Final de ano, momento de reflexão. Pensar sobre a insensatez desses tempos modernos pode ser um bom início para a recauchutagem do espírito. Casos ocorridos nos últimos dias são emblemáticos na ilustração do cotidiano. O soldado Bruno, 26 anos, estava todo animado para comemorar o aniversário de 2 anos da filha. Um dia antes, seu corpo carbonizado foi encontrado dentro de um carro na zona Norte do Rio de Janeiro. Uma mulher grávida, agredida pelo marido, pediu socorro à mãe pelo whatsapp. Em BH, ladrões roubaram o carro de uma funerária com um corpo dentro. Insensatez, loucura, banalização da criminalidade, frieza ou simplesmente um fragmento da brutalidade infernal desses tempos ditos pós-modernos? E o que dizer da violência na sala do Conselho de Ética (?) da Câmara, onde os deputados Zé Geraldo (PT-BA) e Wellington Roberto (PR-PB) quase se atracaram na última quarta feira?
Os fatos têm mais significados que a simples fotografia do cenário de violência a que estamos submetidos. Expressam o estado ilógico, antinômico e alienado de um mundo em que os princípios da eficiência, competitividade a qualquer custo, concorrência e aética, estão tornando as pessoas infelizes, solitárias e menos solidárias. Domenico de Masi, sociólogo italiano, autor de O Futuro do Trabalho, pinça o apólogo do Leão e da Gazela para mostrar a que ponto chega a esquizofrenia bárbara dos ambientes de trabalho, que se transformaram em campos de guerras da modernidade.
A historinha é emblemática: “Toda manhã, na África, uma gazela desperta. Sabe que deverá correr mais depressa do que o leão para não ser devorada. Toda manhã, na África, um leão desperta. Sabe que deverá correr mais que a gazela para não morrer de fome. Quando o sol surge, não importa se você é um leão ou uma gazela: é melhor que comece a correr”. Esse lembrete ainda é exibido em ambientes de trabalho como profissão de fé de executivos e dirigentes empresariais. À primeira vista, parece um bom conselho para quem quer vencer na vida. Trata-se, porém, de uma exaltação à barbárie. Basta intuir que, pelo conselho, “leões humanos” (aspas nossas) são autorizados a agarrar “gazelas humanas” (aspas nossas), que, apavoradas, devem se desdobrar para realizar suas tarefas ou a se esconder para fugir das intempéries do trabalho (ou dos ataques dos leões). É evidente a estimulação ao instinto da violência, ao cultivo dos perfis agressivos, às lutas por espaço e poder, às táticas aéticas e aos golpes traiçoeiros, tudo justificado pela necessidade da competitividade.
Nessa arena de “leões e gazelas”, a alternativa que se apresenta é única: correr ou golpear. E é isso que se vê nos ambientes de trabalho competitivos, no chão das fábricas, nos palácios públicos e nas ruas. Afinal de contas, o ladrão que rouba um caixão de funerária, ele mesmo um “leão faminto” (dinheiro, drogas, satisfação psicológica), é produto de um meio degradado. A estética de medo soma-se à estética de banalização da violência nas ruas. E as razões estão à vista: cidades com seus serviços deteriorados; a violência da miséria que volta a abater a classe C, excluindo milhões de pessoas da mesa de consumo; assassinato de menores pela Polícia Militar; violência contra mulheres; discriminação étnica; a agressão do desemprego etc.
Eis o paradoxo da modernidade. Esse caldeirão, muito quente em função da fogueira que consome as reservas da economia e queima a esfera política, amortece a sociedade, que assume a imagem de um corpo descrente, dividido em grupos, separado por gigantesco apartheid. De outro lado, a tecnodemocracia forjada pelo interesse das estruturas burocráticas da área pública, e a organodemocracia, essa modelagem que se espraia pelos ambientes do trabalho privado, destroem a ideia da sociedade convivial, voltada para a interação dos cidadãos. Os burocratas não sentem o cheiro das ruas e os dirigentes empresariais só têm olhos para a produtividade, não raro procurando fórmulas para atenuar os golpes furiosos do tacape de impostos governamentais. Assim, não há tempo, interesse ou motivação para tratarem das coisas do espírito.
Onde estão os valores da solidariedade, do companheirismo, da amizade, da comunhão, do jogo em equipe? Dão adeus à Humanidade. Em seu lugar, surge uma modelagem tétrica, um aparato desordeiro, um jogo maléfico, altamente competitivo, que convive prazerosamente com golpes, traições, desprezo à vida. Estamos nos aproximando daquilo que o historiador Samuel P. Huntington chama de paradigma do caos:
- quebra no mundo inteiro da lei e da ordem; Estados fracassados e anarquia crescente em muitas partes; uma onda global de criminalidade; máfias transnacionais e cartéis de droga; número de viciados em drogas se expandindo; debilitamento generalizado da família; declínio na confiança e na solidariedade social; violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver voltando a predominar em praticamente todo o planeta; crise geral de governabilidade.
