Mesmo fora do poder, a esquerda mantém a estratégia de colocar as instituições a serviço do partido e da ideologia, e a educação sempre foi vista como um ambiente a ser aparelhado
Doutrinação político-partidária de esquerda não é novidade na universidade brasileira (e nem nos ensinos fundamental e médio) há muito tempo. Mas nos últimos dias alguns professores perderam todo e qualquer pudor. Os alunos do curso de graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) terão à disposição, neste primeiro semestre de 2018, a disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil” – o “golpe”, no caso, não poderia ser referência a outra coisa que não o impeachment de Dilma Rousseff.
A ementa é explícita, citando como objetivos do curso “entender os elementos de fragilidade do sistema político brasileiro que permitiram a ruptura democrática de maio e agosto de 2016, com a deposição da presidente Dilma Rousseff; Analisar o governo presidido por Michel Temer e investigar o que sua agenda de retrocesso nos direitos e restrição às liberdades diz sobre a relação entre as desigualdades sociais e o sistema político no Brasil; Perscrutar os desdobramentos da crise em curso e as possibilidades de reforço da resistência popular e de restabelecimento do Estado de Direito e da democracia política no Brasil”. A bibliografia é praticamente toda formada por autores de esquerda, e a avaliação será feita por meio de quatro trabalhos que “deverão incorporar as leituras indicadas para cada unidade”.
A disciplina oferecida na UnB não tem nada de “ciência política”; está mais para a formação de militantes
Ainda que se argumente que a disciplina é optativa – ou seja, não é necessário cursá-la para conseguir concluir o curso –, ela é a pura e simples difusão de um viés político-partidário. Não há preocupação em entender quais são as bases legais do impeachment, a legislação envolvida, os atos cometidos por Dilma Rousseff e considerados crime de responsabilidade; parte-se do pressuposto de que houve um “golpe”, uma “ruptura democrática” seguida pela instalação de um “governo ilegítimo”, e as visões divergentes nem sequer são apresentadas. Ora, isso não tem nada de “ciência política”; está mais para a formação de militantes, até porque o curso se propõe a avaliar as “possibilidades de reforço da resistência popular”. É a negação do verdadeiro papel da universidade, de promover o embate de ideias em busca da verdade. É necessário questionar que nota um aluno receberá se, nos trabalhos, “incorporar as leituras indicadas” e for capaz de rebater os argumentos ali apresentados, com conclusões que batam de frente com as premissas do curso. Por mais que o programa afirme que “a avaliação dos trabalhos vai levar em conta (...) a visão crítica, a capacidade de realizar conexões com a realidade, o desenvolvimento de ideias próprias”, é fundado acreditar que nem toda “visão crítica” ou “ideia própria” será bem recebida no curso.
Que isso ocorra em uma universidade pública, bancada pelo contribuinte – e não apenas na UnB, pois outras universidades já anunciaram cursos semelhantes; na Universidade Federal da Bahia, a disciplina integrará o curso de História e tem a mesma ementa daquela oferecida na UnB –, é ainda mais triste. Não à toa a divulgação do curso chamou a atenção do ministro da Educação, Mendonça Filho. E ele tem toda a razão quando afirma, em nota divulgada pelo MEC, que “a ementa da disciplina traz indicativos claros de uso de toda uma estrutura acadêmica, custeada por todos os brasileiros com recursos públicos, para benefício político e ideológico de determinado segmento partidário, citando, inclusive, nominalmente o PT”, e que a universidade adota “uma prática de apropriação do bem público para promoção de pensamentos político-partidários”. Mesmo fora do poder, a esquerda mantém a estratégia de colocar as instituições a serviço do partido e da ideologia, e a educação sempre foi vista como um ambiente a ser aparelhado.
No entanto, se a indignação do ministro é humanamente compreensível, as medidas que adotou, acionando vários órgãos, incluindo a Advocacia-Geral da União e o Ministério Público Federal, para apurar se houve improbidade administrativa, são claramente incompatíveis com o princípio da autonomia universitária, consagrado no artigo 207 da Carta Magna. Pedir – e, eventualmente, obter – o fechamento de cursos única e exclusivamente por seu conteúdo choca-se com a liberdade que deve caracterizar o ambiente universitário. É bem verdade, e isso não pode ser ignorado, que, na hipótese contrária, a de um curso que defendesse explicitamente ideias mais à direita do espectro econômico-político, como, por exemplo, “a agenda reformista de Temer e seu papel crucial para a modernização do Brasil”, certamente toda a comunidade acadêmica e setores da imprensa estariam clamando, indignados, pelo seu cancelamento, no típico duplipensar que endossaria a atitude que agora condenam. E estariam da mesma forma equivocados, contrariando o mesmo princípio da autonomia universitária, se esse pedido se desse através dos meios que supõem o uso do poder coativo do Estado.
