Ouvi o nome de São Francisco de Assis, como um modelo de transformação social radical
Tive muitas conversas orquestradas por drinques com meu antigo mentor, o brasilianista, Richard Moneygrand. Mas, antes do primeiro gole, ele batia o copo e dizia: “Morte ao leite degradante! Morte à água que enferruja! Salve o álcool, edificante...”
Ríamos e, sérios como os ladrões da Petrobras e da República, bebíamos cortando o efeito etílico com paradoxos e projetos utópicos
Um deles era o de comer todas as mulheres do mundo; outro era o de liquidar a pobreza e a fome; um terceiro era descobrir o sentido do que seria preciso para obter a felicidade. Moneygrand, com sua veemência escocesa (ele descendia dos bardos que alegravam as festas das terras altas da Escócia), sempre que ficava bêbado, cantava a belíssima balada “Leezie Lindsey”, na qual o cantor oscilava entre conquistar a moça como um “chefe do mais alto calibre” ou como um rebelde da estirpe de Rob Roy.
Num desses encontros, Moneygrand mencionou a obra de Victor Turner, o qual eu depois viria a ler e usar, referindo-se com ênfase em como ela era um espelho do movimento hippie e dos vários radicalismos que ocorriam em nossa volta.
Foi quando ouvi novamente o nome de São Francisco de Assis, agora como um modelo de transformação social radical porque, conforme me contou Moneygrand, vivendo entre 1182 e 1226, ele passa de Giovanni di Pietro di Bernardone a Francisco de Assis. E ao lado da mudança de nome, comum a todos os que bravamente optaram por um ideal intricado, como Nhô Augusto Esteves, o Matraga, de Guimarães Rosa; Giovanni di Pietro também abandonou sua vida de filhinho esquerdista de papai burguês para, como o nosso paradigmático Antônio Conselheiro, viver no mundo clandestino dedicado aos miseráveis, optando pelo trabalho braçal como consertador de cemitérios e igrejas abandonadas.
Dick Moneygrand admirava a determinação de Francisco, talvez porque naquele momento estivesse se divorciando e apaixonado pela bela Caroline Crocker, a que chegava sempre atrasada e, quando entrava na sala aula usando um suéter revelador dos seus encantadores faróis dianteiros, fazia os rapazes perderem o rumo e as moças esboçarem um sorriso invejoso.
Eu tenho o ideal de perseguir as damas, dizia Moneygrand, mas transformar o mundo e liquidar a pobreza só me ocorreu seriamente quando li a vida de São Francisco no contexto cosmopolítico assentado por Turner. Pois ali se diz que Francisco era intuitivo e sua lógica era a da sensibilidade, e não a do intelecto ou da burocracia. Antiestrutura em vez de estrutura.
A única regra que foi capaz de formular — prosseguiu Moneygrand — foi o “não ter" — a norma do “desnudamento espiritual”. Todas as outras Francisco teve dificuldade em estabelecer porque, se legislasse, criaria inevitavelmente a “estrutura” ou a “dominação burocrática” que, como disse Weber antes de Turner, controla o nosso mundo e tem um viés duro de mudar porque ela se legitima a si mesma como as regras de um jogo de cartas ou de futebol. E o capitalismo é, no fundo, um tal jogo, mesmo quando associado à democracia, a qual, por sua vez, tem tanto o rigor da “estrutura” que, como viu Lévi-Strauss, dissolve o sujeito — esse ator dominante da filosofia política ocidental — quanto a liberdade esperançosa dos movimentos revolucionários marginais, que tem como objetivo o ideal franciscano de salvar o mundo e o homem de si mesmo, nele reintroduzindo a perspectiva subjetiva de escapar das determinações estruturais.
Se você olhar bem para São Francisco — disse ele tomando um largo gole — você nele encontra um negro e um cracudo porque ele elegeu a pobreza errante, a antipropriedade, o não institucional e o provisório. Ora, isso só ocorre com quem considerou seriamente o sentido do suficiente. São Francisco não precisava de duas casas ou e de 20 ternos. Para ele, bastava um abrigo e um velho e surrado camisão.
