Desde 1963 as divergências políticas entre os Partidos Comunistas da China e do Brasil vinham-se avolumando, fato que não impediu que em março de 1964, ainda no governo João Goulart, o Partido Comunista do Brasil enviasse à China o primeiro de um total de três contingentes de militantes, que posteriormente seriam deslocados para a região do Araguaia, a fim de receber treinamento na Academia Militar de Pequim.
As divergências políticas deviam-se à afirmação de Mao-Tsetung, em 1963, da possibilidade da coexistência de tendências e linhas de esquerda, centro e direita no interior dos partidos comunistas, o que importava numa concepção de Frente Única, tese que o PC do B considerava inaceitável, por julgar que colocaria em risco a unidade partidária.
As divergências foram acirradas com os seguintes fatos:
- a difusão, pelo PC Chinês, em 1967, que o Pensamento de Mao-Tsetung constituía uma nova etapa do marxismo-leninismo, superando Marx, Engels, Lenin e Stalin, o que contribuiu para o aumento das divergências, uma vez que o PC do B passou a considerar a obra de Mao “eclética e, portanto, não marxista-leninista”;
- a afirmação de Mao, no documento intitulado “Apelo em Favor dos Negros Norte-Americanos”, de que “o sistema colonialista e imperialista desaparecerá com a libertação dos povos da raça negra”, em oposição à definição de Lenin, segundo a qual “o imperialismo e o colonialismo terminarão, não com a emancipação dos povos da raça negra ou de qualquer outra raça, mas com a destruição do capitalismo e a implantação da ditadura do proletariado em escala mundial”;
- a opinião do PC Chinês de que o Partido Comunista da Romênia era marxista-leninista e esse era um país socialista, em contraposição às posições do PC do B, que julgava o PC Romeno “revisionista” e que o regime desse país “há muito deixara de ser socialista”;
- a posição do PC Chinês em favor dos governantes da Birmânia, que, segundo o PC do B, “estavam em luta contra os revolucionários em armas, assassinando comunistas, inclusive dirigentes do PC daquele país, enquanto os chineses apoiavam os dois lados, num flagrante incentivo às forças reacionárias”;
- o apoio do Partido Comunista Chinês à existência de mais de um partido proletário em cada país, denominando a todos de “marxistas-leninistas”, em oposição ao princípio leninista que definia a existência de um único partido proletário em cada país;
- a “insustentável decisão” chinesa de negar a participação de convidados estrangeiros nos Congressos do PC Chinês;
- a “divisão contra-revolucionária e oportunista” dos países em Três Mundos, feita pelos chineses, que se autoincluiram no Terceiro Mundo. Segundo o Partido Comunista do Brasil, essa divisão significava a “traição completa à revolução e ao socialismo”, e o início do que passou a ser definido como “revisionismo chinês”, uma vez que a divisão teria, necessariamente, que ser política e não econômica, “pois as classes sociais não poderiam desaparecer”;
- a decisão do PC Chinês de convidar o presidente dos EUA, Richard Nixon, para uma visita oficial à China, “renegando suas posições anteriores de combate ao imperialismo ianque”;
- o respaldo da China ao “regime tirânico e assassino de Pinochet”, no Chile;
- as manifestações favoráveis do governo chinês ao Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, “apesar do PC do B já ter-se manifestado publicamente contra o referido Acordo”;
- a forma como foi feito, em junho de 1974, o restabelecimento das relações diplomáticas entre o Brasil e a China, ocasião em que os chineses teceram elogios “à ditadura militar fascista brasileira”;
- o estímulo à constituição do Pacto do Atlântico Sul, “concebido pelos EUA” , encarado pelos chineses como “um fator positivo a ser estimulado”, e sobre o qual o PC do B já se havia manifestado contrário;
- o esforço do PC Chinês para fazer malograr, no último momento, a iniciativa dos partidos marxistas-leninistas da América Latina, de editar, no Chile, uma revista de âmbito continental, objetivando difundir “as experiências de luta dos povos latino-americanos”;
- “a tentativa sub-reptícia do PC Chinês de organizar outro partido no Brasil, transformando a AP (Ação Popular) numa organização concorrente do PC do B”, além de acolher “fracionistas da chamada Ala Vermelha, um grupo de aventureiros expulso do partido”, ajudando-os e estimulando-os;
- a falta de solidariedade política dos chineses, durante os “quase três anos de resistência do PC do B no Araguaia”;
- a não admissão, pelos chineses, da realização de reuniões regionais dos “partidos comunistas marxistas-leninistas”, porque queriam ser o partido-pai”, afastando-se, assim, “da verdadeira orientação revolucionária e dos princípios consagrados do internacionalismo proletário”;
- a recusa sistemática dos chineses, a partir de fins de 1976, de resolver, “pelos canais partidários, em discussões de alto nível, suas divergências com o Partido do Trabalho da Albânia”;
- o fim da polêmica dos chineses com os soviéticos a partir do momento em que Leonid Brejnev assumiu o cargo de Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética, limitando-se ao “plano estatal e ao da política exterior”, não entrando na “esfera ideológica, no campo teórico, onde se pode efetivamente esclarecer a traição revisionista e defender a revolução proletária”;
- a tentativa do PC Chinês de atrair Cuba, tida como pertencente ao chamado “Terceiro Mundo”, para sua órbita, fato severamente criticado pelo PC do B, que discordava diametralmente do regime castrista;
- a pressão do PC Chinês sobre o PC do B, para que este não assinasse a “Declaração dos Partidos Marxistas-Leninistas da América Latina”, de novembro de 1976;
- a acusação de “revisionismo”, feita pelo PC do B aos dirigentes chineses, tachando-os de “direitistas empedernidos e inimigos do socialismo, que aspiram transformar a China, com a ajuda do capital estrangeiro, numa superpotência social-imperialista”;
Em meados de 1975, em uma reunião do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, foi aprovado um documento intitulado “Sobre as Relações”, abaixo sintetizado:
“Embora o PC do B e o PC Chinês estejam juntos no fundamental, é normal que surjam divergências em questões determinadas. O reatamento de relações China-Brasil é uma atitude concreta e incorreta. Não se pode dizer que está no quadro da coexistência pacífica. As relações da União Soviética com a Alemanha de Hitler tinham o objetivo de abrir caminho. As da Albânia com a Grécia são para tratar de problemas de fronteiras. Mas a China não tem nada disso com o Brasil. Não se deve apagar as fronteiras da luta de classes na questão da relação entre países.
