Faz 5 dias que voltei de Cuba.
Escrevo este texto de um quarto de hotel em Boa Vista, Roraima, uma das cidades "invadidas" por venezuelanos que fogem da fome e do caos.
O que vou relatar abaixo não tem a ver com o que vim fazer aqui, mas tem tudo a ver com os venezuelanos que eu encontrei pela rua. Tem tudo a ver com os cubanos. E comigo também.
Não fui a Cuba a trabalho. Mas ser repórter, para mim, é algo que vai muito além de trabalho. Se eu vim ao mundo para fazer algo, foi para contar para os outros o que eu andei vendo, ouvindo e sentindo por aí. Este texto é sobre isso.
Fui a Cuba com meu marido, o Diogo, o cara que eu amo, que eu escolhi para, junto comigo, fazer, parir e criar duas pessoas. Fui com o Diogo, um dos caras mais sérios, justos e comprometidos com a verdade dos fatos que eu já conheci na minha vida. O mais comprometido provavelmente. Tanto que, às vezes, acho que ele tem dificuldade de sonhar. E, talvez por isso, não mede esforços para realizar os MEUS sonhos. Ir a Cuba era um deles. Assim como foi pisar a neve pela primeira vez, cruzar a Amazônia, caminhar pelo Himalaia e atravessar um tapetinho até um altar improvisado vestida de noiva.
Cuba foi nossa segunda lua de mel, a primeira viagem longa depois que tivemos filhos. Daqui a menos de dois meses, nossa primogênita, faz 6 anos. O fim da primeira infância dela é um marco. Comemorar era urgente.
Por que Cuba? Porque Cuba, Fidel e Che me inquietam há tempos. Eu devia estar na sétima ou oitava série quando ouvi falar pela primeira vez de um lugar "onde todos eram iguais", mas as crianças pediam bala e canetas Bic aos turistas na rua. Lembro bem de uma professora que hoje, se estiver viva, deve ter uns 80 e tantos anos, dizendo que, quando menina, sonhava com Fidel fardado chegando em um cavalo branco para levá-la. Eu não entendia bem aquela paixão, era mais da turma das amigas da minha professora, as quais, dizia ela, eram apaixonadas por Che.
Aos 15, ganhei dos meus amigos um poster do revolucionário argentino clicado por Alberto Korda. Preguei na parte interna do meu armário, onde ficou até eu deixar a casa da minha mãe, aos 24 anos. Na época em que ganhei o souvenir, nossa curtição era usar boina, fumar charuto e discutir sobre a revolução e o absurdo do capitalismo. De lá para cá, já perdi a conta da quantidade de vezes em que participei de discussões acaloradas entre a turma dos pró e a dos contra Cuba. Em todas elas, sempre havia um sujeito que tentava calar o opositor com o argumento: "Você nunca foi para Cuba, não sabe o que está falando!"
Eu precisava ir a Cuba para saber do que eu estava falando.
Então fomos lá, um casal de jornalistas, em lua de mel em Cuba.
Em Cuba, eu vi gente cantando e dançando – muito bem – a cada esquina. Ouvir música e dançar em Cuba é comer macarrão com vinho na Itália, amar em Paris, escalar no Himalaia. Em Cuba, eu vi turista por todos os lados, vi os carros antigos (custam cerca de 18 mil dólares e são passados de pai para filho), vi as casas de pé direito alto onde os andares são divididos em dois para caber mais gente. Eu vi casas que desmoronaram de tão velhas, eu vi esgoto a céu aberto, eu vi os mercados só para cubanos onde a maior transgressão é vender amendoim direto à população, sem passar pelo governo. Eu também vi crianças com uniformes impecáveis, escolas cheias, com quadras poliesportivas e prédios não muito diferentes das nossas escolas públicas. Em Cuba, eu vi pouca gente doente na rua e banheiros públicos tinindo de limpos, mesmo que não saísse água da torneira ou da descarga (no do Museu da Revolução, uma senhora abastecia baldes que os visitantes enojadinhos usavam para mandar embora suas necessidades).