Isso nos remete a um ponto crucial nesse enfrentamento cultural (algo válido para muitas outras situações que guardam com ela alguma analogia): sua solução não pode estar entregue às instâncias estatais; são os próprios indivíduos e comunidades que, dentro de suas prerrogativas e liberdades, devem “combatê-las”, sempre com o máximo respeito pelas prerrogativas e liberdades dos demais. A comunidade acadêmica tem diante de si a tarefa de zelar para que a universidade mantenha seu caráter de centro formador de conhecimento, em vez de decair a ponto de se tornar um ambiente tomado pela militância político-partidária que ignora ou despreza o contraditório e o embate de ideias. E esse cuidado para que a universidade não se desvirtue pede que professores e alunos exerçam a liberdade de repudiar tudo aquilo que destoe do objetivo da instituição. Isso exige romper a “espiral de silêncio” que se formou, ao longo de décadas, em muitos departamentos de universidades brasileiras em relação a tudo que não seja de esquerda. Sabemos que não é fácil, dado o nível do aparelhamento do ambiente universitário por uma militância que teme e rejeita essa mesma liberdade – uma mentalidade que leva até à perseguição de docentes que não se curvam ao pensamento esquerdista, como foi o caso recente de Gabriel Giannattasio, do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina, denunciado por colegas por ter criticado, em e-mail, uma carta aberta (a Procuradoria Jurídica da UEL decidiu que a denúncia era improcedente). As disciplinas do “golpe” mostram que ainda há um longo caminho para que a escola e a universidade voltem a ser um ambiente de autêntica liberdade intelectual, mas é uma luta que, com as armas certas, precisa ser travada.
06 de março de 2018
Editorial Gazeta do Povo
Doutrinação político-partidária de esquerda não é novidade na universidade brasileira (e nem nos ensinos fundamental e médio) há muito tempo. Mas nos últimos dias alguns professores perderam todo e qualquer pudor. Os alunos do curso de graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) terão à disposição, neste primeiro semestre de 2018, a disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil” – o “golpe”, no caso, não poderia ser referência a outra coisa que não o impeachment de Dilma Rousseff.
A ementa é explícita, citando como objetivos do curso “entender os elementos de fragilidade do sistema político brasileiro que permitiram a ruptura democrática de maio e agosto de 2016, com a deposição da presidente Dilma Rousseff; Analisar o governo presidido por Michel Temer e investigar o que sua agenda de retrocesso nos direitos e restrição às liberdades diz sobre a relação entre as desigualdades sociais e o sistema político no Brasil; Perscrutar os desdobramentos da crise em curso e as possibilidades de reforço da resistência popular e de restabelecimento do Estado de Direito e da democracia política no Brasil”. A bibliografia é praticamente toda formada por autores de esquerda, e a avaliação será feita por meio de quatro trabalhos que “deverão incorporar as leituras indicadas para cada unidade”.
A disciplina oferecida na UnB não tem nada de “ciência política”; está mais para a formação de militantes
Ainda que se argumente que a disciplina é optativa – ou seja, não é necessário cursá-la para conseguir concluir o curso –, ela é a pura e simples difusão de um viés político-partidário. Não há preocupação em entender quais são as bases legais do impeachment, a legislação envolvida, os atos cometidos por Dilma Rousseff e considerados crime de responsabilidade; parte-se do pressuposto de que houve um “golpe”, uma “ruptura democrática” seguida pela instalação de um “governo ilegítimo”, e as visões divergentes nem sequer são apresentadas. Ora, isso não tem nada de “ciência política”; está mais para a formação de militantes, até porque o curso se propõe a avaliar as “possibilidades de reforço da resistência popular”. É a negação do verdadeiro papel da universidade, de promover o embate de ideias em busca da verdade. É necessário questionar que nota um aluno receberá se, nos trabalhos, “incorporar as leituras indicadas” e for capaz de rebater os argumentos ali apresentados, com conclusões que batam de frente com as premissas do curso. Por mais que o programa afirme que “a avaliação dos trabalhos vai levar em conta (...) a visão crítica, a capacidade de realizar conexões com a realidade, o desenvolvimento de ideias próprias”, é fundado acreditar que nem toda “visão crítica” ou “ideia própria” será bem recebida no curso.