Por que, continuou Richard, o radicalismo pegou no século 19 e hoje tornou-se um viés modista, um elemento canibalizado pela celebrização que vende tantos livros, filmes, discos e roupas?
___________
Passam-se 40 anos.
Eu me recordo dessa conversa e penso nos que renunciaram ao mundo não porque o detestavam, mas porque o amavam; não para explorá-lo, mas para mostrar como é possível viver com austeridade. Lembro uma admoestação do grande William Blake (o Antonio Vieira deles): “Quem quiser fazer o bem aos outros deve fazê-lo em Diminutos Particulares; o Bem Geral é o pretexto dos hipócritas e dos velhacos” (Prophetic Books, citado no livro “O processo ritual”, de Turner).
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No Brasil, tem gente que, como dizia Dom Pedro II, faz mais revoluções por minuto do as maquinas a vapor. Mas quem é que governa com austeridade, vivendo modestamente e sem lacaios? Não é por acaso que os populistas e os neofascistas sempre fundam “partidos trabalhistas”. Quem não trabalha, idealiza o trabalhador, mas‚ como Lula, odeia o trabalho. São franciscanos no discurso e bilionários na prática. Não deve ser por acaso que Paulo Roberto Costa, o grande e premiado ladrão-revelador do PT, confessou na “Folha de S.Paulo”: “Se houve erro (!!!) — disse — foi a partir da minha entrada na diretoria por envolvimento com grupos políticos, principalmente. Usando a oração de São Francisco, que ‘é dando que se recebe’. Eles usam muito isso.”
Aí está todo o cinismo religioso do lulopetismo e de algumas das maiores, sinto em dizê-lo, e das mais desrespeitáveis empresas nacionais. Para o meu lado franciscano, não é apenas mais caso de tirar esse grupo que não merece governar o Brasil, mas de refundá-lo.
Tive muitas conversas orquestradas por drinques com meu antigo mentor, o brasilianista, Richard Moneygrand. Mas, antes do primeiro gole, ele batia o copo e dizia: “Morte ao leite degradante! Morte à água que enferruja! Salve o álcool, edificante...”
Ríamos e, sérios como os ladrões da Petrobras e da República, bebíamos cortando o efeito etílico com paradoxos e projetos utópicos
Um deles era o de comer todas as mulheres do mundo; outro era o de liquidar a pobreza e a fome; um terceiro era descobrir o sentido do que seria preciso para obter a felicidade. Moneygrand, com sua veemência escocesa (ele descendia dos bardos que alegravam as festas das terras altas da Escócia), sempre que ficava bêbado, cantava a belíssima balada “Leezie Lindsey”, na qual o cantor oscilava entre conquistar a moça como um “chefe do mais alto calibre” ou como um rebelde da estirpe de Rob Roy.
Num desses encontros, Moneygrand mencionou a obra de Victor Turner, o qual eu depois viria a ler e usar, referindo-se com ênfase em como ela era um espelho do movimento hippie e dos vários radicalismos que ocorriam em nossa volta.
Foi quando ouvi novamente o nome de São Francisco de Assis, agora como um modelo de transformação social radical porque, conforme me contou Moneygrand, vivendo entre 1182 e 1226, ele passa de Giovanni di Pietro di Bernardone a Francisco de Assis. E ao lado da mudança de nome, comum a todos os que bravamente optaram por um ideal intricado, como Nhô Augusto Esteves, o Matraga, de Guimarães Rosa; Giovanni di Pietro também abandonou sua vida de filhinho esquerdista de papai burguês para, como o nosso paradigmático Antônio Conselheiro, viver no mundo clandestino dedicado aos miseráveis, optando pelo trabalho braçal como consertador de cemitérios e igrejas abandonadas.