Em Cuba, fiz questão de entrar em um hospital central de Havana para ver a tal fantástica medicina cubana. Dei de cara com um arremedo de pronto socorro público muito parecido com os que topei em minhas apurações no Brasil. Gente se desmilinguindo na sala de espera, chão limpo, mas todo detonado, salas vazias com paredes caindo aos pedaços e um médico-bedel nervoso com a minha presença. Enfiei a cara para dentro do laboratório e fui imediatamente transportada para a década de 1980, quando eu visitava minha mãe no laboratório de análises clínicas onde ela trabalhava. Nostálgico, mas eu sei bem o quanto a medicina andou de lá para cá graças aos novos equipamentos tecnológicos.
Na rua, conversei com pessoas que – essa foi uma grande surpresa – têm esperança no governo de Trump. Para eles, Obama fez nada pelos cubanos. A retomada das relações foi apenas cosmética.
Fiz também o roteiro do turismo "oficial" e fui aos museus. Circulando pelas centenas de fotos de Fidel, Che e outros combatentes, suas fardas, pijamas ensanguentados, restos de equipamentos e posters com palavras de ordem e frases de louvor, não conseguia parar de pensar nos trechos do texto que eu lera dias antes de viagem, do livro "A Verdade das Mentiras", de Mario Vargas Llosa: "Numa sociedade fechada, o poder não se arrega apenas o privilégio de controlar as ações dos homens – o que fazem e o que dizem: aspira também governar sua fantasia, seus sonhos e, evidentemente, sua memória." Lembrei do mesmo texto quando entrei nas livrarias, onde os poucos livros exibidos nas estantes quase vazias eram de autores aliados ao governo cubano.
Não satisfeita, quis ter uma conversa franca com um cidadão, digamos, mais antenado. Na manhã de nosso último dia de viagem, W. (a conversa foi absolutamente informal, não me sinto à vontade de publicar o nome dele aqui), um jornalista cubano que resolveu desafiar o poder e contar a verdade das verdades e, por isso, paga com a própria liberdade, veio nos encontrar.
Dias atrás, depois de cobrir uma ato pró-Trump (sim, teve isso em Cuba), o que ele mesmo julga uma "estupidez", W. foi preso por uma semana. Para proteger a mulher e a filha de 4 anos, W. não vive na mesma casa que elas. Vê a família aos fins de semana apenas.
Quando foi nos encontrar na manhã do último domingo (20), W. estava tenso. Não, ele não temia estar sendo seguido. Já desistiu de se proteger. Sua aflição era pela prima, que estava em trabalho de parto desde o dia anterior. Eu, que já passei por isso de ficar parindo por horas duas vezes, pensei: "Coisa de homem. Parto é assim mesmo". Aí ele explicou melhor. Em Cuba, praticamente não tem parto cesáreo. "Tentam o parto normal até o fim." E eu novamente pensei: "Mano, você está no paraíso e não sabe!" Mas não era bem isso. Cesária é algo raro mesmo quando é necessária. Por isso, uma outra prima de W. perdeu um bebê que, por complicações de parto, morreu cinco dias depois de nascer. E eu com meus pensamentos novamente: "Mano, isso acontece direto no Brasil..." Só que o priminho de W. foi registrado como natimorto, uma estratégia safadinha para camuflar os dados sobre mortalidade infantil. E eu lembro de Llosa novamente: "Em uma sociedade fechada, a história se impregna de ficção, pois se inventa e reinventa em virtude da ortodoxia religiosa e da política contemporânea ou, mais grosseiramente, de acordo com os caprichos do poder."
Ao longo de nossa conversa e do passeio que fizemos pela periferia de Havana, W. criticou a miséria, a insegurança (a maior parte das casas tem grades), a censura, o povo que não promove a mudança de dentro para fora e fica à espera de um salvador. Em diversos pontos, continuei com minha discussão mental na linha "Mas o brasileiro pobre também passa por isso".
