encontro, apertou-lhe junto ao peito e o beijou", depois - interrompendo o mea culpa do filho - "disse aos criados: rápido, tragam a roupa mais bonita para vesti-lo, coloquem o anel em seu dedo e os sapatos nos seus pés... façamos uma festa, porque este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado" (Lc 15, 20-24).
O irmão indignado
Falemos a verdade, o comportamento do filho mais velho, que, voltando do campo, vê toda aquela comemoração e fica indignado com o pai, parece um pouco com alguns de nós, católicos, em relação a Papa Francisco. Há aqueles que queriam que se estivesse todo o tempo a condenar, a recriminar e a fazer discursos, enquanto o pai queria, antes de mais nada, abraçar aquele que errou e reavê-lo como filho. Isto não significa de modo algum aprovar os erros ou subestimá-los. Não, isto significa amar os filhos.
De resto, é isto que a Igreja tem feito desde o começo. A "boa nova" (porque é isto que significa a palavra Evangelho) não é o elenco de pecados, nem tampouco um catálogo de valores morais, mas é o anúncio de que Deus teve piedade dos homens e veio carregá-los às costas, cuidar deles, curá-los e salvá-los.
Jesus entrou no mundo assim: não incriminou, não acusou ninguém. Salvou. Não incriminou o mundo. Salvou o mundo. Os outros - escrevia Péguy - vituperam, raciocinam, incriminam. Médicos injuriosos que perturbam os doentes.
O grande convertido francês usava a mesma metáfora de Papa Francisco: somos uma humanidade doente, um mundo de feridos. E o médico não pode ficar amolando o doente. O seu dever é cuidar dele, curá-lo. Dir-se-á que hoje, no entanto, a secularização é galopante. Mas já Peguy tinha resposta a esta objeção: "mesmo no tempo de Jesus, havia o mundo e as areias do mundo. Mas sobre a areia seca, sobre a areia do mundo, corria uma fonte, uma fonte inesgotável de graça"
Também Jesus foi acusado de ser indulgente, e até mesmo conivente, com os pecadores, publicanos e prostitutas. Mas ele veio para eles (ou seja, para todos nós). E era justo a sua misericórdia, a beleza de sua humanidade, a comover os pecadores que se convertiam e mudavam de vida.
A guerra dos valores
Quem hoje lamenta o fim da batalha pelos valores não-negociáveis não entendeu nada. À parte o fato de que tais valores não são a essência do cristianismo e considerá-los como tais seria uma nova e perigosa ideologia. Isto posto, é errado pensar que Francisco renegue tudo quanto ensinaram seus predecessores. Porque ele sempre reafirmou este ensinamento (inclusive hoje o fez sobre o início e o fim da vita, no encontro com os médicos)
Certo, não está a repeti-lo todo dia. Mas não porque aqueles princípios, a seus olhos, não são importantes. Apenas porque a Francisco importa, acima de tudo, ressaltar o primeiro, verdadeiro , grande e fundamental "princípio não-negociável" (a base de todos os outros): o ser humano concreto, aquele de carne e osso, com suas feridas, e com seus pecados. A sua salvação. Aos olhos de Deus, as pessoas concretas são o fundamental 'princípio não-negociável', tanto que, por cada um deles, Ele se fez homem, se deixou crucificar e ressuscitou.
Eis porque, na exortação missionária de Francisco para que sejam curadas as feridas da humanidade, ocupa lugar de destaque construir centros de ajuda à vida, acolher as pessoas abatidas pela falência de liames afetivos, dar suporte a quem vive doenças terminais ou a pessoas queridas em condições extremas, ajudar pobres e infelizes. Abre-se uma grande época de caridade para os cristãos.
O que muda
Por certo, alguma coisa muda: o olhar sobre este momento histórico. Mais que batalhas culturais com intelectuais e políticos, cuidar-se-á dos seres humanos. Não porque seja errado ou inútil dizer a verdade e procurar o bem público. É dever (o mesmo Francesco dialogou com Scalfari).
Mas porque - como dizia dom Giussani - a vencer a cultura niilista não será a cultura católica contraposta a essa, mas a comoção pessoal por Jesus, a Sua caridade:" A Igreja é de fato um espaço de humanidade que comove, é a casa da humanidade. A luta contra o niilismo é esta comoção vivenciada."
De resto, tem sempre sido assim. O mundo sempre foi uma fileira de feridos. Porque esta é a condição humana. Nascemos como náufragos que buscam o sentido da vida, envoltos no mistério do universo, queremos amar e ser amados, nos submetemos ao mal e o fazemos, buscamos todo dia a felicidade e não a encontramos.
Assim, nos via Jesus. Assim nos representou na parábola do Bom Samaritano: nós somos aquele homem 'despido, espancado' e deixado 'meio morto', na beira da estrada, enquanto Ele é o bom samaritano que "teve compaixão, aproximou-se, cuidou das feridas, colocando sobre elas óleo e vinho; depois, colocando-o em cima do jumento, levou-o a uma hospedaria e tomou conta dele."
Aquela 'hospedaria' é a Igreja. E como Jesus cura as nossas feridas? O profeta Isaías nos diz:" Por suas chagas, nós fomos curados". Cura-nos sofrendo em nosso lugar. Resgata-nos entregando-Se.
Os santos nos relembram isto. Pensemos em Padre Pio, em seus estigmas, nos sofrimentos com que obtinha tantas graças. O seu confessionário foi um grande hospital de campanha para as almas. E ao lado quis construir um grande hospital para o corpo: "a Casa Alívio do Sofrimento". Para entender Francisco, olhai para os santos como Padre Pio.
04 de outubro de 2013
Antonio Socci.
in mirian macedo
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