O STF confirmou que as leis podem retroagir, a depender da vontade dos magistrados
O Supremo Tribunal Federal confirmou na quinta-feira passada que as leis podem retroagir, a depender da vontade dos magistrados. Ao confirmar decisão em que fez valer os efeitos da Lei da Ficha Limpa para candidatos condenados antes da edição do referido diploma legal, a principal instância judicial do País inscreveu definitivamente a insegurança jurídica como norma, tudo isso a pretexto de sanear a política de seus corruptos.
O caso diz respeito a um vereador do município baiano de Nova Soure, tornado inelegível como punição por abuso de poder econômico e compra de votos em 2004. Na ocasião, estava em vigor a Lei Complementar 64/1990, que estabelecia três anos de inelegibilidade para delitos do gênero. A pena foi cumprida e o político pôde se candidatar nas eleições de 2008, conseguindo um novo mandato. Quando foi disputar as eleições de 2012, primeiro pleito em que passou a vigorar a Lei da Ficha Limpa, aprovada em 2010, o vereador teve o registro indeferido pelo Tribunal Superior Eleitoral. O argumento era que a punição para casos como o dele não era mais de três anos, e sim de oito anos, como estabelecia a nova legislação. Com isso, o TSE considerou que o político ainda tinha contas a acertar com a Justiça, embora seu caso já tivesse transitado em julgado, e a pena de inelegibilidade, devidamente cumprida.
O caso foi parar no Supremo, que não deveria hesitar em reverter a esdrúxula decisão do TSE, por se tratar de clara afronta aos princípios do trânsito em julgado e da irretroatividade das leis. Mas não foi o que aconteceu. Por 6 votos a 5, o Supremo entendeu que, sim, à luz da Lei da Ficha Limpa, todos os condenados, em qualquer época, terão de cumprir oito anos de inelegibilidade antes de pleitearem candidaturas.
Em um dos votos vencedores na ocasião, o ministro Luiz Fux argumentou que os candidatos eventualmente barrados não estão a sofrer sanção penal, e sim, simplesmente, não cumprem os critérios de elegibilidade – que, segundo seu entendimento, podem ser retroativos à lei que os criou.
Para tentar minorar os efeitos de tão estapafúrdio entendimento, o ministro Ricardo Lewandowski propôs que a aplicação da norma fosse válida somente para a análise do registro de candidaturas para a eleição deste ano. Seu argumento nem era propriamente de caráter legal, mas prático: a retroatividade atingiria o mandato de ao menos 24 prefeitos e de um número ainda desconhecido de deputados estaduais e vereadores eleitos, obrigando a realização de novas eleições, no caso dos cargos majoritários, e afetando a totalização dos votos para efeito de quociente eleitoral, que determina o número de vagas de cada partido no Legislativo.
Nada disso foi levado em conta na nova decisão do Supremo. “Essa proposta [do ministro Lewandowski] anula o resultado do julgamento, anula o julgamento e desdiz o que nós julgamos”, afirmou o ministro Luiz Fux, que preside o TSE.
Ora, se o julgamento anterior incorreu em erro de interpretação e aviltou a Constituição, como está claro, seria imperativo voltar atrás e desfazer aquele equívoco. Mas o Supremo preferiu manter sua decisão, ignorando uma proteção básica do cidadão contra o arbítrio das autoridades.
Essa proteção é cristalina: não pode ser negada àquele que comete um crime e cumpre a pena prevista na lei a restituição de seus direitos no prazo estabelecido pela sentença. Como lembrou o ministro Gilmar Mendes, a Justiça não pode ser “uma corrida de obstáculos em que os obstáculos são móveis”, ou seja, o punido pela lei de sua época não pode ser punido também por leis futuras. A decisão do Supremo a respeito da Ficha Limpa é uma admissão de que, em certos casos, não há trânsito em julgado, isto é, não há decisão judicial final, pois toda sentença pode vir a ser reformada em face de uma nova lei. Somente uma exotérica hermenêutica, calçada no desejo febril de acabar com a corrupção na política e que não encontra respaldo nem na própria Lei da Ficha Limpa, explica a naturalidade com que o Supremo relativizou um direito fundamental.