Questionei W. sobre a educação, uma das bandeiras do governo e um dos argumentos mais utilizados pela turma pró-Fidel nas discussões dos bares da Vila Madalena, onde, aliás, os protagonistas costumam pagar fortunas por escolas onde seus filhos aprendam "a pensar". E eu me incluo nesse balaio aí. W.: "Sim, tem escola para todo mundo. Mas não tem educação. Tem adestramento. Educação, para mim, é ensinar a descobrir, a questionar, a fazer perguntas. Não é isso o que se ensina às crianças cubanas."
Naquele ponto da conversa – e da viagem – eu já estava tristíssima, mas ainda não havia perdido a esperança de encontrar aquela partícula que meus amigos tão encantados pelos país em algum momento acharam. Eu queria ver algo de realmente bom, algo esperançoso. Eu queria achar o samba e o futebol do cubanos. Então perguntei: "W., os cubanos, pelo menos, são felizes de alguma maneira?" W. deu um sorriso irônico e contou uma história para responder minha pergunta. Há pouco tempo, foi contratado por uma agência de notícias para fazer um documentário com o tema "Projeto de Vida". A ideia era entrevistar conterrâneos para saber quais eram os planos para o futuro deles. "Todos deram a mesma resposta: 'Meu projeto de vida é sair daqui. Quero deixar Cuba'. Não, os cubanos não são felizes", disse W..
Terminamos aquela manhã tristíssimos, com um buraco no peito. Eu e Diogo continuamos rodando a cidade a pé (quase não usamos carro ou outro tipo de transporte), enfrentamos a fila da chocolateria onde cubanos e turistas esperam um tempão para comer o chocolate mais doce que eu já provei na minha vida, demos de cara com a loja de Benetton em Cuba (!!!) e dissemos "não" às crianças que, na rua, pediam "caramelos" (balas, em português). Voltamos ao hotel, jantamos no único lugar onde encontramos uma comida dessas que acolhem o estômago e a alma, o Paladar Los Amigos, uma espécie de restaurante que funciona dentro de uma casa. Depois, não tivemos mais disposição emocional para fazer nada. E fomos dormir para enfrentar a viagem de volta.
No dia seguinte, na fileira atrás de nós no avião, uma brasileira chorava copiosamente. Aflitos, os passageiros ao lado tentaram confortá-la. Parei minha leitura que acabara de começar, de "A Insustentável Leveza do Ser", de Milan Kundera, para ouvir o que ela contou a eles. Chorava porque o "marido" tinha ficado em Cuba. Meses antes, os dois se conheceram no Brasil. Médico, ele viera trabalhar no Programa Mais Médicos. Apaixonaram-se, tentaram fazer com que ele ficasse aqui, mas não teve jeito. Por determinação do governo, ele precisou voltar. Ainda assim, tinha a esperança de ser enviado para uma nova missão, o que lhe foi negado. A moça voltava de uma temporada de um mês com seu amor, seu "marido", ela dizia aos vizinhos de voo.
Ouvi a história, abracei meu marido, trocamos carinhos e retomei minha leitura com o coração apertado. Logo cheguei à parte do livro em que a Tchecoslováquia é invadida pelos russos e Tomas, um dos protagonistas, tem a possibilidade de imigrar para a Suíça. No início, pensa em ficar. Afinal, Tereza, sua mulher, estava no auge da carreira de fotojornalista. Surpreendentemente, ela diz que está disposta a se mudar, apesar de saber que, na Suíça, vivia uma das amantes de Tomas. Sobre isso, Kundera escreve: "Aquele que quer deixar o lugar onde vive não está feliz." E eu completo: seja ele um personagem de ficção, um venezuelano, um cubano ou eu mesma, quando, em viagem a trabalho, quero voltar para perto dos meus amores.