Para fechar a galeria da insensatez, só resta aparecer bandidos em assaltos usando camisetas com Cristo, Gandhi e Buda, rezando orações para seus santos de veneração. A simbologia é triste, mas a Humanidade caminha em direção ao slogan dos apologistas da pseudo-modernidade: “mate seu companheiro, se ele, de alguma forma, atrapalhar o serviço”. O universo, sem bússola, é um ente alienado, fora do eixo. O fundamentalismo islâmico, que atrai jovens de muitos países, está a desafiar o bom senso. Crianças inocentes, manipuladas, acabam sendo usadas como veículos para carregar bombas. A besta fera do apocalipse (violência extremada) está à espreita. Exagero? Pode ser. Mas as tragédias – humana, cultural, naturais, -, estão se repetindo com muita frequência. Que Deus nos proteja.
13 de dezembro de 2015
Gaudêncio Torquato
Os fatos têm mais significados que a simples fotografia do cenário de violência a que estamos submetidos. Expressam o estado ilógico, antinômico e alienado de um mundo em que os princípios da eficiência, competitividade a qualquer custo, concorrência e aética, estão tornando as pessoas infelizes, solitárias e menos solidárias. Domenico de Masi, sociólogo italiano, autor de O Futuro do Trabalho, pinça o apólogo do Leão e da Gazela para mostrar a que ponto chega a esquizofrenia bárbara dos ambientes de trabalho, que se transformaram em campos de guerras da modernidade.
A historinha é emblemática: “Toda manhã, na África, uma gazela desperta. Sabe que deverá correr mais depressa do que o leão para não ser devorada. Toda manhã, na África, um leão desperta. Sabe que deverá correr mais que a gazela para não morrer de fome. Quando o sol surge, não importa se você é um leão ou uma gazela: é melhor que comece a correr”. Esse lembrete ainda é exibido em ambientes de trabalho como profissão de fé de executivos e dirigentes empresariais. À primeira vista, parece um bom conselho para quem quer vencer na vida. Trata-se, porém, de uma exaltação à barbárie. Basta intuir que, pelo conselho, “leões humanos” (aspas nossas) são autorizados a agarrar “gazelas humanas” (aspas nossas), que, apavoradas, devem se desdobrar para realizar suas tarefas ou a se esconder para fugir das intempéries do trabalho (ou dos ataques dos leões). É evidente a estimulação ao instinto da violência, ao cultivo dos perfis agressivos, às lutas por espaço e poder, às táticas aéticas e aos golpes traiçoeiros, tudo justificado pela necessidade da competitividade.
Nessa arena de “leões e gazelas”, a alternativa que se apresenta é única: correr ou golpear. E é isso que se vê nos ambientes de trabalho competitivos, no chão das fábricas, nos palácios públicos e nas ruas. Afinal de contas, o ladrão que rouba um caixão de funerária, ele mesmo um “leão faminto” (dinheiro, drogas, satisfação psicológica), é produto de um meio degradado. A estética de medo soma-se à estética de banalização da violência nas ruas. E as razões estão à vista: cidades com seus serviços deteriorados; a violência da miséria que volta a abater a classe C, excluindo milhões de pessoas da mesa de consumo; assassinato de menores pela Polícia Militar; violência contra mulheres; discriminação étnica; a agressão do desemprego etc.
Eis o paradoxo da modernidade. Esse caldeirão, muito quente em função da fogueira que consome as reservas da economia e queima a esfera política, amortece a sociedade, que assume a imagem de um corpo descrente, dividido em grupos, separado por gigantesco apartheid. De outro lado, a tecnodemocracia forjada pelo interesse das estruturas burocráticas da área pública, e a organodemocracia, essa modelagem que se espraia pelos ambientes do trabalho privado, destroem a ideia da sociedade convivial, voltada para a interação dos cidadãos. Os burocratas não sentem o cheiro das ruas e os dirigentes empresariais só têm olhos para a produtividade, não raro procurando fórmulas para atenuar os golpes furiosos do tacape de impostos governamentais. Assim, não há tempo, interesse ou motivação para tratarem das coisas do espírito.
Onde estão os valores da solidariedade, do companheirismo, da amizade, da comunhão, do jogo em equipe? Dão adeus à Humanidade. Em seu lugar, surge uma modelagem tétrica, um aparato desordeiro, um jogo maléfico, altamente competitivo, que convive prazerosamente com golpes, traições, desprezo à vida. Estamos nos aproximando daquilo que o historiador Samuel P. Huntington chama de paradigma do caos:
- quebra no mundo inteiro da lei e da ordem; Estados fracassados e anarquia crescente em muitas partes; uma onda global de criminalidade; máfias transnacionais e cartéis de droga; número de viciados em drogas se expandindo; debilitamento generalizado da família; declínio na confiança e na solidariedade social; violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver voltando a predominar em praticamente todo o planeta; crise geral de governabilidade.
Para fechar a galeria da insensatez, só resta aparecer bandidos em assaltos usando camisetas com Cristo, Gandhi e Buda, rezando orações para seus santos de veneração. A simbologia é triste, mas a Humanidade caminha em direção ao slogan dos apologistas da pseudo-modernidade: “mate seu companheiro, se ele, de alguma forma, atrapalhar o serviço”. O universo, sem bússola, é um ente alienado, fora do eixo. O fundamentalismo islâmico, que atrai jovens de muitos países, está a desafiar o bom senso. Crianças inocentes, manipuladas, acabam sendo usadas como veículos para carregar bombas. A besta fera do apocalipse (violência extremada) está à espreita. Exagero? Pode ser. Mas as tragédias – humana, cultural, naturais, -, estão se repetindo com muita frequência. Que Deus nos proteja.
13 de dezembro de 2015
Gaudêncio Torquato
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