Será o espectador um monstro por não desejar 4h de edificação moral vinda de privilegiados?
Fui envenenado pelo politicamente correto. A cada indivíduo que não era homem, branco e heterossexual a subir no palco do Oscar neste último domingo, uma vozinha malvada objetava dentro de mim: só foi colocado ali para cumprir a agenda política da gente fina, elegante e sincera de Hollywood. Em outras palavras, para "lacrar".
Meu cinismo teve mesa farta. Política sempre esteve presente no Oscar, mas agora ocupa o primeiro plano. Foi um verdadeiro festival de diversidade, inclusão e discursos engajados. Homossexuais, negros, transexuais, mulheres, mexicanos; recebendo e entregando prêmios. Se for o resultado de uma sociedade com mais oportunidades para todos, ótimo. Se for só a Academia preenchendo cota, não significa nada.
Felizmente, os organizadores não ficaram, como em 2017, implorando em vão a atenção do presidente. Trump e os republicanos ficaram como referências implícitas —quase não mencionadas—, um inimigo difuso contra o qual Hollywood e a classe artística se levantam.
Vencedor de melhor filme e melhor diretor, "A Forma da Água" é a vitrine perfeita da cerimônia: diversidade, machismo, imigração, preconceito, vítimas de opressão: está tudo lá, da produção à moral da história.
Dirigido pelo mexicano Guillermo del Toro, tem como protagonista uma mulher muda (violentada na infância), e como coadjuvantes seu vizinho gay de meia-idade e sua colega de trabalho negra. Na trama, ela se apaixona por uma criatura aquática (um "illegal alien"?) que está sob o poder do governo americano.
Preciso dizer a cor de pele e o sexo do vilão da história? Ou que um de seus crimes é assédio sexual contra a protagonista? Ele é o verdadeiro monstro, enquanto a criatura vulnerável, de aparência estranha e origem misteriosa traz cura e redenção; mesmo sua violência é apenas reação ao mundo hostil que o cerca. "We are all dreamers!"
Nada disso diminui ou aumenta o valor do filme. Mas que esses fatores tenham tamanho relevo dá a impressão de que o prêmio é café com leite: de que origem, cor de pele, sexo ou orientação sexual de quem fez o filme mais a conveniência política de sua mensagem contêm mais do que o filme em si. O mais bonzinho, e não o melhor, vence. O palco da elite do cinema mundial virou mais um pedestal dentre tantos para bem-intencionados declamarem seus valores.
Adoro diversidade; torço para que Trump falhe em seu fechamento econômico e humano dos EUA. Só suspeito que essa ostentação toda feita durante o Oscar é mais uma ocasião de elevar as vaidades de Hollywood do que algo que realmente ajude as causas em jogo. Suspeito, ademais, que essa necessidade constante de reafirmação pública esteja ligada à sensação de impotência prática.
Que bom que os valores defendidos sejam diversidade e inclusão, e não preconceito e opressão. Mas boas intenções repetidas incessantemente geram desprezo. Praticamente obrigam qualquer espírito livre a contestar a autocomplacência reinante.
Ao colocar o aspecto político no centro, o Oscar perde sua razão de ser. Fica mais chato, menos arriscado, com mais cartas marcadas e tapinhas nas costas. Será o espectador comum um monstro por não desejar quatro horas de edificação moral vinda das bocas mais privilegiadas e paparicadas do planeta? Podemos condená-lo ou não, mas uma coisa ninguém poderá tirar dele: o direito inalienável de mudar de canal.
Joel Pinheiro da Fonseca, Folha de SP
É economista pelo Insper, mestre em filosofia pela USP e palestrante do movimento liberal brasileiro.
Fui envenenado pelo politicamente correto. A cada indivíduo que não era homem, branco e heterossexual a subir no palco do Oscar neste último domingo, uma vozinha malvada objetava dentro de mim: só foi colocado ali para cumprir a agenda política da gente fina, elegante e sincera de Hollywood. Em outras palavras, para "lacrar".
Meu cinismo teve mesa farta. Política sempre esteve presente no Oscar, mas agora ocupa o primeiro plano. Foi um verdadeiro festival de diversidade, inclusão e discursos engajados. Homossexuais, negros, transexuais, mulheres, mexicanos; recebendo e entregando prêmios. Se for o resultado de uma sociedade com mais oportunidades para todos, ótimo. Se for só a Academia preenchendo cota, não significa nada.
Felizmente, os organizadores não ficaram, como em 2017, implorando em vão a atenção do presidente. Trump e os republicanos ficaram como referências implícitas —quase não mencionadas—, um inimigo difuso contra o qual Hollywood e a classe artística se levantam.
Vencedor de melhor filme e melhor diretor, "A Forma da Água" é a vitrine perfeita da cerimônia: diversidade, machismo, imigração, preconceito, vítimas de opressão: está tudo lá, da produção à moral da história.
Dirigido pelo mexicano Guillermo del Toro, tem como protagonista uma mulher muda (violentada na infância), e como coadjuvantes seu vizinho gay de meia-idade e sua colega de trabalho negra. Na trama, ela se apaixona por uma criatura aquática (um "illegal alien"?) que está sob o poder do governo americano.
Preciso dizer a cor de pele e o sexo do vilão da história? Ou que um de seus crimes é assédio sexual contra a protagonista? Ele é o verdadeiro monstro, enquanto a criatura vulnerável, de aparência estranha e origem misteriosa traz cura e redenção; mesmo sua violência é apenas reação ao mundo hostil que o cerca. "We are all dreamers!"
Nada disso diminui ou aumenta o valor do filme. Mas que esses fatores tenham tamanho relevo dá a impressão de que o prêmio é café com leite: de que origem, cor de pele, sexo ou orientação sexual de quem fez o filme mais a conveniência política de sua mensagem contêm mais do que o filme em si. O mais bonzinho, e não o melhor, vence. O palco da elite do cinema mundial virou mais um pedestal dentre tantos para bem-intencionados declamarem seus valores.
Adoro diversidade; torço para que Trump falhe em seu fechamento econômico e humano dos EUA. Só suspeito que essa ostentação toda feita durante o Oscar é mais uma ocasião de elevar as vaidades de Hollywood do que algo que realmente ajude as causas em jogo. Suspeito, ademais, que essa necessidade constante de reafirmação pública esteja ligada à sensação de impotência prática.
Que bom que os valores defendidos sejam diversidade e inclusão, e não preconceito e opressão. Mas boas intenções repetidas incessantemente geram desprezo. Praticamente obrigam qualquer espírito livre a contestar a autocomplacência reinante.
Ao colocar o aspecto político no centro, o Oscar perde sua razão de ser. Fica mais chato, menos arriscado, com mais cartas marcadas e tapinhas nas costas. Será o espectador comum um monstro por não desejar quatro horas de edificação moral vinda das bocas mais privilegiadas e paparicadas do planeta? Podemos condená-lo ou não, mas uma coisa ninguém poderá tirar dele: o direito inalienável de mudar de canal.
Joel Pinheiro da Fonseca, Folha de SP
É economista pelo Insper, mestre em filosofia pela USP e palestrante do movimento liberal brasileiro.
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