Giuliana Bergamo
Fonte: Facebook
Escrevo este texto de um quarto de hotel em Boa Vista, Roraima, uma das cidades "invadidas" por venezuelanos que fogem da fome e do caos.
O que vou relatar abaixo não tem a ver com o que vim fazer aqui, mas tem tudo a ver com os venezuelanos que eu encontrei pela rua. Tem tudo a ver com os cubanos. E comigo também.
Não fui a Cuba a trabalho. Mas ser repórter, para mim, é algo que vai muito além de trabalho. Se eu vim ao mundo para fazer algo, foi para contar para os outros o que eu andei vendo, ouvindo e sentindo por aí. Este texto é sobre isso.
Fui a Cuba com meu marido, o Diogo, o cara que eu amo, que eu escolhi para, junto comigo, fazer, parir e criar duas pessoas. Fui com o Diogo, um dos caras mais sérios, justos e comprometidos com a verdade dos fatos que eu já conheci na minha vida. O mais comprometido provavelmente. Tanto que, às vezes, acho que ele tem dificuldade de sonhar. E, talvez por isso, não mede esforços para realizar os MEUS sonhos. Ir a Cuba era um deles. Assim como foi pisar a neve pela primeira vez, cruzar a Amazônia, caminhar pelo Himalaia e atravessar um tapetinho até um altar improvisado vestida de noiva.
Cuba foi nossa segunda lua de mel, a primeira viagem longa depois que tivemos filhos. Daqui a menos de dois meses, nossa primogênita, faz 6 anos. O fim da primeira infância dela é um marco. Comemorar era urgente.
Por que Cuba? Porque Cuba, Fidel e Che me inquietam há tempos. Eu devia estar na sétima ou oitava série quando ouvi falar pela primeira vez de um lugar "onde todos eram iguais", mas as crianças pediam bala e canetas Bic aos turistas na rua. Lembro bem de uma professora que hoje, se estiver viva, deve ter uns 80 e tantos anos, dizendo que, quando menina, sonhava com Fidel fardado chegando em um cavalo branco para levá-la. Eu não entendia bem aquela paixão, era mais da turma das amigas da minha professora, as quais, dizia ela, eram apaixonadas por Che.
Aos 15, ganhei dos meus amigos um poster do revolucionário argentino clicado por Alberto Korda. Preguei na parte interna do meu armário, onde ficou até eu deixar a casa da minha mãe, aos 24 anos. Na época em que ganhei o souvenir, nossa curtição era usar boina, fumar charuto e discutir sobre a revolução e o absurdo do capitalismo. De lá para cá, já perdi a conta da quantidade de vezes em que participei de discussões acaloradas entre a turma dos pró e a dos contra Cuba. Em todas elas, sempre havia um sujeito que tentava calar o opositor com o argumento: "Você nunca foi para Cuba, não sabe o que está falando!"
Eu precisava ir a Cuba para saber do que eu estava falando.
Então fomos lá, um casal de jornalistas, em lua de mel em Cuba.
Em Cuba, eu vi gente cantando e dançando – muito bem – a cada esquina. Ouvir música e dançar em Cuba é comer macarrão com vinho na Itália, amar em Paris, escalar no Himalaia. Em Cuba, eu vi turista por todos os lados, vi os carros antigos (custam cerca de 18 mil dólares e são passados de pai para filho), vi as casas de pé direito alto onde os andares são divididos em dois para caber mais gente. Eu vi casas que desmoronaram de tão velhas, eu vi esgoto a céu aberto, eu vi os mercados só para cubanos onde a maior transgressão é vender amendoim direto à população, sem passar pelo governo. Eu também vi crianças com uniformes impecáveis, escolas cheias, com quadras poliesportivas e prédios não muito diferentes das nossas escolas públicas. Em Cuba, eu vi pouca gente doente na rua e banheiros públicos tinindo de limpos, mesmo que não saísse água da torneira ou da descarga (no do Museu da Revolução, uma senhora abastecia baldes que os visitantes enojadinhos usavam para mandar embora suas necessidades).
