Cinco meses atrás, o site global de notícias “Huffington Post” comunicou uma mudança na cobertura da campanha de Donald Trump à Casa Branca. Da seção de Política, reservada aos profissionais do ramo convencionais, o híbrido americano de Tiririca com Eike Batista e Eduardo Cunha foi despachado para a rubrica Entretenimento.
Esta semana, a fundadora do grupo, Arianna Huffington, teve de voltar atrás. “Não estamos mais na esfera do entretenimento”, reconheceu. “A campanha de Trump tornou-se uma força nefasta e sinistra no campo da política dos Estados Unidos”.
A guinada da mídia foi geral, impulsionada por mais uma pauta-bomba do candidato que lidera as pesquisas entre eleitores republicanos: vetar a entrada nos Estados Unidos de quem é muçulmano, pelo menos até as autoridades americanas entenderem melhor o terrorismo islâmico.
Foi um rubicão e tanto, mesmo levando-se em conta comentários tóxicos anteriores do aspirante a presidente dos Estados Unidos. Desta vez, ele atropelara um direito constitucional. A liberdade religiosa é pedra fundamental da nação americana.
“As declarações de Trump, mesmo para tempos extremos, representam um perigo que se sobrepõe à História, à lei e aos princípios fundamentais do nosso país”, alertou em editorial a rede NBC. Segundo previsão da “Columbia Journalism Review”, o magnata-celebridade passará a receber tratamento de real ameaça à democracia americana. E a cobertura que o candidato vinha recebendo até agora já começou a mudar. A CNN, uma das mídias que mais espaço lhe abriram no início da campanha, confrontou-o esta semana. “Pelas suas afirmações, somos o que o Estado Islâmico afirma sermos e querermos: uma guerra contra o Islã. Mas não é isso que somos, Mr. Trump”, editorializou o jornalista que o entrevistava.
Foi como se, de repente, o extravagante magnata-famosidade de língua solta, porém minguadas chances, adquirira peso político e força eleitoral através da autorradicalização. Percebeu-se que quanto mais demagógica, maniqueista e agressora sua retórica, maiores o seu eco, impacto e raio de ação. E quanto mais próximos de “solo cristão” os atentados jihadistas (como a chacina em Paris e o recente ataque em San Bernardino, na Califórnia), melhor para a islamofobia rasa, simplista e por isso tão insidiosa do candidato.
Por vias tortuosas, Donald Trump tornou-se o infiel mais alinhado aos propósitos do Estado Islâmico: sua candidatura se alimenta da cada novo atentado. Se algum ocorrer em território americano nos próximos meses, as chances de sua popularidade e megalomania surtarem são grandes: o medo é infeccioso, já nos ensinaram a história e a psicologia.
“A equação de entretenimento na TV é simples”, explicou o showman jihadista a uma plateia de Dallas: “Se você tem boa audiência — e a minha é mais do que ótima, é monstra — você consegue ficar no ar o tempo todo, mesmo se tiver pouco a dizer”. E se o “pouco” for também provocador, insolente, ofensivo, inesperado e se tornar viral nas redes sociais (Trump tem mais de 4,3 milhões de seguidores no Twitter), é sucesso garantido.
De início, ter um personagem de reality show no noticiário político foi uma diversão considerada bem-vinda pelas emissoras — antídoto inofensivo para atravessar o tedioso e interminável processo que desemboca na escolha dos candidatos oficiais de cada partido. No caso dos republicanos, o tédio era agravado pela quantidade industrial de pré-candidatos — mais de uma dúzia, todos insossos.
Não espanta que Trump se destacasse. Tem modos e fala tidos como autênticos e destoa do resto do plantel por ser o dono da própria voz, sem script. Vai testando a sede do público por novidade, celebridade e clareza. Roubou o oxigênio dos demais concorrentes à indicação republicana.