06 de março de 2018
Editorial Estadão
O Supremo Tribunal Federal confirmou na quinta-feira passada que as leis podem retroagir, a depender da vontade dos magistrados. Ao confirmar decisão em que fez valer os efeitos da Lei da Ficha Limpa para candidatos condenados antes da edição do referido diploma legal, a principal instância judicial do País inscreveu definitivamente a insegurança jurídica como norma, tudo isso a pretexto de sanear a política de seus corruptos.
O caso diz respeito a um vereador do município baiano de Nova Soure, tornado inelegível como punição por abuso de poder econômico e compra de votos em 2004. Na ocasião, estava em vigor a Lei Complementar 64/1990, que estabelecia três anos de inelegibilidade para delitos do gênero. A pena foi cumprida e o político pôde se candidatar nas eleições de 2008, conseguindo um novo mandato. Quando foi disputar as eleições de 2012, primeiro pleito em que passou a vigorar a Lei da Ficha Limpa, aprovada em 2010, o vereador teve o registro indeferido pelo Tribunal Superior Eleitoral. O argumento era que a punição para casos como o dele não era mais de três anos, e sim de oito anos, como estabelecia a nova legislação. Com isso, o TSE considerou que o político ainda tinha contas a acertar com a Justiça, embora seu caso já tivesse transitado em julgado, e a pena de inelegibilidade, devidamente cumprida.
O caso foi parar no Supremo, que não deveria hesitar em reverter a esdrúxula decisão do TSE, por se tratar de clara afronta aos princípios do trânsito em julgado e da irretroatividade das leis. Mas não foi o que aconteceu. Por 6 votos a 5, o Supremo entendeu que, sim, à luz da Lei da Ficha Limpa, todos os condenados, em qualquer época, terão de cumprir oito anos de inelegibilidade antes de pleitearem candidaturas.
Em um dos votos vencedores na ocasião, o ministro Luiz Fux argumentou que os candidatos eventualmente barrados não estão a sofrer sanção penal, e sim, simplesmente, não cumprem os critérios de elegibilidade – que, segundo seu entendimento, podem ser retroativos à lei que os criou.
Para tentar minorar os efeitos de tão estapafúrdio entendimento, o ministro Ricardo Lewandowski propôs que a aplicação da norma fosse válida somente para a análise do registro de candidaturas para a eleição deste ano. Seu argumento nem era propriamente de caráter legal, mas prático: a retroatividade atingiria o mandato de ao menos 24 prefeitos e de um número ainda desconhecido de deputados estaduais e vereadores eleitos, obrigando a realização de novas eleições, no caso dos cargos majoritários, e afetando a totalização dos votos para efeito de quociente eleitoral, que determina o número de vagas de cada partido no Legislativo.
Nada disso foi levado em conta na nova decisão do Supremo. “Essa proposta [do ministro Lewandowski] anula o resultado do julgamento, anula o julgamento e desdiz o que nós julgamos”, afirmou o ministro Luiz Fux, que preside o TSE.
Ora, se o julgamento anterior incorreu em erro de interpretação e aviltou a Constituição, como está claro, seria imperativo voltar atrás e desfazer aquele equívoco. Mas o Supremo preferiu manter sua decisão, ignorando uma proteção básica do cidadão contra o arbítrio das autoridades.
Essa proteção é cristalina: não pode ser negada àquele que comete um crime e cumpre a pena prevista na lei a restituição de seus direitos no prazo estabelecido pela sentença. Como lembrou o ministro Gilmar Mendes, a Justiça não pode ser “uma corrida de obstáculos em que os obstáculos são móveis”, ou seja, o punido pela lei de sua época não pode ser punido também por leis futuras. A decisão do Supremo a respeito da Ficha Limpa é uma admissão de que, em certos casos, não há trânsito em julgado, isto é, não há decisão judicial final, pois toda sentença pode vir a ser reformada em face de uma nova lei. Somente uma exotérica hermenêutica, calçada no desejo febril de acabar com a corrupção na política e que não encontra respaldo nem na própria Lei da Ficha Limpa, explica a naturalidade com que o Supremo relativizou um direito fundamental.
06 de março de 2018
Editorial Estadão
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