by Giuliana Bergamo |
Em Cuba, fiz questão de entrar em um hospital central de Havana para ver a tal fantástica medicina cubana. Dei de cara com um arremedo de pronto socorro público muito parecido com os que topei em minhas apurações no Brasil. Gente se desmilinguindo na sala de espera, chão limpo, mas todo detonado, salas vazias com paredes caindo aos pedaços e um médico-bedel nervoso com a minha presença. Enfiei a cara para dentro do laboratório e fui imediatamente transportada para a década de 1980, quando eu visitava minha mãe no laboratório de análises clínicas onde ela trabalhava. Nostálgico, mas eu sei bem o quanto a medicina andou de lá para cá graças aos novos equipamentos tecnológicos.
Na rua, conversei com pessoas que – essa foi uma grande surpresa – têm esperança no governo de Trump. Para eles, Obama fez nada pelos cubanos. A retomada das relações foi apenas cosmética.
Fiz também o roteiro do turismo "oficial" e fui aos museus. Circulando pelas centenas de fotos de Fidel, Che e outros combatentes, suas fardas, pijamas ensanguentados, restos de equipamentos e posters com palavras de ordem e frases de louvor, não conseguia parar de pensar nos trechos do texto que eu lera dias antes de viagem, do livro "A Verdade das Mentiras", de Mario Vargas Llosa: "Numa sociedade fechada, o poder não se arrega apenas o privilégio de controlar as ações dos homens – o que fazem e o que dizem: aspira também governar sua fantasia, seus sonhos e, evidentemente, sua memória." Lembrei do mesmo texto quando entrei nas livrarias, onde os poucos livros exibidos nas estantes quase vazias eram de autores aliados ao governo cubano.
Não satisfeita, quis ter uma conversa franca com um cidadão, digamos, mais antenado. Na manhã de nosso último dia de viagem, W. (a conversa foi absolutamente informal, não me sinto à vontade de publicar o nome dele aqui), um jornalista cubano que resolveu desafiar o poder e contar a verdade das verdades e, por isso, paga com a própria liberdade, veio nos encontrar.
Dias atrás, depois de cobrir uma ato pró-Trump (sim, teve isso em Cuba), o que ele mesmo julga uma "estupidez", W. foi preso por uma semana. Para proteger a mulher e a filha de 4 anos, W. não vive na mesma casa que elas. Vê a família aos fins de semana apenas.
Quando foi nos encontrar na manhã do último domingo (20), W. estava tenso. Não, ele não temia estar sendo seguido. Já desistiu de se proteger. Sua aflição era pela prima, que estava em trabalho de parto desde o dia anterior. Eu, que já passei por isso de ficar parindo por horas duas vezes, pensei: "Coisa de homem. Parto é assim mesmo". Aí ele explicou melhor. Em Cuba, praticamente não tem parto cesáreo. "Tentam o parto normal até o fim." E eu novamente pensei: "Mano, você está no paraíso e não sabe!" Mas não era bem isso. Cesária é algo raro mesmo quando é necessária. Por isso, uma outra prima de W. perdeu um bebê que, por complicações de parto, morreu cinco dias depois de nascer. E eu com meus pensamentos novamente: "Mano, isso acontece direto no Brasil..." Só que o priminho de W. foi registrado como natimorto, uma estratégia safadinha para camuflar os dados sobre mortalidade infantil. E eu lembro de Llosa novamente: "Em uma sociedade fechada, a história se impregna de ficção, pois se inventa e reinventa em virtude da ortodoxia religiosa e da política contemporânea ou, mais grosseiramente, de acordo com os caprichos do poder."
Ao longo de nossa conversa e do passeio que fizemos pela periferia de Havana, W. criticou a miséria, a insegurança (a maior parte das casas tem grades), a censura, o povo que não promove a mudança de dentro para fora e fica à espera de um salvador. Em diversos pontos, continuei com minha discussão mental na linha "Mas o brasileiro pobre também passa por isso".
