Quando escrevi Um país em transe, não imaginava que precisaríamos piorar tanto para enfim se iniciar o processo de impeachment.
As investigações avançaram, novas prisões ocorreram, as acusações contra o governo Dilma mudaram de patamar e de natureza. Mas o que diferencia esta crise de todas as anteriores?
O Estado brasileiro sempre foi mais ou menos corrupto, disfuncional, deficitário. O país sempre oscilou entre crescimentos claudicantes e recessões mais ou menos brandas. Entretanto, os políticos, empresários e intelectuais do país, com diferentes graus de sucesso, de alguma forma mobilizavam a sociedade a continuar investindo, consumindo, especulando, ou seja, acreditando que a roda continuaria a girar, a despeito de todas as adversidades, que o Brasil era o “país do futuro”, que “estava no caminho certo” e que enfim “tinha chegado sua vez”. Os governos, empresários, pensadores, a elite, em suma, conseguiam vender um futuro melhor, que mantinha o presente em andamento.
O governo Dilma, com a inestimável ajuda da oposição, quebrou essa escrita: não há um horizonte de melhoras que justifique qualquer sacrifício, ou mesmo uma aposta, no cenário presente, nem tampouco na ruptura. As chamadas “forças vivas” da sociedade, todos aqueles que, de uma forma ou outra, geram riqueza e empregos, simplesmente pararam de acreditar. Os que podem, transferem negócios e investimentos para outros países; os que não podem, mantém suas posições, reduzindo-as ao mínimo necessário para a subsistência própria e do negócio.
Alguns analistas hão de dizer: a diferença desta crise é a atuação das instituições! Apesar de tudo, o país dá uma demonstração de vigor democrático e institucional, ao investigar esquemas de corrupção cristalizados há decadas na estrutura do Estado e prender empresários e políticos como nunca antes! Errado.
Não há que se falar em “independência” inédita das instituições, muito menos em instituições que investigam porque o governo agora “deixa”. Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário também ficaram à deriva, sem um futuro ou horizonte por parte dos poderes políticos, que também sempre nortearam o presente e futuro do sistema de justiça. Ao contrário da iniciativa privada, porém, essas instituições aproveitaram-se do vácuo de futuro criado pelo governo petista para aprofundarem as investigações sem enfrentar resistências outrora mais eficientes. O que é “ausência de oportunidades” para uns, é “janela de oportunidades” para outros.
Se não há um horizonte próximo na política, não há “donos do poder” com capital político efetivo ou potencial. O sistema de justiça é sim suscetível ao jogo de forças da política, se não formalmente, na prática, e investiga, denuncia e julga de acordo com esse contexto. Quando esse jogo de forças se paralisa ou entra em colapso, os vetores de pressão sobre os órgãos de controle perdem direção, foco e eficácia. Por isso, prisões até há pouco inimagináveis agora ocorrem numa sucessão e num crescente de importância difíceis até mesmo de compreender.
O sistema de justiça está, como nunca antes, desamarrado das forças políticas, pois estas perderam a capacidade de construir narrativas e ações minimamente coerentes e convincentes para manter o presente e mobilizar a sociedade em direção a determinado futuro. Sem esta capacidade, perdida principalmente pela corrupção generalizada em que os políticos se enredaram e pela inércia inepta da oposição, os políticos ficam sem força e poder para se contrapor às investidas da justiça, pois destituídos de apoio popular, este, hoje, direcionado quase completamente à faxina levada à cabo pelos órgãos de justiça.
A Lava-Jato é necessária, desejável e oportuna. Que ela se aprofunde mais e mais, desmontando o maior número possível de esquemas de desvio de dinheiro público, e prenda o maior número de bandidos, políticos e empresários, no processo. Mas não podemos esperar o fim das investigações e ações penais para pensar o que deve ser feito do país daqui para a frente.
A justiça, o ministério público e as polícias tem muito poder, mas não conseguem construir um plano para a retomada do crescimento, a melhora da educação, da segurança, do ordenamento urbano. Em suma, não conduzem o futuro, “apenas” estancam os malfeitos do presente, ao punir os crimes passados, e deixam “recados” aos futuros governantes sobre os limites a serem respeitados. Isso é apenas a moldura. Falta todo o conteúdo.
Esse conteúdo, que só pode ser construído pela política, é imprescindível para a gestão do Estado, para a melhoria das políticas públicas, e também para o sistema de justiça, na medida em que ele é parte do aparato estatal que demanda melhorias e depurações.
Não é por acaso que o impeachment de Dilma (condição necessária, mas não suficiente, para estancar a entropia da crise) foi deflagrado por um presidente da Câmara atolado em denúncias e prestes a ser julgado pela Comissão de Ética da casa que preside, pegando de surpresa o principal partido de oposição.
É o melhor retrato possível do esgotamento da política como instrumento de mediação de interesses e conflitos públicos: a presidente, eleita graças à campanha política mais suja da história do país, posta na fogueira do impeachment por um deputado (do partido da coligação que a reelegeu e indicou seu vice), cheio de processos na justiça e com o mandato sob risco de cassação, enquanto a oposição assiste, passiva, o desenrolar dos acontecimentos sem ter voz e capacidade de ação para intervir, ainda que apenas no campo da retórica, na dinâmica dos fatos.
Se, junto com a destituição do PT do poder, não vierem mudanças verdadeiras no modo de fazer política e de gerir a coisa pública no país, o impeachment será de pouca valia. Continuaremos à deriva, a política será apenas um instrumento para levar ao poder despreparados e oportunistas, e a espiral de desgovernança se ampliará.
08 de março de 2017
in reaçonaria
08 de março de 2017
in reaçonaria
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