Dick Moneygrand admirava a determinação de Francisco, talvez porque naquele momento estivesse se divorciando e apaixonado pela bela Caroline Crocker, a que chegava sempre atrasada e, quando entrava na sala aula usando um suéter revelador dos seus encantadores faróis dianteiros, fazia os rapazes perderem o rumo e as moças esboçarem um sorriso invejoso.
Eu tenho o ideal de perseguir as damas, dizia Moneygrand, mas transformar o mundo e liquidar a pobreza só me ocorreu seriamente quando li a vida de São Francisco no contexto cosmopolítico assentado por Turner. Pois ali se diz que Francisco era intuitivo e sua lógica era a da sensibilidade, e não a do intelecto ou da burocracia. Antiestrutura em vez de estrutura.
A única regra que foi capaz de formular — prosseguiu Moneygrand — foi o “não ter" — a norma do “desnudamento espiritual”. Todas as outras Francisco teve dificuldade em estabelecer porque, se legislasse, criaria inevitavelmente a “estrutura” ou a “dominação burocrática” que, como disse Weber antes de Turner, controla o nosso mundo e tem um viés duro de mudar porque ela se legitima a si mesma como as regras de um jogo de cartas ou de futebol. E o capitalismo é, no fundo, um tal jogo, mesmo quando associado à democracia, a qual, por sua vez, tem tanto o rigor da “estrutura” que, como viu Lévi-Strauss, dissolve o sujeito — esse ator dominante da filosofia política ocidental — quanto a liberdade esperançosa dos movimentos revolucionários marginais, que tem como objetivo o ideal franciscano de salvar o mundo e o homem de si mesmo, nele reintroduzindo a perspectiva subjetiva de escapar das determinações estruturais.
Se você olhar bem para São Francisco — disse ele tomando um largo gole — você nele encontra um negro e um cracudo porque ele elegeu a pobreza errante, a antipropriedade, o não institucional e o provisório. Ora, isso só ocorre com quem considerou seriamente o sentido do suficiente. São Francisco não precisava de duas casas ou e de 20 ternos. Para ele, bastava um abrigo e um velho e surrado camisão.
Por que, continuou Richard, o radicalismo pegou no século 19 e hoje tornou-se um viés modista, um elemento canibalizado pela celebrização que vende tantos livros, filmes, discos e roupas?
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Passam-se 40 anos.
Eu me recordo dessa conversa e penso nos que renunciaram ao mundo não porque o detestavam, mas porque o amavam; não para explorá-lo, mas para mostrar como é possível viver com austeridade. Lembro uma admoestação do grande William Blake (o Antonio Vieira deles): “Quem quiser fazer o bem aos outros deve fazê-lo em Diminutos Particulares; o Bem Geral é o pretexto dos hipócritas e dos velhacos” (Prophetic Books, citado no livro “O processo ritual”, de Turner).
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No Brasil, tem gente que, como dizia Dom Pedro II, faz mais revoluções por minuto do as maquinas a vapor. Mas quem é que governa com austeridade, vivendo modestamente e sem lacaios? Não é por acaso que os populistas e os neofascistas sempre fundam “partidos trabalhistas”. Quem não trabalha, idealiza o trabalhador, mas‚ como Lula, odeia o trabalho. São franciscanos no discurso e bilionários na prática. Não deve ser por acaso que Paulo Roberto Costa, o grande e premiado ladrão-revelador do PT, confessou na “Folha de S.Paulo”: “Se houve erro (!!!) — disse — foi a partir da minha entrada na diretoria por envolvimento com grupos políticos, principalmente. Usando a oração de São Francisco, que ‘é dando que se recebe’. Eles usam muito isso.”
Aí está todo o cinismo religioso do lulopetismo e de algumas das maiores, sinto em dizê-lo, e das mais desrespeitáveis empresas nacionais. Para o meu lado franciscano, não é apenas mais caso de tirar esse grupo que não merece governar o Brasil, mas de refundá-lo.
16 de outubro de 2014
Roberto DaMatta, O Globo
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