Questionei W. sobre a educação, uma das bandeiras do governo e um dos argumentos mais utilizados pela turma pró-Fidel nas discussões dos bares da Vila Madalena, onde, aliás, os protagonistas costumam pagar fortunas por escolas onde seus filhos aprendam "a pensar". E eu me incluo nesse balaio aí. W.: "Sim, tem escola para todo mundo. Mas não tem educação. Tem adestramento. Educação, para mim, é ensinar a descobrir, a questionar, a fazer perguntas. Não é isso o que se ensina às crianças cubanas."
Naquele ponto da conversa – e da viagem – eu já estava tristíssima, mas ainda não havia perdido a esperança de encontrar aquela partícula que meus amigos tão encantados pelos país em algum momento acharam. Eu queria ver algo de realmente bom, algo esperançoso. Eu queria achar o samba e o futebol do cubanos. Então perguntei: "W., os cubanos, pelo menos, são felizes de alguma maneira?" W. deu um sorriso irônico e contou uma história para responder minha pergunta. Há pouco tempo, foi contratado por uma agência de notícias para fazer um documentário com o tema "Projeto de Vida". A ideia era entrevistar conterrâneos para saber quais eram os planos para o futuro deles. "Todos deram a mesma resposta: 'Meu projeto de vida é sair daqui. Quero deixar Cuba'. Não, os cubanos não são felizes", disse W..
Terminamos aquela manhã tristíssimos, com um buraco no peito. Eu e Diogo continuamos rodando a cidade a pé (quase não usamos carro ou outro tipo de transporte), enfrentamos a fila da chocolateria onde cubanos e turistas esperam um tempão para comer o chocolate mais doce que eu já provei na minha vida, demos de cara com a loja de Benetton em Cuba (!!!) e dissemos "não" às crianças que, na rua, pediam "caramelos" (balas, em português). Voltamos ao hotel, jantamos no único lugar onde encontramos uma comida dessas que acolhem o estômago e a alma, o Paladar Los Amigos, uma espécie de restaurante que funciona dentro de uma casa. Depois, não tivemos mais disposição emocional para fazer nada. E fomos dormir para enfrentar a viagem de volta.
No dia seguinte, na fileira atrás de nós no avião, uma brasileira chorava copiosamente. Aflitos, os passageiros ao lado tentaram confortá-la. Parei minha leitura que acabara de começar, de "A Insustentável Leveza do Ser", de Milan Kundera, para ouvir o que ela contou a eles. Chorava porque o "marido" tinha ficado em Cuba. Meses antes, os dois se conheceram no Brasil. Médico, ele viera trabalhar no Programa Mais Médicos. Apaixonaram-se, tentaram fazer com que ele ficasse aqui, mas não teve jeito. Por determinação do governo, ele precisou voltar. Ainda assim, tinha a esperança de ser enviado para uma nova missão, o que lhe foi negado. A moça voltava de uma temporada de um mês com seu amor, seu "marido", ela dizia aos vizinhos de voo.
Ouvi a história, abracei meu marido, trocamos carinhos e retomei minha leitura com o coração apertado. Logo cheguei à parte do livro em que a Tchecoslováquia é invadida pelos russos e Tomas, um dos protagonistas, tem a possibilidade de imigrar para a Suíça. No início, pensa em ficar. Afinal, Tereza, sua mulher, estava no auge da carreira de fotojornalista. Surpreendentemente, ela diz que está disposta a se mudar, apesar de saber que, na Suíça, vivia uma das amantes de Tomas. Sobre isso, Kundera escreve: "Aquele que quer deixar o lugar onde vive não está feliz." E eu completo: seja ele um personagem de ficção, um venezuelano, um cubano ou eu mesma, quando, em viagem a trabalho, quero voltar para perto dos meus amores.
Giuliana Bergamo
Fonte: Facebook
02 de dezembro de 2016
postado por m.americo
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