Que isso ocorra em uma universidade pública, bancada pelo contribuinte – e não apenas na UnB, pois outras universidades já anunciaram cursos semelhantes; na Universidade Federal da Bahia, a disciplina integrará o curso de História e tem a mesma ementa daquela oferecida na UnB –, é ainda mais triste. Não à toa a divulgação do curso chamou a atenção do ministro da Educação, Mendonça Filho. E ele tem toda a razão quando afirma, em nota divulgada pelo MEC, que “a ementa da disciplina traz indicativos claros de uso de toda uma estrutura acadêmica, custeada por todos os brasileiros com recursos públicos, para benefício político e ideológico de determinado segmento partidário, citando, inclusive, nominalmente o PT”, e que a universidade adota “uma prática de apropriação do bem público para promoção de pensamentos político-partidários”. Mesmo fora do poder, a esquerda mantém a estratégia de colocar as instituições a serviço do partido e da ideologia, e a educação sempre foi vista como um ambiente a ser aparelhado.
No entanto, se a indignação do ministro é humanamente compreensível, as medidas que adotou, acionando vários órgãos, incluindo a Advocacia-Geral da União e o Ministério Público Federal, para apurar se houve improbidade administrativa, são claramente incompatíveis com o princípio da autonomia universitária, consagrado no artigo 207 da Carta Magna. Pedir – e, eventualmente, obter – o fechamento de cursos única e exclusivamente por seu conteúdo choca-se com a liberdade que deve caracterizar o ambiente universitário. É bem verdade, e isso não pode ser ignorado, que, na hipótese contrária, a de um curso que defendesse explicitamente ideias mais à direita do espectro econômico-político, como, por exemplo, “a agenda reformista de Temer e seu papel crucial para a modernização do Brasil”, certamente toda a comunidade acadêmica e setores da imprensa estariam clamando, indignados, pelo seu cancelamento, no típico duplipensar que endossaria a atitude que agora condenam. E estariam da mesma forma equivocados, contrariando o mesmo princípio da autonomia universitária, se esse pedido se desse através dos meios que supõem o uso do poder coativo do Estado.
Isso nos remete a um ponto crucial nesse enfrentamento cultural (algo válido para muitas outras situações que guardam com ela alguma analogia): sua solução não pode estar entregue às instâncias estatais; são os próprios indivíduos e comunidades que, dentro de suas prerrogativas e liberdades, devem “combatê-las”, sempre com o máximo respeito pelas prerrogativas e liberdades dos demais. A comunidade acadêmica tem diante de si a tarefa de zelar para que a universidade mantenha seu caráter de centro formador de conhecimento, em vez de decair a ponto de se tornar um ambiente tomado pela militância político-partidária que ignora ou despreza o contraditório e o embate de ideias. E esse cuidado para que a universidade não se desvirtue pede que professores e alunos exerçam a liberdade de repudiar tudo aquilo que destoe do objetivo da instituição. Isso exige romper a “espiral de silêncio” que se formou, ao longo de décadas, em muitos departamentos de universidades brasileiras em relação a tudo que não seja de esquerda. Sabemos que não é fácil, dado o nível do aparelhamento do ambiente universitário por uma militância que teme e rejeita essa mesma liberdade – uma mentalidade que leva até à perseguição de docentes que não se curvam ao pensamento esquerdista, como foi o caso recente de Gabriel Giannattasio, do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina, denunciado por colegas por ter criticado, em e-mail, uma carta aberta (a Procuradoria Jurídica da UEL decidiu que a denúncia era improcedente). As disciplinas do “golpe” mostram que ainda há um longo caminho para que a escola e a universidade voltem a ser um ambiente de autêntica liberdade intelectual, mas é uma luta que, com as armas certas, precisa ser travada.
06 de março de 2018
Editorial Gazeta do Povo
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