Até agora, Trump conseguiu manter-se na liderança republicana para suceder a Barack Obama, apesar de — ou por causa de — posições pouco presidenciáveis. Entre outros, já classificou os mexicanos de estupradores, propôs o fechamento de todas as mesquitas existentes nos Estados Unidos, é a favor de um banco de dados para cadastrar a população islâmica do país, atribuiu a mordacidade de uma entrevistadora a seu período menstrual, comparou a atitude de um adversário à de um molestador de crianças.
Repórteres já fuçaram sua vida pessoal e seus divórcios, apontaram erros factuais grosseiros no que afirma, desmontaram sua aura de empresário bem-sucedido, alertaram para uma arapuca virtual chamada Trump University, mostraram facetas pouco apetitosas do personagem. Nada cola.
O habitual ciclo em três etapas de cobertura de um “candidato sensação” começa pela novidade, passa pelo escrutínio e desemboca no declínio do personagem. No caso de Donald Trump, a fase dois enfrenta uma muralha, pois o eleitorado que lhe é fiel despreza a grande imprensa e qualquer revelação desabonadora é recebida com escárnio.
Segundo o instituto Bloomberg Politics/Purple Strategie, dois terços dos republicanos propensos a votar nas primárias se declaram favoráveis à proposta de banir islâmicos dos Estados Unidos.
“Trump só é perigoso por ter seguidores em número suficiente para torná-lo perigoso”, sustenta o comentarista político do “New York Times” Charles Bow, que deixou de citar o candidato pelo nome. “Sem eles, Trump contiuaria sendo o que sempre foi: um falastrão grosseiro a quem poucas pessoas sérias davam ouvidos".
A americana Deanna Othman, muçulmana, levanta um tema para reflexão: Trump é exemplo de que qualquer indivíduo pode se radicalizar quando distorce um sistema de crenças ou quando adota uma ideologia fundamentalmente deletéria. O racismo perverso, o capitalismo extremo ou o colonialismo destrutivo também podem levar à radicalização. Não se trata de chasse gardée de extremistas islâmicos.
Última má notícia: Ted Cruz, segundo melhor colocado entre os pré-candidatos republicanos, foi educado em Princeton, formado em Harvard e é membro do Senado dos Estados Unidos. Sustenta barbaridades afins.
13 de dezembro de 2015
Dorrit Harazim
Esta semana, a fundadora do grupo, Arianna Huffington, teve de voltar atrás. “Não estamos mais na esfera do entretenimento”, reconheceu. “A campanha de Trump tornou-se uma força nefasta e sinistra no campo da política dos Estados Unidos”.
A guinada da mídia foi geral, impulsionada por mais uma pauta-bomba do candidato que lidera as pesquisas entre eleitores republicanos: vetar a entrada nos Estados Unidos de quem é muçulmano, pelo menos até as autoridades americanas entenderem melhor o terrorismo islâmico.
Foi um rubicão e tanto, mesmo levando-se em conta comentários tóxicos anteriores do aspirante a presidente dos Estados Unidos. Desta vez, ele atropelara um direito constitucional. A liberdade religiosa é pedra fundamental da nação americana.
“As declarações de Trump, mesmo para tempos extremos, representam um perigo que se sobrepõe à História, à lei e aos princípios fundamentais do nosso país”, alertou em editorial a rede NBC. Segundo previsão da “Columbia Journalism Review”, o magnata-celebridade passará a receber tratamento de real ameaça à democracia americana. E a cobertura que o candidato vinha recebendo até agora já começou a mudar. A CNN, uma das mídias que mais espaço lhe abriram no início da campanha, confrontou-o esta semana. “Pelas suas afirmações, somos o que o Estado Islâmico afirma sermos e querermos: uma guerra contra o Islã. Mas não é isso que somos, Mr. Trump”, editorializou o jornalista que o entrevistava.
Foi como se, de repente, o extravagante magnata-famosidade de língua solta, porém minguadas chances, adquirira peso político e força eleitoral através da autorradicalização. Percebeu-se que quanto mais demagógica, maniqueista e agressora sua retórica, maiores o seu eco, impacto e raio de ação. E quanto mais próximos de “solo cristão” os atentados jihadistas (como a chacina em Paris e o recente ataque em San Bernardino, na Califórnia), melhor para a islamofobia rasa, simplista e por isso tão insidiosa do candidato.