Por que a China não reconhece a Coréia do Sul, o Cambodja, o Vietnam do Sul, e reconhece a ditadura brasileira? Como entender isso? Não se compreende como a China pode continuar a manter relações com o Chile e com o Brasil. No Terceiro Mundo, a China colocou tudo num saco: ditadura, governos democráticos, etc. A China passa a ser aliada de Geisel e não compreende que a ditadura só estabeleceu relações, não porque seja progressista, mas porque os patrões americanos mandaram. A China mudou entre o 9º e o 10º Congressos. O 9º deu grande destaque à Albânia; falou em terceira etapa do marxismo. O 10º diz que a etapa é leninista e dá pouco ou nenhum destaque à Albânia.
A partir de 1971, a China mudou: não mais se fala em apoio à luta armada. A repercussão do reconhecimento da ditadura é ruim em diversos setores aqui. A opinião de Mao sobre a existência de tendências no partido é errada. Na questão do Chile, chega a ser chocante. A China se isola do povo. Quem nos ajuda são os que levantam a voz contra a ditadura, e não os que estabelecem relações com ela. Na Rádio, a China não tem espaço para denunciar a ditadura e suas tropelias. As relações foram estabelecidas à base de elogio à ditadura. A China faz uma falsa divisão econômica no mundo (1º, 2º e 3º), mas a divisão tem que ser política e as classes não podem desaparecer nessa divisão. Por isso, não existem os 1º, 2º e 3º Mundos. O que existe é o imperialismo, o socialismo e os países e povos oprimidos”.
A seguir, em dezembro de 1975, Haroldo Borges Rodrigues Lima, membro da Executiva Nacional do PC do B, juntamente com Diógenes de Arruda Câmara, do Comitê Central, viajaram à Albânia, constituindo, ambos, a delegação do partido às solenidades do aniversário de Libertação da Albânia. Em seguida, foram à China.
De regresso ao Brasil, em janeiro de 1976, Haroldo Lima elaborou um documento sigiloso de cerca de 100 páginas, relatando minuciosamente suas atividades naqueles países. Tal relatório foi posto à disposição dos membros da Executiva Nacional.
Abaixo um extrato do capítulo “Opiniões do Delegado sobre a China”, constante desse Relatório:
“A perspectiva de unidade tende a estar sempre presente, mas os chineses não dão perspectivas de quando se poderão realizar multilaterais. Quais as razões? Eles não dão. A autoridade dos chineses é fonte de dificuldades. Os fatos constatados de ação contra a unidade têm raízes na China. O cara vai lá e volta para fracionar. A China jogava com a possibilidade da AP se transformar em partido e fracionar. Havia forças lá que lutavam contra a unidade da AP com o partido (PC do B). Eles apóiam mais de um partido em cada país. Dizem que se relacionam com todos, mas que dão apoio especial a um. As posições da China turvam o ambiente e puxam para o divisionismo”.
Em dezembro de 1976, na primeira parte de uma reunião do Comitê Central, realizada em um “aparelho”, no bairro da Lapa, em São Paulo, que veio a ser desmantelada pela polícia, quando foi debatida a “Situação Política Nacional e Internacional”, assim se expressou Pedro Pomar, morto nessa ocasião:
“No período de agosto a dezembro, verificaram-se importantes acontecimentos: morte de Mao e ascensão de Hua Kuo-Feng na China, e a realização do Congresso do Partido do Trabalho da Albânia. Para onde vai a China? Ela nos apoiou politicamente em 1961, mas, e hoje? É uma incógnita a posição dos chineses. Daí a ênfase dada por Henver Hodja em seu Informe, às questões em divergência com os chineses. Estes dizem que a maior ameaça são os soviéticos. Já os albaneses dizem que são duas as potências: URSS e EUA, e que não é justo apoiar-se numa para combater a outra. Os albaneses não concordam com a política externa dos chineses em relação à África, América Latina, EUA, Leste-Europeu, etc, embora concordem em uma série de outras questões. O problema internacional tem importância para nós. Nosso partido está na linha de Enver Hodja”.
Dentro desse contexto, as divergências do PC do B com o PC Chinês parecem ter atingido o ápice em julho de 1977, quando a Albânia, após um período de 9 anos de rixas e dissenções, iniciadas em 1968, solicitou créditos ao governo chinês para a compra de armamentos e o 1º Ministro chinês Cho-Em-Lai negou-os categoricamente, o que ocasionou o rompimento das relações diplomáticas e comerciais entre os dois países.
Esse rompimento foi oficializado através de um editorial publicado pelo jornal albanês “Zeri I Populit”, que criticou a teoria maoísta de Três Mundos. Como conseqüência, o PC do Brasil incrementou a convivência e a aceitação das teses ditadas pelo PTA-Partido do Trabalho da Albânia, e as relações com o PC Chinês sofreram um esfriamento ainda maior.
Como conseqüência, além dos diversos artigos publicados pelo jornal do PC do B, “A Classe Operária”, João Amazonas, Secretário-Geral do PC do B, em uma entrevista publicada pelo jornal “Movimento” de 30 de outubro/05 de novembro de 1978, afirmou:
“Nosso partido nunca foi de linha chinesa, ou da linha de qualquer outro partido. Desde sua reorganização, em 1962, o Partido Comunista do Brasil traçou sua própria orientação. É certo que, durante muitos anos, antes mesmo de restabelecermos relações com o PC da China, apoiamos esse país, atacado pelos socialistas-imperialistas soviéticos e pelos imperialistas norte-americanos. Mas, se apoiamos a orientação geral do PC da China, manifestamos, também, inúmeras vezes, divergências acerca de sua maneira particular de interpretar o marxismo-leninismo e fizemos reservas à sua confusa política interna e externa.
Quando o PC Chinês adotou a chamada teoria dos 3 Mundos, ainda vivo Mao-Tsetung, explicamos publicamente nossas discordâncias. E, desde então, não cessamos de repudiar suas alianças sem princípios com os monopolistas ianques, com os Mobuto e os Pinochet, com os imperialistas europeus e japoneses. Hoje consideramos a linha do PC da China tão revisionista quanto a soviética. Na forma, existem certas diferenças, mas o conteúdo é o mesmo.
A vida comprovou que não basta fazer a revolução. Um país socialista pode retornar ao capitalismo, sob formas enganosas, se o proletariado, como classe dirigente, perde o controle da situação e se deixa envolver nas tramas e mesmo pela demagogia dos burocratas e tecnocratas degenerados, que se apossam da direção do partido e do aparelho estatal. A partir da traição de Kruschev, a URSS transformou-se em uma superpotência - socialista de palavra, imperialista de fato - que disputa a hegemonia mundial.
Também a China segue as pegadas da União Soviética. Abandonou o caminho revolucionário e pretende erigir-se em superpotência, inclusive com a ‘ajuda’ do capital estrangeiro. Pode-se indagar se essa contramarcha nos objetivos socialistas é fatal. Absolutamente. São os ziguezagues da história. Cada dia evidencia-se melhor que a lei objetiva em atuação não é a contramarcha, mas o avanço da humanidade para o socialismo, para o comunismo. A Albânia é um exemplo. Territorial e populacionalmente pequena, leva adiante, com notáveis êxitos, a construção da sociedade socialista, apoiada fundamentalmente em suas próprias forças.
Rigorosamente, não se pode falar em divisão no campo comunista. Quem o abandonou não mais pertence a ele. O campo comunista, hoje, é composto pela Albânia e pelo movimento marxista-leninista que se desenvolve em todo o mundo. São numerosos os partidos marxistas-leninistas que se organizam em diferentes países. Estão em franco crescimento. Eles sustentam a bandeira da revolução, renegada pelos Brejnev, Tito, Hua Kuo-Feng, por Marchais, Berlinger e Carrillo.”
Após toda essa polêmica, o jornal “A Classe Operária”, editado clandestinamente pelo PC do B, em seu número relativo a dezembro de 1978, publicou um artigo intitulado “Breve Histórico das Divergências com o PC da China”, configurando de público, finalmente, o rompimento das relações entre os dois partidos. Nesse artigo são utilizados vários qualificativos para definir o Partido Comunista da China: “falsos amigos”, “revisionistas”, “capitalistas”, “direitistas”, “imperialistas”, contra-revolucionários”, “oportunistas”, “aliados do imperialismo”, “incoerentes”, “pragmatistas”, “inimigos do socialismo”, etc.
Essas divergências do Partido Comunista do Brasil com os partidos comunistas chinês, soviético e cubano, são a razão de, durante a Guerrilha do Araguaia, o partido contar com o apoio, apenas, do Partido do Trabalho da Albânia. Um apoio apenas virtual, através das transmissões da Rádio Tirana.
Carlos I. S. Azambuja é Historiador. O texto é parte de um livro ainda não publicado.
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