Por vias tortuosas, Donald Trump tornou-se o infiel mais alinhado aos propósitos do Estado Islâmico: sua candidatura se alimenta da cada novo atentado. Se algum ocorrer em território americano nos próximos meses, as chances de sua popularidade e megalomania surtarem são grandes: o medo é infeccioso, já nos ensinaram a história e a psicologia.
“A equação de entretenimento na TV é simples”, explicou o showman jihadista a uma plateia de Dallas: “Se você tem boa audiência — e a minha é mais do que ótima, é monstra — você consegue ficar no ar o tempo todo, mesmo se tiver pouco a dizer”. E se o “pouco” for também provocador, insolente, ofensivo, inesperado e se tornar viral nas redes sociais (Trump tem mais de 4,3 milhões de seguidores no Twitter), é sucesso garantido.
De início, ter um personagem de reality show no noticiário político foi uma diversão considerada bem-vinda pelas emissoras — antídoto inofensivo para atravessar o tedioso e interminável processo que desemboca na escolha dos candidatos oficiais de cada partido. No caso dos republicanos, o tédio era agravado pela quantidade industrial de pré-candidatos — mais de uma dúzia, todos insossos.
Não espanta que Trump se destacasse. Tem modos e fala tidos como autênticos e destoa do resto do plantel por ser o dono da própria voz, sem script. Vai testando a sede do público por novidade, celebridade e clareza. Roubou o oxigênio dos demais concorrentes à indicação republicana.
Até agora, Trump conseguiu manter-se na liderança republicana para suceder a Barack Obama, apesar de — ou por causa de — posições pouco presidenciáveis. Entre outros, já classificou os mexicanos de estupradores, propôs o fechamento de todas as mesquitas existentes nos Estados Unidos, é a favor de um banco de dados para cadastrar a população islâmica do país, atribuiu a mordacidade de uma entrevistadora a seu período menstrual, comparou a atitude de um adversário à de um molestador de crianças.
Repórteres já fuçaram sua vida pessoal e seus divórcios, apontaram erros factuais grosseiros no que afirma, desmontaram sua aura de empresário bem-sucedido, alertaram para uma arapuca virtual chamada Trump University, mostraram facetas pouco apetitosas do personagem. Nada cola.
O habitual ciclo em três etapas de cobertura de um “candidato sensação” começa pela novidade, passa pelo escrutínio e desemboca no declínio do personagem. No caso de Donald Trump, a fase dois enfrenta uma muralha, pois o eleitorado que lhe é fiel despreza a grande imprensa e qualquer revelação desabonadora é recebida com escárnio.
Segundo o instituto Bloomberg Politics/Purple Strategie, dois terços dos republicanos propensos a votar nas primárias se declaram favoráveis à proposta de banir islâmicos dos Estados Unidos.
“Trump só é perigoso por ter seguidores em número suficiente para torná-lo perigoso”, sustenta o comentarista político do “New York Times” Charles Bow, que deixou de citar o candidato pelo nome. “Sem eles, Trump contiuaria sendo o que sempre foi: um falastrão grosseiro a quem poucas pessoas sérias davam ouvidos".
A americana Deanna Othman, muçulmana, levanta um tema para reflexão: Trump é exemplo de que qualquer indivíduo pode se radicalizar quando distorce um sistema de crenças ou quando adota uma ideologia fundamentalmente deletéria. O racismo perverso, o capitalismo extremo ou o colonialismo destrutivo também podem levar à radicalização. Não se trata de chasse gardée de extremistas islâmicos.
Última má notícia: Ted Cruz, segundo melhor colocado entre os pré-candidatos republicanos, foi educado em Princeton, formado em Harvard e é membro do Senado dos Estados Unidos. Sustenta barbaridades afins.
13 de dezembro de 2015
Dorrit Harazim
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